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Donald Trump, o Silvio Berlusconi americano

Nem Trump nem Berlusconi têm um programa político real, eles vendem a si mesmos. Os italianos precisaram de 17 anos para perder a paciência com Berlusconi. Por quanto tempo os americanos aguentarão Donald Trump?

Donald Trump, o Silvio Berlusconi americano

Como um escritor que cobriu Silvio Berlusconi desde que se tornou Primeiro Ministro da Itália, em 1994, tem sido difícil não ser tomado por uma forte sensação de déjà vu assistindo à campanha presidencial de Donald Trump nos EUA.

Algumas semelhanças são tão óbvias quanto perturbadoras. Ambos são milionários que acumularam suas fortunas iniciais através do mercado imobiliário e se tornaram celebridades por conta da riqueza e do estilo de vida de playboy. Ambos passaram por divórcios difíceis e se gabam de sua virilidade. Particularmente, Trump defendeu sua masculinidade em um debate em março deste ano, enquanto Berlusconi uma vez contou: “A vida é questão de perspectiva: Imagina todas as mulheres que querem dormir comigo e não sabem”. (A declaração veio antes de Berlusconi começar a dar festas de bunga bunga com a presença de prostitutas). Os dois são mestres na manipulação da mídia: Berlusconi é proprietário da maior rede de televisão privada da Itália, e Trump é estrela de seu próprio reality show e criador da marca “Trump”. Ao ingressarem na política, ambos adotaram o estilo do grande antipolítico: um empresário extremamente bem-sucedido concorrendo com “políticos profissionais” insípidos, que nunca lideram com uma folha de pagamento e que estão arruinando seus respectivos países.

A estratégia funcionou bem para Berlusconi — ganhou três eleições nacionais e foi primeiro ministro por nove anos entre 1994 e 2011. Será que a estratégia trará os mesmos resultados para Trump?

Ambos são deliberadamente transgressivos, quebrando o tédio da política convencional com o uso de uma linguagem vulgar, insultando e gritando com adversários, adotando slogans simples e fáceis de lembrar e fazendo piadas obscenas e comentários misóginos. Suas “gafes” orais — que seriam suicídio no caso da maioria dos políticos —, na verdade, fazem parte do que os torna atraentes para alguns. Lembro de quando Berlusconi presidiu uma conferência europeia e, quando as negociações estagnaram, o primeiro ministro disse aos chefes de Estado: “Vamos descontrair o clima conversando sobre futebol e mulheres”. Dirigiu-se a Gerhard Schroder, à época chanceler da Alemanha, que havia sido casado por quatro vezes: “Você, Gerhard”, disse Berlusconi, “o que você sabe sobre mulheres?”. O comentário foi recebido com frieza. De imediato, me perguntei como Berlusconi poderia ser tão tolo. Mas seu verdadeiro público não eram os chefes de Estado europeus — eram os homens italianos em casa. Afinal, quais são os dois assuntos favoritos na maioria dos bares italianos? Futebol e mulheres.

Da mesma forma, não seria difícil imaginar as consequências catastróficas, para Trump, de seus comentários sobre, possivelmente, o ciclo menstrual da apresentadora da Fox News, Megyn Kelly, e de sua capacidade de conquistar “uma bundinha jovem e atraente”. Mas esse desprezo pelo “politicamente correto” permitiu que Berlusconi e Trump criassem, com sucesso, uma personalidade híbrida rara: um tipo de bilionário comum que, por outro lado, devido à extrema riqueza, sucesso e audácia, é um tipo de super-homem a quem as regras de conduta normais não se aplicam. Ao mesmo tempo, seu discurso curto e grosso toca de forma visceral muitas pessoas, em especial, a parte menos escolarizada do eleitorado. Ambos exercem uma atração inter-classista inusitada. São homens ricos que buscam implementar políticas em benefício de ricos (veja a proposta de redução de impostos de Trump), enquanto fazem um apelo retórico eficiente, usando uma linguagem de bar, aos anseios das classes média e trabalhadora que passam por dificuldades.

“Antes de tentar competir comigo, tente ao menos vencer uns campeonatos nacionais!”

Nem Trump nem Berlusconi têm um programa político real, eles vendem a si mesmos. Berlusconi costumava dizer que a Itália precisa mesmo é de mais Berlusconi. Lembro de um momento muito revelador em sua primeira campanha eleitoral: durante um debate televisivo, seu adversário, o economista Luigi Spaventa, apontava as falhas e inconsistências do programa econômico de Berlusconi, quando ele o interrompeu no meio de uma frase e mencionou as vitórias de seu time de futebol, o Milan AC: “Antes de tentar competir comigo, tente ao menos vencer uns campeonatos nacionais!” O comentário tinha ares de uma verdade incontestável — independentemente da irrelevância perante a capacidade de Berlusconi governar. Da mesma forma, quando perguntado sobre como fará com que o México pague pela muralha gigante na fronteira entre os dois países norte-americanos, Trump simplesmente respondeu: “Não se preocupe, eles vão pagar”!

