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Solidariedade é essencial mas a crise climática exige ações enérgicas do estado

Um problema sistêmico como a catástrofe ambiental só será enfrentado com ações enérgicas, mas Brasil pode liderar na área.

Solidariedade é essencial mas a crise climática exige ações enérgicas do estado

Moradores improvisam barca em rua alagada no Rio Grande do Sul, durante as enchentes de Maio de 2024. Foto: Alass Derivas/Deriva Jornalismo

No enfrentamento da profunda insegurança alimentar enfrentada por brasileiros sob o governo de Jair Bolsonaro durante a pandemia da Covid-19, o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra, o MST, organizou-se para doar mais de 7 mil toneladas de alimentos, além de prover cestas básicas, marmitas e treinamento de lideranças locais para o fortalecimento de comunidades vulneráveis.

Na mesma época, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST, lançou e consolidou sua iniciativa de Cozinhas Solidárias que, desde o ano passado, também se tornou política pública através de recursos e integrações com outros programas de governo.

Ainda na pandemia, na crise de oxigênio no Amazonas, ‘vaquinhas online’ foram criadas ao redor do país para a compra de cilindros de oxigênio. Celebridades também mobilizaram suas redes e até o governo venezuelano, sob Nicolás Maduro, solidarizou-se, enviando um carregamento de 107 mil m³ de oxigênio ao governo amazonense.

Vivemos em uma era em que a ameaça à vida, à dignidade e à liberdade se complexifica em crises múltiplas

Quando enchentes na Bahia desabrigaram milhares no estado, o presidente Bolsonaro passeava de jet ski no sul do país. Sobrou para alguns ministros a tarefa de visitar as regiões mais afetadas, enquanto, mais uma vez, a sociedade civil se movimentou pela internet para levantar arrecadações para a população atingida.

Embora essas ações demonstrem a variedade de poder organizativo da sociedade civil e até agentes internacionais em situações de crise e calamidade humanitária, elas também evidenciam graves lacunas de prevenção, planejamento, adaptação e resposta por parte da instituição do estado.

Essa falha generalizada não se explica apenas de uma maneira nem procede apenas de uma causa. Toda incapacidade ou negligência diante de desastres climáticos representa fatores de uma policrise que é multi-escalar, ou seja, tem elementos locais, regionais e internacionais.

Vivemos em uma era em que a ameaça à vida, à dignidade e à liberdade se complexifica em crises múltiplas – sociais, sanitárias, migratórias, ecológicas, econômicas, diplomáticas e mais – que catalisam e pioram umas às outras.

Porém, o nível de complexidade deve servir de alerta para encontrar soluções permanentes, que cheguem à raiz, e não apenas aperfeiçoar ferramentas e programas de resposta e absorção de choques.

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É aqui que encontramos dois tipos de desafio: aprender/querer responder quando a tragédia previamente anunciada se alastra e executar as mudanças radicais necessárias para romper o ciclo catastrófico dessa era de crises climáticas-humanitárias.

Agora, enquanto o povo brasileiro se organiza, mais uma vez, em vaquinhas online e ações voluntárias das mais diversas para responder às enchentes no Rio Grande do Sul, é preciso refletir seriamente sobre os tipos de negacionismo e como eles se relacionam com políticas de governo e projetos econômicos que atravessam tanto as direitas quanto as esquerdas.

Um dos problemas reside no governo de Eduardo Leite, que ignorou medidas necessárias para a prevenção, adaptação e resposta e hoje tem a coragem de disponibilizar um pix para doações como se fosse uma entidade de ajuda voluntária em vez de instituição dotada de poder público e orçamento.

A crise climática-humanitária revela um horizonte de profunda insuficiência social e desamparo

Além de ser tão estranho que um governo de estado peça doações para suas próprias ações, preocupa também a aparência de ser o caminho ‘oficial’ quando, de fato, são grupos de voluntários e ONGs se organizando para chegar onde o governo não tem chegado.

Em um acontecimento ainda mais bizarro, o deputado federal Luciano Zucco (PL-RS), que diferente das deputadas Fernanda Melchionna (PSOL-RS), Maria do Rosário e Reginete Bispo (PT-RS), não destinou suas emendas parlamentares para a área ambiental, optou por pedir doações para os atingidos pelas enchentes no CNPJ do Instituto Harpia. O instituto é ligado ao movimento Invasão Zero, responsável por ações violentas contra indígenas na Bahia.

A crise climática-humanitária revela um horizonte de profunda insuficiência social e desamparo. Diante desse desamparo, o povo se organiza através de doações e esforços voluntários, mas corre o risco de um grande esgotamento da capacidade solidária quanto maiores as necessidades financeiras e de ajuda humana se medidas de mitigação radical não forem tomadas para evitar eventos climáticos mais frequentes, intensos e destrutivos.

