Nacionalismo, demagogia e intolerância eram justamente os principais componentes do tom das manifestações que defenderam o impeachment de Dilma Rousseff e acabaram desencadeando o processo que levou o ex-vice-presidente Michel Temer à posição de titular. No entanto, em seu primeiro discurso na ONU, Temer criticou, sem ironia, as atitudes de que se beneficiou.
Quem lê o discurso, que inclui exaltação aos programas de transferência de renda e críticas à paralisia política, sem saber seu autor pode até achar que as palavras são da ex-presidente petista, com quem rompeu. Ou de qualquer outro autor que estivesse bem distante das medidas que seu governo vem sinalizando desde quando ainda era interino e do perfil do atual congresso brasileiro.
Temer também elogiou a atuação do governo de Cuba na reaproximação dos Estados Unidos. Infelizmente, porém, o cumprimento não foi recebido pelo representante cubano, porque ele estava entre os que se retiraram do recinto no momento em que o governante brasileiro foi anunciado.
Separamos nove pontos em que fica clara a distância entre o discurso do peemedebista e a realidade:
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“Os focos de tensão não dão sinais de dissipar-se. Uma quase paralisia política leva a guerras que se prolongam sem solução. A incapacidade do sistema de reagir aos conflitos agrava os ciclos de destruição. A vulnerabilidade social de muitos, em muitos países, é explorada pelo discurso do medo e do entrincheiramento. Há um retorno da xenofobia. Os nacionalismos exacerbados ganham espaço. Em todos os continentes, diferentes manifestações de demagogia trazem sérios riscos.” [ênfases da edição]
Temer resolveu repetir sua antecessora. A paralisia causada pelo processo de impeachment, que começava na política e afetava a economia, era um elemento recorrente nos discursos de Dilma até seu afastamento.
“Implementamos programas para garantir a retomada do crescimento. Alguns estão paralisados desde o início do ano porque, até maio, não tínhamos as comissões formadas para apreciar as medidas propostas”, reclamou a então presidente, em maio. Porém, quando era Dilma quem fazia a reclamação sobre paralisia, a oposição — encarnada principalmente em Eduardo Cunha — usava abertamente essa estagnação como estratégia política.
O nacionalismo exacerbado criticado por ele foi visto nas manifestações pró-impeachment, coloridas de verde e amarelo, onde se ouvia o hino nacional cantado a plenos pulmões. A camisa da seleção masculina de futebol foi tão utilizada que o próprio criador do uniforme se incomodou.
Temer critica “manifestações de demagogia”. Segundo o Dicionário do Aurélio:
Após ler essa definição, o que dizer sobre as manifestações que pediam a saída de Dilma e intervenção militar? Em 2015, Temer dizia mostrarem que “algo está errado e precisa consertar”. No entanto, quando os protestos passaram a ser contra ele, sua resposta foi subestimar o número de pessoas na rua e taxar a todos de vândalos.
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“O desenvolvimento, mais do que um objetivo, é um imperativo. Uma sociedade desenvolvida é aquela em que todos têm direito a serviços públicos de qualidade – educação, saúde, transportes, segurança.”
Para esta, basta lembrar que seu grupo de governo é composto por:
- Um ministro da educação que defende cobrança de mensalidades em universidades públicas.
- Um ministro da saúde que diz ser impossível “sustentar o nível de direitos” garantidos pela constituição. Entre os tais direitos está a “universalidade da cobertura e do atendimento” – ou seja, a garantia de que todos tenham acesso ao sistema de saúde.
- Um ministro dos transportes que anuncia a ordem: “privatizar”
- Um ministro da justiça que defende menos pesquisa e mais “equipamentos bélicos”
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“Perseguições, prisões políticas e outras arbitrariedades ainda são recorrentes em muitos quadrantes. Nosso olhar deve voltar-se, também, para as minorias e outros segmentos mais vulneráveis de nossa sociedade. É o que temos feito no Brasil, com programas de transferência de renda e de acesso à habitação e à educação, inclusive por meio de financiamento a estudantes de famílias pobres. Ou com a defesa da igualdade de gênero, prevista expressamente na nossa Constituição. Cumpre a todos nós garantir o direito de todos.”
“Perseguições, prisões políticas e outras arbitrariedades” são justamente as respostas do atual governo a diversas manifestantes que gritam “Fora, Temer” pelo Brasil, mesmo pacificamente. Em São Paulo, 26 manifestantes foram presos antes mesmo de o protesto começar, com a ajuda de um infiltrado do Exército.
