Previdência é um assunto complexo desde o nome. O assunto, espinhoso, refere-se ao sistema brasileiro de aposentadorias e outros benefícios garantidos pelo governo aos trabalhadores e vem ganhando espaço na mídia com a reforma previdenciária, que aguarda seu momento para ser enviada ao Congresso tão logo se conclua o processo de impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff.
Para comandar esse processo, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, escolheu Marcelo Abi-Ramia Caetano, um tecnocrata que critica o modelo distributivo da previdência brasileira, em que a contribuição dos trabalhadores ativos ajuda a manter a aposentadoria dos inativos, e acredita que o ideal seria cada um criar sua própria poupança para a velhice.
The Intercept Brasil debruçou-se sobre artigos, análises, estudos acadêmicos, capítulos de livro e entrevistas concedidas à imprensa por Caetano. Neles, o secretário demonstra ideias muito claras sobre como mudar o sistema de aposentadorias no Brasil, sempre amparado em estatísticas e, principalmente, em comparações com outros países.
Os discursos são sempre fatalistas e trazem a palavra “rombo”
Dificilmente você reconheceria Marcelo Caetano se o visse na rua. Aos 46 anos, o economista fez uma carreira ao longo dos últimos 19 anos como especialista em previdência. É um espécime destacado de tecnocrata. Passou boa parte de sua vida adulta estudando números a respeito do tema em uma sala comum no Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas). Vinculado ao Ministério do Planejamento, o instituto reúne ótimos pesquisadores que fazem estudos bastante relevantes, mas que não são obrigatoriamente ouvidos por quem está no comando.
Nos últimos três meses, contudo, Caetano nunca teve tanto poder nas mãos. É em seu gabinete, vinculado ao poderoso Ministério da Fazenda,, de lustradas paredes de madeira, que estão sendo gestados os detalhes das mudanças que Temer quer fazer nas aposentadorias e pensões recebidas pelos brasileiros.
Desde que sua agenda pública passou a ser divulgada, em 20 de julho, Caetano já recebeu, entre outros, representantes dos grupos financeiros J.P. Morgan, Santander, Gap Asset Management e banco BBM – todos potenciais interessados no destino das aposentadorias dos brasileiros diante desse novo governo. Houve também uma reunião com representantes de “confederações patronais” e de emissários da confederação nacional das empresas de previdência privada e da poderosa Confederação Nacional da Indústria. Não havia, até hoje, porém, registros de qualquer reunião com representantes de sindicatos de trabalhadores.É um mantra do pensamento econômico liberal culpar a previdência social pela fatia mais grossa dos problemas econômicos do país. Os discursos são sempre fatalistas e trazem a palavra “rombo”. Caetano faz parte desse time. Muito se especula sobre a reforma, mas pouco de concreto foi dito. Todos os sinais apontam, no entanto, para uma pancada nos interesses dos trabalhadores que projetam suas carreiras com base nas regras atuais.
The Intercept Brasil verificou que Caetano defende o fim da aposentadoria baseada na quantidade de anos trabalhados, além de acabar com a idade diferenciada para as mulheres se aposentarem. Também empunha a bandeira da interrupção de reajuste para os aposentados com base no salário mínimo, entre outras ideias – todas já encampadas, aqui e ali, por integrantes do núcleo do governo em entrevistas.
Ao Valor Econômico na semana passada, Michel Temer deu a senha do que virá por aí. “As centrais vão acabar não apoiando, seja qual for a reforma. Se não apoiarem, vamos mandar ao Congresso e ver o que acontece”.
A expectativa é de que Temer envie sua proposta para o Congresso logo após concluído o processo de impeachment. Será a prova de fogo dele perante os que apoiaram, no mercado, sua subida ao poder e que estão sedentos por um controle maior das despesas do Estado. E também o teste para saber até que ponto ele consegue controlar sua base no Senado e na Câmara pós-Eduardo Cunha.
Na semana passada, diante do aumento das especulações sobre o grau de impacto da reforma previdenciária nas regras atuais, Valor Econômico e Folha de S.Paulo entrevistaram Marcelo Caetano para tentar pistas sobre quais mudanças o governo vai tentar fazer. Ele não disse nada de objetivo em relação ao teor da reforma – mas deixou o recado: ou a reforma é aprovada ou o governo terá de aumentar os impostos.
