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Washington Post pede ação legal contra sua fonte, Edward Snowden, após aceitar prêmio por reportagem

O Washington Post foi extremamente beneficiado por conta de Snowden. Agora, seu editorial quer vê-lo atrás das grades.

Washington Post pede ação legal contra sua fonte, Edward Snowden, após aceitar prêmio por reportagem

Três dos quatro meios de comunicação que receberam e publicaram um grande número de documentos secretos da NSA fornecidos por Edward Snowden — The Guardian, The New York Times e The Intercept — defendem que o governo dos EUA permita que o whistleblower retorne aos EUA livre de acusações. Esse é o curso normal de um veículo de comunicação, que deve proteção a suas fontes, e que —por ter aceitado o material disponibilizado pela fonte e os publicado — declara de forma implícita que as informações da fonte eram de interesse público.

Mas o mesmo não vale para o Washington PostDiante de uma crescente campanha liderada pela ACLU (União Americana pelas Liberdades Civis) e pela Anistia Internacional para garantir o indulto a Snowden, marcada para coincidir com o lançamento da biografia fictícia dirigida por Oliver Stone, Snowden, o editorial do Washington Post condenou o indulto e defendeu de forma explícita que Snowden — sua própria fonte — fosse julgado pelas acusações de espionagem ou, como “segunda boa opção”, aceitasse “a responsabilidade criminal por seus excessos em troca de um acordo de leniência oferecido pelo governo dos EUA”.

Manchete: “Sem indulto para Edward Snowden”

Ao tomar essa postura, o jornal americano conseguiu uma infeliz proeza na história da mídia americana, se tornando o primeiro jornal a defender explicitamente a acusação criminal de sua própria fonte, após ter recebido dela a oportunidade de vencer e aceitar o Prêmio Pulitzer por Serviço Público. Mais surpreendente ainda do que esse ato de traição jornalística contra a fonte do jornal são as justificativas utilizadas.

Os editores do Washington Post admitem que um — apenas um — dos programas que Snowden ajudou a revelar foi exposto justificadamente — o programa de metadados nacional, pois ele foi considerado “uma flexibilização, ou até uma completa violação, da lei de vigilância federal, além de oferecer riscos à privacidade”. Quanto à “correção na legislação” que seguiu a explicação, o Washington Post reconhece: “Devemos tais reformas necessárias ao Sr. Snowden.” No entanto, o programa de metadados não foi revelado pelo jornal, e sim pelo The Guardian.

Fora a revelação inicial de Snowden, sugere o jornal, não houve interesse público atendido pela revelação dos outros programas. Na verdade, dizem os editores, as revelações geraram danos reais. Isso inclui o PRISM, sobre o qual diz o jornal:

O problema é que Snowden fez mais do que isso. Ele também furtou, e vazou, informações sobre um programa distinto da NSA de monitoramento internacional da Internet, o PRISM, que era evidentemente legal e obviamente não representava uma ameaça à privacidade. (Além disso, não era permanente; a lei que o autorizava expirava no ano que vem.)

Ao defender que nenhum interesse público foi atendido pela revelação do PRISM, o que os editores do Washington Post deixaram de mencionar? Que o jornal que — ao lado do The Guardian— optou por expor o programa PRISM publicando seus detalhes operacionais e um manual ultraconfidencial em sua primeira página chama-se Washington Post. Após optar pela publicação do programa, anunciaram a exposição do PRISM de forma explícita (assim como outras revelações) quando se inscreveram para concorrer ao Prêmio Pulitzer.

“Inteligência britânica e americana coletam dados de nove empresas com amplo programa secreto”

“Por suas revelações de extensa vigilância secreta pela Agência de Segurança Nacional, marcada por reportagens embasadas e inovadoras que ajudaram o entendimento do público sobre como as revelações de encaixam na estrutura de segurança nacional.”