Eis um trecho da decisão pela liberação dos estudantes paulistas, redigida pelo juiz Paulo Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo:
“O Brasil como Estado Democrático de Direito não pode legitimar a atuação policial de praticar verdadeira ‘prisão para averiguação’ sob o pretexto de que estudantes reunidos poderiam, eventualmente, praticar atos de violência e vandalismo em manifestação ideológica. Esse tempo, felizmente, já passou.”
Neste trecho do discurso, Temer ainda exalta os programas de transferência de renda, de acesso à habitação e à educação, bem como as cotas. Com menos de uma semana de interinidade, a tesoura já era passada nos programas sociais enaltecidos no discurso. Apenas três exemplos:
- Revogação da construção de mais de 11 mil unidades do “Minha Casa, Minha Vida”
- Estudo para verificar as possibilidades de cortar 14 milhões de famílias do “Bolsa Família”
- Suspensão do programa nacional de combate ao analfabetismo
Já exaltação à igualdade de gênero e a defesa das minorias ficam apenas no discurso, como se pode perceber em seu portfólio ministerial, que extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. Inicialmente, o time foi escalado apenas por homens ricos, brancos, héteros e cisgêneros. Após críticas, Grace Maria Fernandes Mendonça foi a primeira mulher nomeada ministra, assumindo a Advocacia Geral da União.
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“Queremos para o mundo, Senhor Presidente, o que queremos para o Brasil: paz, desenvolvimento sustentável e respeito aos direitos humanos. Esses são os valores e aspirações de nossa sociedade. Esses são os valores e orientações que também nos orientam no plano internacional. Queremos um mundo em que o direito prevaleça sobre a força.”
Falando sobre defesa dos direitos humanos e sobre “um mundo em que o direito prevaleça sobre a força”, vamos lembrar apenas a homenagem feita ao Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o primeiro militar a ser reconhecido, pela Justiça, como torturador durante a ditadura. Ele foi exaltado, sem qualquer constrangimento, pelo deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), em seu voto a favor do impeachment de Dilma. Logo depois, Bolsonaro, ícone da onda conservadora no Congresso brasileiro, registrou 11% das intenções de votos em pesquisas de opinião pública de Ibope sobre possíveis candidatos à presidência em 2018.
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“A integração latino-americana é, para o Brasil, não apenas uma política de governo, mas é um princípio constitucional e prioridade permanente da política externa. Coexistem hoje, sabemos todos, em nossa região governos de diferentes inclinações políticas. Mas isso é natural e salutar. O essencial é que haja respeito mútuo e que sejamos capazes de convergir em função de objetivos básicos, como o crescimento econômico, os direitos humanos, os avanços sociais, a segurança e a liberdade de nossos cidadãos.”
No espírito de “respeito mútuo”, Temer ajudou a impedir que a Venezuela assumisse a liderança do Mercosul. O ministro das Relações Exteriores, José Serra, além de emitir notas oficiais que esculachavam os líderes de Venezuela, Cuba, Bolívia, Ecuador, Nicarágua e a União das Nações Sul-Americanas, que o embaixador Celso Amorim caracterizou como “reação radical”, Serra comentou ao El Pais este mês que:
“a Bolívia e o Equador poderiam aprender a fazer democracia com o que se passou no Brasil. E o da Venezuela é pura provocação. Considero que o regime venezuelano não merece nenhum respeito porque é um regime antidemocrático que desorganizou o país.”
Equador, Bolívia e Venezuela convocaram seus embaixadores após o afastamento de Dilma. O Secretário Geral da União de Nações Sul-Americanas também se manifestou logo após a decisão na Câmara dos Deputados: “A eleição democrática e majoritária de Dilma Rousseff como presidente constitucional não pode ser revogada em um julgamento político por uma maioria parlamentar”.
Video shows Ecuador, Costa Rica, Bolivia, Venezuela, Cuba and Nicaragua leaving #UNGA to protest Brazil's coup-imposed President Temer pic.twitter.com/yQbstBChzZ
— teleSUR English (@telesurenglish) September 20, 2016
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“O Brasil olha para a África com amizade e respeito, com a determinação de empreender projetos que nos aproximem ainda mais.”
Em maio, Serra pediu um estudo de custos de embaixadas na África e no Caribe com a intenção de fechar cinco delas, mas o plano enfrentou forte oposição interna.
O ministério da educação paralisou as negociações para a implantação da Base Nacional Curricular, com foco especialmente no ensino de História. Entre as temáticas discutidas para a disciplina, estavam justamente a valorização da história da África e o protagonismo das culturas indígenas e afro-brasileiras.
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“É urgente disciplinar subsídios e outras políticas distorcivas de apoio doméstico no setor agrícola.”