Ainda assim, há outro elemento — um elemento sistêmico — que ajuda a explicar por que a Itália e os EUA são as únicas grandes democracias em que o circo de um bilionário pode armar sua tenda: a desregulamentação quase total da mídia televisiva. Através de seus contatos políticos (provas de subornos), Berlusconi pode adquirir um monopólio virtual das redes de televisão privadas nos anos 70. O magnata criou jornais televisivos tendenciosos, oferecendo programas de TV para valentões como Vittorio Sgarbi e Paolo Liguori, que vendiam teorias conspiratórias, como Glenn Beck, e gritavam com adversários políticos, como Bill O’Reilly. Tanto na Itália quanto nos EUA, há grandes canais de televisão que, na prática, funcionam como o departamento de mídia de um dos grandes partidos políticos dos países. Contudo, é importante observar que a transformação do cenário político na Itália e nos EUA não aconteceu por acaso, mas foi, em parte, resultado de decisões políticas.

Por volta de 30 anos atrás, a Comissão Federal de Comunicações (Federal Communications Commission – FCC) usava regras antiquadas chamadas de Doutrina da Integridade (Fairness Doctrine) e Doutrina da Igualdade de Tempo (Equal Time Doctrine). Eram vistas como uma forma de garantir que os detentores de licenças privadas operassem, ao menos parcialmente, em benefício do interesse público e garantissem uma certa pluralidade de pontos de vista. Essas regras faziam sentido na era analógica, quando o número de frequências era limitado. A televisão (e os jornais televisivos) era dominada pelos três grandes canais, competindo entre si para aumentar sua fatia no mercado. Não fazia sentido para esses canais criar um noticiário que alienasse espectadores do partido adversário. Não foi exatamente um período áureo. Os noticiários eram discutivelmente monótonos, centristas e defendiam a manutenção do status quo, mas havia regras básicas de civilidade e um certo respeito pela veracidade dos fatos.

Com o advento da TV a cabo, nos anos 70, e com a “Revolução Reagan”, nos anos 80, tudo mudou. Presidente da FCC durante o mandato de Reagan, Mark Fowler insistia que a televisão não era diferente de nenhum outro eletrodoméstico comercial — “uma torradeira com imagens”. As inovações tecnológicas no setor — o surgimento da TV a cabo — reforçaram essa posição. Com dezenas e, em dado momento, centenas de canais, parecia que as antigas regras sobre integridade e equilíbrio estavam ultrapassadas, já que o grande número de canais garantiria a pluralidade almejada. Mas essa perspectiva não levou em conta o fato dessa não ser a forma como as pessoas assistem ao noticiário: o telespectador não busca diversos pontos de vista, alternando entre PBS, Fox, MSNBC e CNN. Cada grupo procura o noticiário que se adequa a suas predisposições políticas e ali permanece.

Em 1987, Fowler revogou a Doutrina da Integridade. No ano seguinte, Rush Limbaugh criou seu programa de rádio com retransmissões locais por todo o país. A Fox News, dirigida por um ex-membro do Partido Republicano, Roger Ailes, começou a operar em 1996.

Na Grã-Bretanha, Alemanha e França, os órgãos de comunicação estatais ainda dominam a mídia, agem como árbitros do debate público e estabelecem fatos consensuais, prevalecendo uma situação semelhante às circunstâncias da TV americana antes de ser alterada por Reagan e pelo canal Fox. Isso não impediu o surgimento de movimentos políticos extremistas, mas possibilitou que os principais partidos tradicionais e seus eleitores aceitassem realidades fundamentais, como o aquecimento global e o fracasso da invasão do Iraque. Não é aceitável ir à televisão defender qualquer absurdo.

A Itália, em contrapartida, é a exceção à regra na Europa. Berlusconi transformou seus canais em seu arsenal de guerra, assim como colocou seus próprios aliados em posições estratégicas no sistema de comunicação estatal — seu aparente adversário. Um diretor do maior canal estatal inventou um sistema chamado de “sanduíche”, onde todas as notícias políticas seriam apresentadas da mesma forma. Começando com a posição do governo Berlusconi, acrescentando uma fatia fina da opinião da oposição e concluindo com outra fatia generosa do contra-argumento governista. Sem sua rede sofisticada de proteção midiática, é difícil imaginar como Berlusconi teria sobrevivido a tantos escândalos catastróficos.

