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EUA espionam ONGs médicas e órgãos de saúde por todo o mundo

NSA espiona organizações de saúde para oferecer ao governo informações sobre como outros países respondem a epidemias e armas de destruição em massa.

The chemicals used at the U.S. Army Medical Research Institute can kill the world's smallest microbes, such as smallpox and Ebola.

Como parte de um esforço contínuo na “exploração de informações sobre medicina”, a NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA) se juntou à DIA (Agência de Inteligência de Defesa) para extrair “informações médicas” das comunicações interceptadas de grupos sem fins lucrativos a partir no começo dos anos 2000, conforme comprova este documento confidencial.

As informações médicas interceptadas podem incluir dados sobre epidemias, capacidade de governos estrangeiros responderem a armas químicas, biológicas e nucleares, recursos controlados por empresas do setor farmacêutico, avanços tecnológicos na medicina, além de pesquisas médicas e capacidade de resposta médica de diversos governos, de acordo com esse e outros documentos semelhantes vazados pelo ex-funcionário da NSA, Edward Snowden. Os documentos mostram que esse tipo de informação é usado para proteger as forças militares americanas, avaliar o nível de preparação de exércitos de outros países, criar oportunidades para que diplomatas ganhem credibilidade, descobrir programas de armas químicas, identificar instalações de armas biológicas e estudar a propagação de doenças.

A existência e a amplitude da coleta de informações médicas pelo governo americano já havia sido revelada – assim como um de seus usos mais nefastos, em que o fluxo de suprimentos médicos seria utilizado para localizar um indivíduo específico. Mas um artigo confidencial, publicado em novembro de 2003 em um boletim interno da NSA, SIDtoday, e agora revelado por The Intercept, explica em detalhes o nascimento da colaboração entre a agência e o NCMI (Centro Nacional de Inteligência Médica) da DIA, conhecido à época como Centro de Inteligência Médica das Forças Armadas. (O artigo está sendo publicado juntamente com outros 262 documentos pelo The Intercept hoje; veja aqui alguns dos destaques.)

HONG KONG, CHINA:  A tram driver is silhouetted at a tram stop in front of a billboard showing medical workers doctor wearing masks to prevent the SARS disease in the Central district of Hong Kong, 07 May 2004.  Although China's first 2004 SARS patient, a lab worker in Beijing, will be discharged from hospital 10 May 2004 and only one person on the mainland has died so far, authorities in Hong Kong have continued to push public service advertisements warning local citizens to be diligent in the fight against the disease which caused almost 800 deaths in 2003, nearly 300 in the former British colony.    AFP PHOTO/Samantha SIN  (Photo credit should read SAMANTHA SIN/AFP/Getty Images)Um outdoor mostra médicos usando máscaras para impedir a disseminação do vírus SRAG em uma estação de trem em Hong Kong em 2004.

Photo: Samantha Sin/AFP/Getty Images

Os trabalhos foram abertos quando a NSA trouxe um especialista em doenças infecciosas da DIA para ajudar sua problemática Divisão de Organizações Internacionais, responsável pela espionagem de ONGs, a explorar informações médicas sobre epidemias dos relatórios de organizações sem fins lucrativos. O funcionário da DIA se tornou “integrante” da NSA e recebeu acesso a informações interceptadas (SIGINT) em estado considerado “bruto” – ou seja, que ainda não haviam tido informações pessoais editadas ou removidas. Dentre os tópicos de interesse encontravam-se “SRAG na China, cólera na Libéria, e disenteria, pólio e cólera no Iraque”, de acordo com o artigo escrito pelo “gerente de contas da DIA” na NSA.

“O momento da chegada do novo integrante, coincidindo com uma epidemia internacional de SRAG, não poderia ter sido melhor”, informava o artigo. O SRAG, um vírus transmitido por vias respiratórias, infectou mais de 8 mil pessoas em todo o mundo, com epicentro na China, antes de ser contido.

Durante esse período, a NSA e seus parceiros pesquisaram “os efeitos da epidemia no aparato de segurança do Estado”, a cobertura da doença na mídia, os impactos políticos e econômicos da propagação do vírus, assim como o “impacto” do SRAG na “prontidão” do Exército de Libertação Popular da China, de acordo com os documentos da NSA sobre a conferência do SRAG publicados pelo The Intercept em maio.