Apesar de aumentar a verba para desenvolvimento de agricultura em sua proposta orçamentária de 2017, declara-se contra subsídios, e não apenas os do setor agrícola. De fato, Temer já disse que pretende rever o parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) de 2010 que impediu estrangeiros a comprarem terras no Brasil. O que ele defende mesmo, desde a criação do documento “Uma Ponte Para o Futuro” — espécie de programa de governo apresentado antes mesmo do afastamento de Dilma — é a privatização. Entre os ajustes fundamentais, o documento escala:
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Uma pena que todas essas manifestações estejam presentes no próprio Congresso Nacional, o mesmo que aprovou o estatuto da família reconhecendo apenas união entre homem e mulher. Somente a Câmara dos Deputados já teve como presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara o deputado Marco Feliciano (PSC-SP), que já foi acusado de homofobia, estelionato e até de tentativa de estupro e agressão. Feliciano publicou em sua conta de Twitter que “a podridão dos sentimentos dos homoafetivos levam ao ódio, ao crime, à rejeição”.“Repudiamos todas as formas de racismo, xenofobia e outras manifestações de intolerância.”
O deputado Maranhense Fernando Furtado (PCdoB) recebeu o prêmio de “Racista do Ano” em 2015, após chamar os indígenas de “bando de veadinho” e dizer: “morre de fome, desgraça, é a melhor coisa que tem, porque não sabe nem trabalhar”.
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“Trago às Nações Unidas, por fim, uma mensagem de compromisso inegociável com a democracia. O Brasil acaba de atravessar processo longo e complexo, regrado e conduzido pelo Congresso Nacional e pela Suprema Corte brasileira, que culminou em um impedimento. Tudo transcorreu, devo ressaltar, dentro do mais absoluto respeito constitucional. O fato de termos dado esse exemplo ao mundo, verifica que não há democracia sem Estado de direito – sem que se apliquem a todos, inclusive aos mais poderosos. É o que o Brasil mostra ao mundo. E o faz por meio a um processo de depuração de seu sistema político. Temos um Judiciário independente, um Ministério Público atuante, e órgãos do Executivo e do Legislativo que cumprem seu dever. Não prevalecem vontades e isoladas, mas a força das instituições sob o olhar atento de uma sociedade plural e de uma imprensa inteiramente livre.“
Aparentemente, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), um dos maiores aliados de Temer, discorda especificamente sobre a parte que diz respeito ao Ministério Público. Calheiros chamou recentemente as ações do MP de “exibicionistas”.
Não por coincidência, ele mesmo é autor de um projeto de lei sobre “abuso de autoridade”, criticado por juízes e classificado por procuradores como uma tentativa de “criminalizar os investigadores”.
Sobre o “compromisso inegociável com a democracia”, desde o início, o processo gerou controvérsias. Intelectuais se manifestaram contra o impeachment, tachando-o de antidemocrático. Entre os principais nomes, estavam os filósofos alemães Jürgen Habermas, Axel Honneth e Rainer Forst, a filósofa feminista norte-americana Nancy Fraser e o filósofo canadense Charles Taylor.
Resumindo a situação de aparência “livre”, como Temer define, do Congresso e da imprensa, cinco tweets do ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa:
O que acontece com o Brasil daqui para a frente, após o impeachment tabajara?
— Joaquim Barbosa (@joaquimboficial) September 1, 2016
Desaparecem algumas "instâncias de exercício" da desconfiança: o país está agora sob o controle de um bloco hegemônico incontrastável
— Joaquim Barbosa (@joaquimboficial) September 1, 2016
Vejamos. A Presidência da República está nas mãos de um homem conservador, ultrapassado, desconectado do país, como aliás sua antecessora
— Joaquim Barbosa (@joaquimboficial) September 1, 2016
E a imprensa, a mídia? Sem discrepância! O conservadorismo é a regra!
— Joaquim Barbosa (@joaquimboficial) September 1, 2016
O Congresso, idem. Inteiramente dominado pelas mesmas forças conservadoras.
— Joaquim Barbosa (@joaquimboficial) September 1, 2016
E enfim, para fechar o discurso, sobre não prevalecerem vontades isoladas e sobre “os mais poderosos”, fica aqui essa lista de notícias veiculadas após a troca de governante no Brasil:
- Temer se reúne com empresários na CNI e diz que governo “quer ouvir”
- “Ninguém vai falir”, promete Temer a empresários
- Em NY, governo Temer tem encontro com bancos para atrair capital estrangeiro
- Empresários pedem para Temer segurar dólar a R$ 3,20
- Governo quer repassar recursos do FI-FGTS direto para os bancos
Durante manifestações políticas contra e a favor do impeachment, ficou proibido o uso de máscaras. Parece que liberaram o mesmo para discursos na ONU.
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