Visando reforçar seu posicionamento alternativo, tanto Berlusconi quanto Trump atacaram fortemente a “grande mídia”. Trump e seu uso das redes sociais para atacar seus críticos remete aos frequentes ataques de Berlusconi aos seus críticos na mídia. Há pouco tempo atrás, um incidente particularmente perturbador ocorreu em um dos comícios de Trump, onde o candidato republicano pediu que os cinegrafistas apontassem suas lentes para uma manifestante, tornando-a alvo da raiva de seus correligionários. [Desde então, a campanha de Trump revogou as credencias de imprensa de mais de duas dúzias de organizações jornalísticas, incluindo  The Washington Post, Politico, The Huffington Post e Buzzfeed.] Isso me lembrou de um incidente em que Berlusconi se colocou ao lado de seu grande amigo, Vladimir Putin, em uma coletiva de imprensa em Moscou. Quando uma jornalista russa fez uma pergunta difícil sobre o líder russo (isso aconteceu há muitos anos, quando ainda era possível fazer perguntas difíceis sobre Putin), Berlusconi gesticulou como se atirasse na jornalista com uma metralhadora. Em um país onde diversos jornalistas críticos a Putin foram assassinados, a atitude de Berlusconi não teve a menor graça.

“A imprensa é um grande problema neste país”

Mais recentemente, Trump indicou que pretendia alterar as leis de difamação nos EUA para impedir que jornalistas escrevam matérias negativas a seu respeito. “A imprensa é um grande problema neste país”, disse Trump. “São piores do que políticos. (…) Podem escrever o que quiserem e não podem ser processados por causa das leis de difamação. Basicamente, eles não existem, e uma das coisas que vou fazer é abrir as leis de difamação”.

Berlusconi não teve o mesmo problema na Itália, onde as leis de difamação são mais favoráveis aos reclamantes. Na lei de difamação americana, a verdade representa uma defesa absoluta e, no caso de a mídia publicar informações falsas sobre uma figura pública, o reclamante precisa comprovar que o difamador sabia que a informação era falsa ou que agiu de forma negligente. Na Itália, uma informação pode ser verdadeira e difamatória ao mesmo tempo. Berlusconi e seus aliados processaram dezenas de críticos e jornalistas ao longo dos anos, sendo derrotados com frequência, mas impondo gastos a seus críticos, intimidando editores e os mantendo atrelados a processos judiciais ou limitados ao silêncio.

Eu conheci as distinções das leis de difamação italianas por experiência própria. Quando meu livro, The Sack of Rome (O Saque de Roma), foi lançado na Itália, o melhor amigo de Berlusconi e o presidente de sua empresa de comunicação, Mediaset, me processaram criminalmente por difamação. O argumento principal não era que os fatos no livro estavam incorretos, mas que eu deveria ter incluído outros elementos de prova favoráveis, que teriam oferecido uma visão mais positiva do ex-primeiro ministro e, em sua visão, uma imagem mais realística. Felizmente, eu obtive ganho de causa em primeira e segunda instâncias. Mas na Itália, onde há três instâncias, o caso ainda está sendo processado pelos órgãos legais 11 anos depois da abertura do processo.

Podemos aprender com Berlusconi de forma a prever a trajetória de Trump e nos protegermos? Sim e não. Indro Montanelli, um jornalista conservador italiano e crítico voraz de Berlusconi, disse que a Itália precisa desenvolver uma imunidade a Berlusconi absorvendo uma certa dose de Berlusconi. Infelizmente, foram necessários 17 anos de constantes escândalos e incompetência econômica para que os italianos se cansassem do ex-primeiro ministro. Um aspecto positivo a ser mencionado é que a temporada eleitoral americana é muito mais longa do que a italiana. Berlusconi chegou ao poder através de uma queda de braço rápida de menos de três meses. Nove meses de exposição constante de Trump podem ajudar a criar uma fadiga e permitir que a imunidade seja estabelecida. Além disso, Berlusconi se beneficiou das complicações da política italiana, que se baseia um um sistema semi-proporcional complexo: o italiano venceu eleições sem nunca ter obtido a maioria dos votos; Trump terá mais dificuldade em alcançar 50,1%.

Por fim, Berlusconi e Trump têm uma inclinação à autodestruição. A vertigem causada pela adoração do público — a embriaguez narcisista da atenção constante da mídia — cria um sentido de onipotência que os faz cometer deslizes, como Trump cometeu quando recusou se distanciar de David Duke e do Ku Klux Klan. Berlusconi, assim como Trump, criou um tipo de reality show constante, em que os níveis de audiência dependem de que eles continuem a dizer ou se comportar de forma ofensiva. Berlusconi, assim como Trump, se supervalorizou e subestimou seus adversários com frequência. Além de ter vencido três vezes, Berlusconi perdeu duas eleições para um político (Romano Prodi) muito mais desinteressante, mas muito mais competente. Esperamos que não leve 17 anos para que os EUA se cansem de Donald.

Este artigo foi publicado originalmente em março de 2016

Tradução de Inacio Vieira

 

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