No entanto, o SRAG não era o único motivo por trás da parceria, de acordo com o artigo do SIDtoday.

”Além disso, a colaboração possibilitou a obtenção de informações interceptadas exclusivas, que favorecem as Comunidades de Inteligência e o Departamento de Defesa de uma forma geral,” confirmava o artigo.

“Os esforços para desenvolver tópicos relacionados informarão e facilitarão os esforços futuros na exploração de informações médicas na Divisão de Organizações Internacionais”, acrescentou – porém, não especificou como as informações poderiam ser exploradas.

A colaboração uniu as interceptações de comunicações da NSA aos extensos conhecimentos especializados do NCMI. O NCMI tem especialistas, civis e militares, em sua maioria médicos e pesquisadores baseados nas instalações em Fort Detrick, Maryland, conduzindo estudos sobre doenças e outros tópicos relacionados a saúde, medicina, farmacologia e armas biológicas, tendo como um de seus principais objetivos a proteção das forças militares americanas espalhadas por todo o mundo.

(GERMANY OUT) Roentgenbild Herzschrittmacher (Photo by Becker & Bredel/ullstein bild via Getty Images)

Foto: Ullstein Bild/Getty Images

O esforço conjunto para explorar as “informações médicas interceptadas” ganhou notoriedade 13 anos mais tarde, à medida que dispositivos médicos e monitores corporais se integram cada vez mais à internet, ampliando as possibilidades de expandir o uso de informações coletadas além das epidemias e armas biológicas, para formas de vigilância mais específicas. O diretor assistente da NSA, Richard Ledgett, disse em junho que a agência de espionagem estava “estudando (…) teoricamente” a possibilidade de usar dispositivos médicos, como marca-passos, para vigiar pessoas, mesmo tendo admitido haver formas mais fáceis de espioná-las.

A NSA não fez comentários a respeito da colaboração. Falando em nome da DIA, o gabinete do diretor da Inteligência Nacional não quis responder a perguntas específicas sobre a parceria e escreveu por meio de um porta-voz que “desde as projeções e o rastreamento de epidemias infecciosas até a avaliação de ameaças internacionais à saúde, a inteligência médica é fundamental para proteção de nossas forças militares de diversos tipos de ameaças por todo o mundo”.

A evolução da coleta de inteligência médica

Um dos exemplos mais proeminentes da espionagem com foco médico veio em 2010, quando a agência elaborou um plano para enviar dispositivos de rastreamento clandestinamente em suprimentos médicos destinados a Osama bin Laden, que se encontrava doente, visando localizar o líder terrorista, conforme descrevem os documentos fornecidos por Snowden e publicados pelo The Intercept no ano passado.  Não ficou claro se o plano foi executado.

No entanto, de acordo com o Dr. Jonathan D. Clemente, médico e pesquisador da Carolina do Norte que escreveu um relatório sobre inteligência médica para o The Intellingencer, jornal publicado pela Associação de Ex-oficiais do Serviço de Inteligência dos EUA, as forças armadas norte-americanas vêm coletando inteligência em medicina, saúde e desenvolvimento na área de biologia desde a Segunda Guerra Mundial. Durante a guerra, o cirurgião general do exército começou a disseminar informações sobre a saúde pública de vários países para comandantes e cirurgiões militares antes dos combates.

À medida que a guerra se aproximava de seus estágios finais, os aliados começaram a apreender remédios e equipamentos médicos de adversários para uso próprio e a espionar os alemães para obter informações sobre possíveis planos para uso de armas químicas.

Os programas de inteligência médica foram extintos e apenas reinaugurados pela CIA por volta de 1947, cumprindo um papel importante para os serviços de inteligência no Bloco Comunista e durante a Guerra da Coreia.