“Documentos mostram que os EUA coletam dados de empresas de Internet”

Se os editores da página editorial do Washington Post realmente acreditam que o PRISM era um programa completamente legítimo e que nenhum interesse público foi atendido através de sua exposição, eles não deveriam atacar seus próprios editores, responsáveis pela publicação, se desculpando por prejudicar a segurança do país e pelo alvoroço visando o Pulitzer? Se os editores do jornal sediado em Washington tivessem alguma integridade intelectual, aceitariam a responsabilidade institucional pelo que parecem considerar um erro grave que colocou o país em risco, em vez de fingir que a culpa é toda de sua fonte, como pretexto para defender sua acusação criminal.

 

Mais grave do que a desonestidade intelectual de seus editores é sua crescente covardia. Após criticar a revelação do PRISM feita por seu próprio jornal, acusa o editor: “Pior ainda — muito pior — ele também vazou detalhes de operações de inteligência facilmente defensáveis.” Mas o que omitem de forma imperdoável é que não foi Edward Snowden, mas os editores sêniores do Washington Post, que decidiram tornar públicos esses programas. Novamente, vale observar as reportagens em que o jornal foi citado ao receber o Prêmio Pulitzer:

‘Orçamento negro’ revelado
Entrada na Web: US$ 52 bilhões: Orçamento Negro
‘Orçamento negro’ mostra em detalhes a guerra no espaço cibernético
Arquivos mostram que a NSA atacou rede criptografada Tor
NSA coleta milhões de listas de endereços de e-mail em todo o planeta
Revelado o papel da NSA nos ataques por drones
NSA grampeia links de Yahoo e Google
Reportagem on-line: Documentos de Snowden revelam que NSA rastreia localização de chamadas por telefone em todo o mundo
Entrada na Web: Como a NSA usa rastreamento de celulares para encontrar e ‘desenvolver’ alvos
Entrada na Web: Como a NSA está rastreando pessoas neste momento

 

Quase todas essas reportagens acarretavam a exposição que os editores do Washington Post hoje chamam de “detalhes de operações de inteligência internacionais”. Pessoalmente, acredito que a decisão do jornal de revelar essas informações foi baseada em motivos extremamente concretos. Como Snowden explicou em sua primeira entrevista on-line por mim conduzida em julho de 2013, sua preocupação não era apenas a invasão de privacidade de americanos, mas a de todos os seres humanos, porque — em suas próprias palavras — “vigilância sem suspeita não é aceitável simplesmente porque vitima apenas 95 por cento do planeta, em vez de 100 por cento. Os fundadores de nosso país não disseram: ‘Consideramos verdades evidentes por si mesmas que todos os cidadãos americanos nascem iguais’.

Portanto, apoio a decisão do jornal ter publicado os documentos expondo as “operações de inteligência internacionais”. Isso porque concordo com o que foi dito pelo editor executivo do Washington Post, Marty Baron, em 2014, em um artigo onde comemoravam seu próprio Prêmio Pulitzer:

O editor executivo do jornal contou na segunda-feira que a reportagem expôs uma política nacional “com consequências profundas para os direitos constitucionais de cidadãos americanos” e para os direitos de indivíduos por todo o mundo (ênfase minha). “A revelação da grande expansão da rede de vigilância da NSA foi inquestionavelmente um serviço público”, disse Baron. “Ao construir um sistema de vigilância com uma dimensão e invasão de tirarem o fôlego, nosso governo também erodiu a privacidade individual de forma acentuada. Tudo isso foi realizado secretamente, sem debate público, e com uma supervisão evidentemente fraca.”

A página editorial é separada da organização de notícias e não fala em nome da primeira. Eu duvido que os jornalistas e editores do Washington Post que trabalharam nessas reportagens concordem com o editorial. Mas ainda assim, se, agora, os editores da página editorial da publicação desejam criticar as revelações, e até mesmo defender a prisão da própria fonte do jornal por esses motivos, devem ao menos ter coragem de reconhecer que foi o Washington Post, e não Edward Snowden, que escreveram o editorial e a opção institucional de expor esses programas para o público. Eles podem querer criticar seu próprio jornal, e até mesmo defender a condenação de Snowden por revelar programas ultraconfidenciais que agora alegam que nunca deveriam terem sido revelados.

