Em uma atitude que chocou até os observadores de política mais experientes das tramas que assolam a corrompida Brasília, no fim da noite de ontem, os líderes da Câmara dos Deputados tentaram inserir de forma sorrateira na agenda de votação uma lei que oferece anistia a eles mesmos por violações das leis de financiamento de campanhas eleitorais. Isso se deu enquanto o presidente recém-empossado, Michel Temer, encontra-se fora do país, discursando na ONU (onde surpreendentemente elogiou o impeachment como um “modelo” de combate à corrupção, mesmo estando cercado de seus ministros envolvidos em casos de corrupção), e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, assume interinamente a Presidência da República devido à ausência de Temer. Embora a trama tenha sido barrada pela oposição veemente liderada principalmente por dois partidos relativamente pequenos (PSOL e Rede) e apoiada por alguns membros de outros partidos, a tentativa, por si só, representa bem a nova facção que tomou o poder após o impeachment da presidente eleita.
A anistia retroativa que tentaram passar diz respeito ao conhecido “caixa dois”: os fundos não divulgados recebidos por candidatos, usados em suas campanhas sem declará-los oficialmente como gastos ou doações. Usada há tempos por políticos para obter doações de grandes corporações e oligarcas sem qualquer detecção ou responsabilização legal, a prática obscura teve mais detalhes revelados nas amplas investigações de corrupção da Lava Jato.
Por esse motivo, os políticos em questão querem imunizar-se de forma retroativa de suas consequências: muitos dos mais poderosos membros do congresso brasileiro — incluindo aqueles que usaram o argumento da corrupção enquanto lideravam os esforços em favor do impeachment de Dilma — encontram-se envolvidos e, portanto, ameaçados por terem violado tais leis. Agora, tentam passar uma nova lei que impediria sua própria punição, destacando exatamente aquilo que os contrários ao impeachment alertavam (e admitido pelo aliado próximo de Temer, Romero Jucá, em gravação secreta) ser o verdadeiro objetivo por trás da remoção de Dilma: permitir que políticos verdadeiramente corruptos usem o poder recém-adquirido de forma anti-democrática para se protegerem de investigações e acusações.
O aspecto mais importante dos eventos recentes é a lista de quem se encontra ameaçado por estar envolvido nessa forma específica de corrupção eleitoral. Ela inclui o próprio presidente em exercício, Michel Temer, acusado de receber milhões de reais na forma de doações; seu Ministro das Relações Exteriores, José Serra, que é acusado de ter recebido R$ 23 milhões da empreiteira Odebrecht; o líder do governo Temer no Senado, Senador Aloysio Nunes, acusado por dois delatores de ter recebido doações ilegais; o Senador Aécio Neves, candidato à presidência derrotado por Dilma em 2014, que supostamente recebeu R$ 1 milhão em doações ilegais de campanha; e o atual Presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, também do partido de Temer, considerado o maior beneficiário, por ter recebido R$ 32 milhões.
O beneficiário mais importante de todos nessa lista é o novo Presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que agora é investigado formalmente pelo Procurador Geral da República, após ter sido gravado pedindo ao presidente da empreiteira OAS, que se encontra preso no momento, R$ 250 mil nunca declarados em seus formulários de campanha. Após a revelação da gravação. Rodrigo Maia alega que as doações recebidas não eram para sua campanha, mas para a de seu pai, que há poucas semanas perdeu seu cargo de vereador devido à corrupção.
Todos os políticos envolvidos nesta violação votaram em favor do impeachment de Dilma. O impedimento da presidente aumentou drasticamente o poder nas mãos desse grupo que forma a coalizão de centro-direita e que, embora não tenha vencido eleições presidenciais, assumiu o governo após a saída de Dilma. Todos fizeram discursos presunçosos sobre a necessidade de combater a corrupção na política como justificativa para o apoio ao impeachment. E, agora, com o poder obtido através do impeachment, se articulam para se protegerem das investigações de corrupção e consequências das violações (é importante observar que membros importantes do PT também se encontram envolvidos em investigações de caixa dois, e, portanto, o partido também pareceu apoiar a lei de anistia, embora alguns membros em particular tenham se juntado à oposição).
Talvez o aspecto mais impressionante disso tudo seja que os envolvidos sabem perfeitamente que a aprovação de tal anistia seria uma medida obscena e corrupta. Alguns jornalistas tentaram — sem sucesso — descobrir quem teria sido responsável por inserir essa pauta na agenda de votação no congresso. Isso tudo aconteceu quando o terceiro na linha de sucessão da Presidência da Câmara, Beto Mansur, encontrava-se no comando da casa (já que Temer encontra-se fora do país, Maia exerce a função de presidente e o vice-presidente da casa não estava presente), para que o desconhecido deputado parecesse responsável pela medida. Mas, conforme contou o jornalista do UOL, Josias de Souza, Mansur, primeiro responsabilizou Rodrigo Maia, depois literalmente se recusou a dizer quem era o responsável pela inserção da pauta no calendário de votação, alegando de forma surpreendente que “não sabia” e — usando o verbo no passado de forma quase cômica — que diria apenas que o “projeto foi colocado na pauta”.
As motivações aqui observadas são tão descaradas que chega a ser impressionante. Como contou Josias de Souza, “além de invisível, o projeto é órfão. Não há vestígio dos pais da manobra. Eles parecem ter vergonha de si mesmos. E não lhes faltam motivos.” O líder do PSOL, Ivan Valente se posicionou da seguinte forma ao tentar bloquear a medida: “É inaceitável, intolerável, um escândalo, um escárnio, uma falcatrua, uma bandalheira. Logo agora que a OAS e a Odebrecht estão prontas a delatar a gente vai livrar dezenas de deputados e empreiteiros?”
Mas essa é a verdadeira face da inenarrável corrupção da facção que tomou o poder em Brasília de forma anti-democrática, ironicamente, em nome da luta contra a corrupção. Não é preciso nem dizer que o movimento contra a corrupção que liderou os protestos pela saída de Dilma encontra-se desaparecido e em silêncio, como é de costume quando a corrupção é de centro-direita, porque sempre foram motivados por ideologia e pela subversão da democracia na busca pelo impeachment, e não pela luta contra a corrupção. E uma coisa é certa: essa tentativa de blindar a corrupção e dar mais poder aos corruptos sofreu uma derrota apenas temporária. Essa facção — que deve seu poder à negação da democracia, em vez do exercício dela — mostrou não ter vergonha alguma na cara. Convencida de seu próprio direito e capacidade de agir sem maiores consequências, não há dúvida de que tentarão cobrir-se de anistias novamente quando não estiverem sendo observados.
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