A prevenção dos impactos dos eventos climáticos extremos não se dá apenas com alertas, equipamentos, treinamento e medidas de adaptação. Mitigar é necessário, mas vários negacionismos atrapalham o caminho da transição justa e urgente.

O negacionismo da ausência ou inadequação da resposta

O negacionismo explícito da mudança climática foi fomentado por muitos anos pela indústria do combustível fóssil, confundindo as pessoas sobre a base científica do aquecimento global e suas consequências, de modo a garantir a perpetuação de atividades econômicas muito lucrativas.

Esse negacionismo explícito ainda se faz presente e consegue ser barulhento, especialmente quando se junta a toda uma ala conspiracionista que beira ao terraplanismo e outras teorias absurdas que circulam abertamente – muitas vezes impulsionadas na extrema-direita com o intuito de alimentar ciclos de desconfiança e manipulação.

Num mundo em chamas, uma hora se tornará evidente que a água vale bem mais que o petróleo

Porém, menos pessoas sabem que esse tipo de negacionismo ronda, embora marginalmente, alguns espaços de esquerda. Mesmo em 2024, ainda se ouvem e leem afirmações de que a mudança climática é uma falácia de imperialistas interessados em atrapalhar o desenvolvimento de países periféricos, como o Brasil.

Há também versões que tratam qualquer pauta ambiental como entrave para tal desenvolvimento e acusam ambientalistas de agirem contra os interesses de ‘soberania’ nacional – pautando uma versão dessa soberania que por tanto depender de uma ideia de exploração infinita de recursos, não passa de uma ‘soberania com prazo de validade’, afinal, num mundo em chamas, uma hora se tornará evidente que a água vale bem mais que o petróleo.

Dentro desse espaço se nutrem desdobramentos de política pública onde o econômico é independente do socio-ecológico e também superior. Daí a tranquilidade com que governadores cortam orçamento da Defesa Civil e parlamentares se recusam a destinar emendas para a prevenção de desastres.

As enchentes no verão do Rio de Janeiro evidenciaram que mesmo onde já existem planos de adaptação climática, não são levados a cabo.

O negacionismo se expressa na negligência, na inferiorização e no desdém, mas não é ocasional. Está atrelado a um projeto de subdesenvolvimento baseado em combustíveis fósseis, no agronegócio, na mineração de comódites, na especulação financeira e endividamento, e nos mega-projetos que enriquecem construtoras e demais corporações nacionais e internacionais enquanto geram zonas de sacrifício por todas as partes.

Essas zonas de sacrifício determinam quais vidas valem mais ou menos, onde o prometido ‘desenvolvimento’ realmente vai chegar, e quem dependerá da caridade e do voluntariado no dia da calamidade geral.

É por isso que a direita treme quando se usa o conceito de ‘racismo ambiental’, pois ele ajuda a dar a cara ao molde estrutural da exclusão e subjugação colonial que ainda organiza recursos e serviços no Brasil.

O negacionismo da resposta insuficiente e isolada

Diante desse contexto, é revigorante testemunhar e saber que há no Brasil um governo federal disposto a marcar presença, tomar decisões difíceis e destinar medidas e recursos emergenciais quando tantas pessoas, animais e ambientes são atingidos pelos efeitos das mudanças climáticas.

Melhor ainda é entender que há uma preocupação em interligar propostas de desenvolvimento econômico no país com responsabilidade ambiental e valorização dos povos que cuidam da natureza.

Porém, essa mesma responsabilidade ecológica exige contextualizarmos o que está em jogo e a grande armadilha apresentada ao apostar em conciliar ações altamente contraditórias. Para isso, é preciso falar do grande problema do desenvolvimento dependente de petróleo e da lógica de governar com o agronegócio.

Os negacionistas clássicos até tentam confundir, mas a classe trabalhadora tem sentido na pele a intensidade e frequência dos desastres

Obviamente, há de situarmos o desafio da democracia liberal representativa brasileira. Nos moldes do debate de Florestan Fernandes, sabemos que se trata de uma democracia limitada presa aos interesses da burguesia nacional que prefere o subdesenvolvimento do país que os avanços socioecológicos e econômicos que poderíamos ter com uma verdadeira reforma agrária popular e a demarcação urgente de territórios indígenas.

Nessa estrutura de democracia limitada, mesmo um governo mais à esquerda se encontra refém de parlamentares que representam todos os tipos de atraso. Daí a importância da politização e mobilização popular na tarefa de cobrar e pressionar, pois empodera o executivo e seus aliados no legislativo nas negociações e projetos apresentados. É essa leitura que informa os próximos parágrafos.

É necessário mobilizar massivamente por justiça climática no Brasil. A consciência dos efeitos da crise ecológica se alastra pelo país a cada enchente, seca, deslizamento, rompimento de barragem, incêndio, onda de calor, tempestade, entre outros.