Após diversas mudanças em cargos e gerência, a unidade de inteligência médica foi transferida permanentemente para a Agência de Inteligência de Defesa, em 1992, e recebeu a responsabilidade da “preparação de análises e projeções sobre sistemas médicos estrangeiros civis e militares, doenças infecciosas e riscos ambientais para a saúde, bem como pesquisas biomédicas”, de acordo com Clemente.

A atenção a doenças infecciosas resistentes a medicamentos só foi intensificada após os ataques de 11 de setembro, que reforçaram a necessidade de analistas de inteligência médica para monitorar as tentativas de inimigos de usarem ferramentas biológicas, como o anthrax, como armas de guerra.

Outros parceiros conhecidos da agência, agora denominada Centro Nacional de Inteligência Médica, incluem a Agência Nacional de Inteligência Geoespacial e o Departamento de Agricultura.

Um ex-diretor da unidade de inteligência médica da DIA, atualmente professor de biologia, Anthony Rizzo, descreveu sua missão como “proteger o país de ameaças de que as pessoas nunca tomarão conhecimento”.

O escritor, ex-analista de inteligência da NSA e ex-professor de assuntos de segurança nacional do Colégio de Guerra Naval dos EUA, John Schindler, descreveu os recursos de inteligência médica do governo americano em um artigo de blog como “absolutamente único”, defendendo que o NCMI é a “única unidade de inteligência dedicada na Terra”.

Guerra biológica e armas nucleares

Outros artigos do SIDtoday, de 2003, explicam o foco da NSA em inteligência médica, incluindo as estratégias para combater possíveis armas de destruição em massa e para colaborar com o Departamento de Segurança Interna.

Um dos artigos, de agosto de 2003, identifica um projeto da NSA responsável pelo monitoramento da evolução da biotecnologia em diversos países. “Podemos (…) determinar recursos específicos que possam distinguir um programa de armas biológicas de uma iniciativa de produção farmacêutica?”, escreveu o autor, identificando uma “fábrica iraniana [de armas biológicas] suspeita” como alvo de inspeção.

Uma outra apresentação de slides de abril de 2013, chamada de “Semanário das Operações de Fonte Especial” orientou analistas a respeito de uma missão de coleta de inteligência em duas universidades iranianas que a NSA suspeitava estarem envolvidas em programas de armas biológicas e químicas do Estado.

A pesquisa, envolvendo experimentos com humanos em pacientes expostos a produtos químicos de pesticidas, “também poderia ser usada no evento de (…) exposição a gases tóxicos”, informou o slide. “Esse tipo de informação permitiu que os clientes internos da [comunidade de inteligência], como o NCMI (Centro Nacional de Inteligência Médica) (…) analisassem os tipos de medidas defensivas sendo desenvolvidas pelo Irã, assim como a capacidade de resposta e proteção contra ameaças [de armas químicas e biológicas]”, explica uma nota de rodapé no slide.

Desde então, a coleta de inteligência médica continuou, de acordo com o suposto “orçamento negro” proposto para o ano fiscal de 2013, publicado em 2012.

O documento especifica uma solicitação ao NCMI para “expansão dos recursos de alerta para incidentes biológicos e de saúde que tenham implicações estratégicas através da implementação de ferramentas de análise mais sofisticadas para prever, detectar, preparar e responder a ameaças de saúde externas, enfatizando modelos de contágio por doenças infecciosas e de propagação de contaminantes tóxicos e radiológicos.

Detalhes do pedido de orçamento de 2013 identificam outros objetivos do Centro Nacional de Inteligência Médica: monitorar “recursos da indústria farmacêutica estrangeira”, “oportunidades na área de saúde para que diplomatas ganhem credibilidade”, “tendências e recursos de resposta e assistência médica civil e militar de outros países” e “avanços médicos de outros países na defesa contra armas nucleares, radiológicas, biológicas e químicas”.

O pedido de orçamento fez referência específica a pesquisas no Afeganistão e no Paquistão para que fossem coletadas informações sobre “recursos médicos civis e militares”, bem como fundos para permitir que analistas “ofereçam suporte a confecção da lista de alvos compartilhados e alvos ilegítimos”.

Foto principal: Equipe médica treina para situações de quarentena no Fort Detrick em Frederick, Maryland.

Tradução de Inacio Vieira

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