Mas o secretário já disse e escreveu muita coisa ao longo dos últimos anos, quando ainda estava longe de um cargo executivo na área da previdência. Uma das críticas centrais e mais recorrentes de Caetano ao sistema adotado no Brasil é a possibilidade de aposentadoria por tempo de serviço. Para ele, somente quem atingisse determinada idade deveria se aposentar, não importando já ter trabalhado por 40 ou 50 anos. Ele apresenta dados estatísticos que mostram que o sistema de aposentadoria por tempo de contribuição provoca um número elevado de aposentadorias precoces (em média, aos 55 anos para os homens e aos 52 para as mulheres).Com linguagem mais eufemística que os “vagabundos” citados por Fernando Henrique Cardoso, Caetano acredita que o brasileiro tem condição de trabalhar muito mais do que hoje. Foi o que escreveu em 2014, no capítulo de um livro sobre o desenvolvimento do país, publicado pelo Ipea. Para ele, o sistema atual “induz a saída do mercado de trabalho de alguém ainda em plena capacidade para contribuir para a geração de riquezas do país“.
Ele já citou ao menos duas vezes como exemplo positivo a reforma feita na Grécia, com adoção de idade mínima de 67 anos para a aposentadoria – 12 anos a mais do que o existente, na prática, hoje no Brasil. Mais que isso, hoje, os homens, ao nascer, têm expectativa de vida de 71,6 anos, e ainda menor nas regiões Norte e Nordeste. Ou seja, num cenário grego, um trabalhador contribuinte receberia, em média, apenas quatro anos e sete meses de aposentadoria.
“Afinal, o que a Previdência tem a ver com a discriminação de gênero?”
O caso das mulheres é objeto de ainda mais crítica do secretário da Previdência. Ele aponta que, com a aposentadoria na idade média de 52 anos, isso significa que “o tempo de recebimento do benefício iguala-se ao de pagamento de contribuições; isso sem contar com o potencial período de recebimento de benefícios de risco, como as pensões por morte, aposentadorias por invalidez e salário-maternidade”.
Caetano é contra a regra que permite que as mulheres se aposentem mais cedo que os homens. Sua manifestação mais clara sobre isso veio em artigo publicado na “Folha de S.Paulo” no final de 2014.
Embora diga reconhecer argumentos em favor da diferenciação, Caetano escreveu que “problemas de mercado de trabalho devem ser resolvidos por meio de políticas laborais, e não previdenciárias”. E arremata com uma questão: “Afinal, o que a Previdência tem a ver com a discriminação de gênero?”.
Ele vai além e critica indiretamente os políticos que têm receio de mexer nesse vespeiro. “A opção por conceder uma aposentadoria especial para as mulheres é mais cômoda. Agrada ao eleitorado, joga para o futuro a questão da necessidade de financiamento, minimiza a necessidade de elevação dos gastos presentes com creches e ameniza a necessidade de enfrentar questões culturais relativas à divisão do trabalho por gênero”.
Essa diferenciação é histórica dentro do Brasil e sempre teve o viés de proteção da mulher, diante de uma cultura de dupla (ou tripla) jornada de trabalho. A diferenciação foi mantida na Constituição de 1988 e na última reforma da Previdência, feita há 18 anos pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Mudanças no sistema de previdência rural
O mesmo argumento é usado também para defender o fim das diferenças entre as aposentadorias para os trabalhadores rurais e para os trabalhadores urbanos. “A Previdência rural deveria ter regras parecidas com a urbana? Acredito que sim. Uma coisa é você considerar um problema de mercado de trabalho, outra coisa é considerar um problema de Previdência”, afirmou Caetano em entrevista também à Folha em fevereiro deste ano, três meses antes de assumir o cargo no governo.
O sistema rural, que não é uma previdência tradicional, foi criado para abranger cidadãos que vivem e trabalham em regiões que continuam longe das proteções do mercado formal. Hoje, o trabalhador que vive na área rural e que vende sua produção numa feira ou que planta apenas para a subsistência de sua família não contribui da mesma maneira que o trabalhador urbano que tem carteira assinada, ou mesmo o empregado de uma empresa rural, também com carteira assinada.
O trabalhador rural paga uma alíquota referente ao valor comercializado de sua produção. Se ele não vende nada, também não precisa pagar nada. Esse sistema de contribuição lhe garante o direito a receber a aposentadoria do governo cinco anos mais cedo, já que sua expectativa de vida é menor do que a de quem vive na cidade. Para Caetano, essa compensação tem que ser repensada.No estudo em que sugere pontos centrais de uma reforma previdenciária que necessite de alterações na Constituição, ele aponta, além do fim da aposentadoria por tempo de serviço, a necessidade de acabar com o reajuste das aposentadorias vinculado ao crescimento do salário mínimo (“Não só estamos fazendo o contrário como estamos na contramão do mundo”) e uma revisão geral nas regras de concessão de pensão por morte.