Os negacionistas clássicos até tentam confundir, mas a classe trabalhadora tem sentido na pele a intensidade e frequência dos desastres. Isso deveria abrir margem não somente para uma discussão ampla sobre arrecadação e uso de recursos públicos para implementar planos integrados de adaptação climática nos municípios e estados, como sobre o que está em jogo em termos de perdas e danos.

Não é suficiente denunciarmos a dívida histórica dos países ricos e a injustiça climática que promovem, se isso serve para atrasar uma transição socioecológica justa no nosso país. O Brasil, justamente por seu histórico colonial e do peso do agronegócio, está entre os maiores emissores históricos de gases de efeito estufa.

Se emitimos bem menos historicamente através de combustíveis fósseis, isso não deveria servir para alimentar uma ilusão de que temos ‘crédito no banco para emissões fósseis’. Pelo contrário, demonstra quão frágil e temporária é uma política de desenvolvimento que pretende perfurar mais poços de petróleo como oportunidade para financiar serviços e bens públicos e até mesmo projetos de transição.

É preciso refletir sobre o suposto desenvolvimento que acompanha a exploração de combustíveis fósseis e o crescimento econômico do agronegócio ao lado do des-desenvolvimento causado pela calamidade climática, a violência cometida contra povos indígenas e trabalhadores do campo, e o sistema de eco-apartheid que se anuncia todas as vezes que a população pobre é desalojada enquanto as classes mais altas podem se acomodar em hotéis, casas de veraneio e outras cidades.

Enquanto os setores que geram emissões seguem lucrando, os gastos são externalizados para o público, seja através do estado ou para a sociedade civil que tira do bolso para comprar mantimentos para atingidos.

A tendência é a escassez de recursos públicos quanto piores os desastres

Não seria mais válido um planejamento que centralizasse a diminuição da dependência econômica da exploração do petróleo?

  • Adesão a uma pauta internacional sobre perdas e danos que force países ricos a pagarem fundos adequados para países mais pobres e de forma independente de instituições como o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional.
  • Manutenção de um princípio de não-endividamento e de justiça fiscal onde recursos internacionais para mitigação e adaptação climática sejam assegurados por transferências em vez de empréstimos ou novos mecanismos de dívida ao redor da natureza. Isso inclui também a transferência de tecnologias estratégicas.
  • Um plano de redução de dependência de combustíveis fósseis que, em coordenação com outras áreas, identificasse potenciais investimentos para a geração de renda e empregos e determinasse áreas de exclusão de novas perfurações de petróleo. Tal plano pode vir acompanhado de propostas já conhecidas para que os países ricos compensem os países em desenvolvimento e subdesenvolvidos por deixarem o petróleo intocado.
  • Transversalidade na aplicação de políticas de adaptação e mitigação. Um excelente exemplo se dá no setor de transporte urbano, onde uma política tarifa zero atrelada à diminuição da dependência da população de carros individuais pode significar redução de emissões, cidades mais adaptadas às chuvas, maior qualidade de vida e menos mortes no trânsito.
  • Coordenação regional e alianças com países emergentes e subdesenvolvidos para garantir que o uso de recursos primários para projetos de transição seja alocado de acordo com as necessidades locais. Pouco adianta, por exemplo, garantir royalties de mineração para minérios estratégicos para o desenvolvimento de renováveis se os produtos e tecnologias derivados serão produzidos no exterior e subsequentemente importados a preços muito mais caros.
  • Adequação a princípios de justiça climática também nos projetos de transição, para que avanços em energia renovável total, por exemplo, não venham ao custo de comunidades locais.

O Brasil está muito melhor posicionado hoje para liderar o enfrentamento contra as mudanças climáticas que no governo anterior e tem sinalizado nessa direção através de alocações orçamentárias e programas de desenvolvimento tecnicamente mais ‘verdes’.

Porém, sem uma política de transição que realmente integre a necessidade de adaptação com mudanças radicais nas metas de mitigação climática, os custos de resposta humanitária e ambiental ficarão cada vez mais caros.

A tendência é a escassez de recursos públicos quanto piores os desastres, de modo que mesmo governos de esquerda atentos à questão climática se encontrarão em graves dificuldades para responder adequadamente.

Isso levaria à exaustão social e maior desamparo representado na necessidade do povo de pedir dinheiro na internet para garantir o básico de socorro.

A máxima de ‘prevenir é melhor que remediar’ vale para cada aspecto da crise ecológica e trabalhar, com mobilização popular, para superar a dependência do petróleo e do agro abrirá caminhos mais frutíferos, mais baratos e onde a ajuda humanitária seja presente nos momentos de exceção e não como suporte permanente numa catástrofe contínua.

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