 

Mas isso enfatiza uma covardia crônica que frequentemente emerge quando pessoas do establishment querem criticar Snowden. Como foi amplamente documentado, e como foi enfatizado por todos os jornais envolvidos nessa reportagem— incluindo o Washington Post—, Snowden não participou da decisão em torno dos programas que seriam expostos, além de inicialmente fornecer o material para os jornais. Snowden não confiou em si mesmo para realizar essas decisões jornalísticas e, portanto, deixou que os jornais decidissem quais revelações atenderiam —ou não— ao interesse público. Se um programa acabou por ser revelado, pode-se argumentar que Snowden carrega uma certa porcentagem de responsabilidade —já que forneceu os documentos usados—, mas a responsabilidade final é dos editores do jornal que tomaram a decisão de revelá-los, teoricamente por terem concluído que atenderiam ao interesse público.

Ainda assim, inúmeras vezes, os críticos de Snowden — como Fred Kaplan, do site Slate, e o editorial do Washington Post — omitiram este fato crucial, e, portanto, seus argumentos induzem o leitor ao erro. Nesta semana, ao atacar Snowden, por exemplo, Kaplan defende o mesmo argumento usado inúmeras vezes: que as revelações de Snowden foram além da invasão de privacidade de americanos.

Deixemos de lado a perspectiva narcisista e jingoísta de que whistleblowers e canais de mídia apenas devem se preocupar com a violação da privacidade dos cidadãos americanos, mas não com os outros 95% do planeta designados de “não americanos”. Ignoremos também o fato de que muitas das notícias mais celebradas na história da mídia americana se destinavam a revelar operações secretas estrangeiras sem qualquer paralelo com a violação dos direitos constitucionais de cidadãos americanos (como os Pentagon Papers, Abu Ghraib, e as revelações do Washington Post sobre as prisões secretas da CIA).

O cerne da questão é que a lista de Kaplan sobre as Revelações Negativas de Snowden (à semelhança da lista do Washington Post) envolve invariavelmente reportagens publicadas não por Snowden (nem pelo The Intercept ou pelo The Guardian), mas pelo New York Times e pelo Washington Post. Mas, assim como os editores da página editorial do jornal, Kaplan é um grande covarde por acusar os editores mais sêniores desses dois jornais de traição, por teoricamente auxiliarem terroristas ou colocarem em risco a segurança nacional, portanto finge que Snowden — apenas Snowden — tomou a decisão de revelar esses programas para o público. Se Kaplan e os editores do Post acreditam que todas essas reportagens deveriam ter sido mantidas em segredo e prejudicado a segurança do público, por que não estão atacando os editores e o jornal que tomou a decisão final de publicá-las? Snowden nunca publicou sequer um documento, portanto, quaisquer programas revelados é de responsabilidade dos veículos de comunicação.

Seja o que for verdade, a lealdade aos oficiais do governo americano tem de ser extremamente servil para considerarem-se jornalistas, enquanto simultaneamente defendem a criminalização de transparência, vazamentos, fontes e debates públicos. Mas isso não é novidade: Há muito tempo, existe um grupo grande grupo nos EUA que deveria se autodenominar Jornalistas Americanos contra a Transparência, os quais são muito mais leais ao governo dos EUA do que aqueles que seriam os objetivos de sua profissão, e, portanto, defendem àqueles que mantêm em segredo dados oficiais regularmente, em vez dos que tentam revelá-los, chegando ao ponto de desejar a prisão de suas fontes.

Mas o que torna notável o editorial do Washington Post é que seus editores estão literalmente defendendo um processo criminal contra uma das fontes mais importantes da história do jornal. Após valerem-se da glória de prêmios e admiração, e de terem se beneficiado de um número incalculável de cliques, os editores da página editorial do jornal agora querem que a fonte que permitiu que tudo isso acontecesse seja colocado em uma cadeia americana e rotulado como criminoso. É uma distorção da realidade indescritível.

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