A questão da pensão para viúvas e filhos é, entre as mudanças com necessidade de mudança na Constituição, uma das que conta com maior abertura para mudanças. Ainda assim, deve provocar intenso embate, já que pode atingir mulheres de famílias mais pobres. Para Caetano, o Brasil apresenta regras lenientes para a concessão de pensão por morte. A não exigência de um período contributivo mínimo, a possibilidade de receber pensão em qualquer idade, a ausência de necessidade de laço matrimonial ou a manutenção do benefício após novo casamento permitem que o número de beneficiários de pensão por morte seja mais expressivo do que noutras nações”, afirmou em artigo.
Sistema “distributivo” é ruim
Outro ponto ao qual Caetano se opõe é a adoção da fórmula 85/95, sancionada no governo Dilma Rousseff, que criou uma opção de aposentadoria pela soma do tempo de contribuição e com a idade, o que permite evitar os descontos provocados pelo fator previdenciário. Assim como no caso da aposentadoria feminina, o secretário da Previdência afirma que a medida é eleitoreira.
Em comentário para reportagem da Folha, quando o assunto ainda estava em discussão no Congresso, em 2009, ele disse que “politicamente, o governo poderá dizer que atendeu ao apelo dos trabalhadores, criou uma opção menos rigorosa”. Mas ele afirma que a regra não mudaria nada na prática. Mais que isso, no longo prazo, o déficit da previdência cresceria 0,2% do PIB a cada ano.
Na essência de sua visão está a percepção de que o sistema “distributivo”, como ele mesmo coloca em seus estudos, é ruim. Em um estudo publicado em 2008 pelo Ipea, Marcelo Caetano e o colega Roberto de Rezende Rocha argumentaram que “o excesso de dispêndios” na Previdência, comparado a outros países, é, em parte, devido “ao componente distributivo da Previdência no Brasil” e também ao “número excessivo de beneficiários”.
“Ao contrário da experiência de outros países latino-americanos, o Brasil optou por manter o regime previdenciário na forma de repartição simples, ou seja, não trocou a forma de financiamento para capitalização”, escreveu.
Traduzindo, o Brasil não adotou um modelo em que os próprios trabalhadores decidem o quanto poupar para a aposentadoria, geralmente em regimes de previdência complementar. Pela lógica de repartição, atualmente em vigor no país, quem está na ativa contribui para pagar a aposentadoria de outros. No sistema de capitalização, a lógica é totalmente individualista: cada um é responsável por sua aposentadoria.
“Do ponto de vista técnico, seria interessante ter uma transição mais curta, em torno de 15 anos”
Nenhuma das mudanças planejadas por Caetano, e que podem ser encampadas politicamente tanto pelo ministro Henrique Meirelles quanto por Michel Temer e seu entourage, seria implementada do dia para a noite. Aí é que entram as também polêmicas “regras de transição”. E nisso Caetano também tem opiniões que causam urticária em sindicatos. O economista defendeu recentemente uma transição de cinco anos.
Em fevereiro deste ano, em entrevista à Folha, Caetano disse que, “do ponto de vista técnico, seria interessante ter uma transição mais curta, em torno de 15 anos”, e ressaltou que isso dependeria “de capacidade política para aprovação”. Em maio, pouco antes de assumir o cargo, ele disse ao Valor Econômico que a transição ideal seria entre cinco e dez anos.
O governo deve enviar a reforma ao Congresso nas próximas semanas. A promessa inicial, após a chegada da nova equipe econômica, era enviar tudo em até 30 dias. Já estamos com 90. O aumento do tempo reflete o clima político sensível com o desfecho do processo de impeachment de Dilma Rousseff e as eleições municipais. Do outro lado, contudo, há a pressão de investidores por sinais mais concretos de reformas institucionais.
Além de Marcelo Caetano, também está debruçado sobre a questão o ministro Eliseu Padilha, da Casa Civil, de olho mais no aspecto político da questão e como a proposta poderá estremecer a base de sustentação de Temer. Um dos fiadores da subida de Temer ao poder é o deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força Sindical, a principal central sindical apoiadora do governo. Pelo andar da carruagem, a relação entre Paulinho e Temer passará por dias difíceis.
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