“É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. A Constituição Brasileira é clara e deveria ser soberana, mas não para a Polícia Militar do Rio Grande do Norte, que decretou a prisão de um soldado, na última quarta-feira (21), por um comentário feito em abril no Facebook, como apurou com exclusividade The Intercept Brasil.
Este é mais um dos casos em que militares que expressam críticas razoáveis recebem punição excessiva. A mensagem é clara: a corporação não quer debate, quer obediência e silêncio. Militares que se arriscam para melhorar um sistema que ignora os direitos de cidadãos comuns têm, em troca, seus próprios direitos ignorados e violados. Assim, elimina-se qualquer possibilidade de diálogo e prestação de contas fundamentais a uma sociedade democrática.
Em 26 de abril, a plataforma digital Mudamos, onde qualquer cidadão pode opinar sobre políticas públicas, fez uma consulta: “Monitorar a ação das polícias é uma demanda urgente da sociedade. O que pensam os policiais?”
Na página da Mudamos, o soldado da PM João Figueiredo disse o que pensava:
Quase cinco meses depois, o Comando da PMRN decretou que, por isso, ele cumpra 15 dias de prisão administrativa no quartel. A justificativa é tão absurda quanto a pena. Para a instituição, Figueiredo ofendeu gravemente a Polícia Militar e seus colegas, usando “palavras não condizentes com a ordem castrense”. Decisão tão arcaica quanto o palavreado empregado nela:
“Quando o código se sobrepõe à Constituição, ele está no caminho contrário do que prega o verdadeiro militarismo, que preconiza exatamente o respeito às leis do país. O regulamento diz que eu sequer posso casar se eu não tiver a anuência do meu comandante. Isso é um absurdo”, diz João Maria Figueiredo, o militar autor do comentário, que também é estudante de Direito. Ele ingressou na polícia aos 26 anos e está há oito na corporação. O regimento usado na punição de Figueiredo é de 1982, baseado em regimentos militares da década de 70, que vigoravam durante a ditadura.
“A decisão é ilegal porque não observa os princípios constitucionais, é desproporcional e tem viés político. Ademais, o processo é irregular e sumário. Não respeitou as leis relativas ao direito administrativo Estadual. Nenhum contrato, ainda que existisse, poderia flexibilizar ou isentar o cumprimento da Constituição”, pontua Bruno Saldanha, advogado do soldado (leia a defesa na integra aqui).
Figueiredo não foi o primeiro a passar por isso. O presidente da Associação dos Bombeiros Militares do RN, Dalchem Viana do Nascimento Ferreira, foi punido com três dias de prisão administrativa por enviar um áudio no WhatsApp em que convocava associados para uma assembleia. A decisão foi repudiada pela Comissão de Direito Militar da Ordem dos Advogados do RN, que tem buscado o diálogo com a PM sobre tais casos.
Em 2012, um soldado do mesmo estado ficou preso 21 dias por um comentário no Orkut.
Geralmente, a corda arrebenta do lado mais fraco, nas costas dos praças. Mas, no Rio de Janeiro, houve dois casos que fugiram desse padrão. Em outubro de 2010, o então capitão da PM Luiz Alexandre Souza da Costa foi punido com 20 dias de prisão administrativa por ter comentado sua nomeação para determinado cargo na corporação no Twitter.
À época, a PM disse que não censurou o capitão, mas que, sim, o puniu “pelo fato de haver veiculado em canal de mídia particular mensagens com conteúdo negativo, depreciativo e irônico sobre ato legal do Comandante”.
Numa outra ocorrência em 2008, Costa foi chamado a prestar esclarecimentos na Corregedoria Geral Unificada do Rio de Janeiro por um post em seu blog. Caso similar ao que aconteceu com Major Wanderby no mesmo ano. Ele respondeu a um Inquérito Policial Militar por uma “crítica indevida a ato do superior hierárquico” postada em seu blog. Um colega de farda, Coronel Roberto Viana, ao se solidarizar com ele em um comentário no mesmo post, foi punido com 12 dias de prisão.
Tais punições são questionáveis e danosas à democracia, explica Renata Neder, assessora de direitos humanos da Anistia Internacional no Brasil. “A liberdade de expressão é um direito humano, garantido não só pela Constituição, mas também pelos tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário.”
Para Neder, a situação é ainda pior porque o país vive uma grave crise na segurança pública, e a superação dessa crise precisa envolver um amplo debate com todos os setores da sociedade. “Ver estes profissionais, policiais, sendo punidos por entrar nesse debate é muito grave. Não só porque é uma violação do direito de liberdade de expressão, mas também porque não ajuda a gente a avançar”, reitera.
Em 2013, o Supremo Tribunal Federal julgou uma ação de liberdade de expressão de um militar. O então relator da ação, Ministro Marco Aurélio Melo, afirmou que o direito se estende aos fardados porque não há Estado Democrático de Direito sem liberdade de expressão.
De acordo com o porta-voz da PMRN, Tenente Coronel PM Arthur Emílio Monteiro de Araújo, o comentário do soldado Figueiredo foi pejorativo, já que comparar policiais a cangaceiros é como compará-los a criminosos. A PM acrescenta que enquanto fizeram parte da corporação, militares precisam cumprir o regulamento. “É uma sanção administrativa, não é preso, dentro uma cela. Ele pode inclusive recorrer, se acha que foi excesso, que tem outra conotação. Alguns alegam perseguição política, outros abuso de autoridade. Tudo sempre foi feito dentro da legalidade, sem nenhum dano ao policial, sem ser autoritário”, disse.
No caso de Figueiredo, segundo o regimento, não cabe recurso. Seu advogado vai recorrer ao Tribunal de Justiça do Estado para anular a decisão.
As limitações à liberdade de expressão previstas em nossa legislação se referem basicamente a casos de ofensas pessoais direcionadas a indivíduos. Os crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação), além do previsto em crimes de ódio e injúria racial, servem para punir quem aja de maneira inadequada, ferindo o direito dos outros cidadãos – não se aplicam a corporações, empresas, instituições etc.
A cultura que gera tais punições é produzida desde a doutrinação dos integrantes. Um cadete da Academia de Polícia Rio Branco, berço da formação dos oficiais de Polícia Militar do Estado de São Paulo, denunciava punições abusivas a que os aspirantes são submetidos num e-mail enviado ao blog policial Flit Paralisante:
“No mês de março tentaram denunciar aqui, neste blog, algumas irregularidades que ocorrem na APMBB e, em decorrência disso, sofremos castigos psicológicos, físicos e ameaças por parte do comando da academia, no sentido de que fariam de nossas vidas um inferno caso continuássemos contrariando as arbitrariedades impostas pelo comando”.
O post original foi apagado do Flit, mas o cache ainda está disponível.
No e-mail, foram relatadas uma série de violações de direitos humanos e civis. O denunciante relata o suicídio de um cadete que sofria perseguição na Academia e descreve uma sequência de erros e abusos por parte do Comando, como não permitir que os cadetes fossem ao enterro do colega, que foi chamado de “covarde” por um superior que dava a notícia de sua morte aos alunos.
O cadete faz um questionamento que é o cerne do que tem sido discutido sobre Segurança Pública e militarização no país: que tipo de oficiais serão formados com esse tratamento que fere a dignidade da pessoa humana? E se os policiais fazem com a população o que aprendem com seus comandantes?
Precisamos falar de desmilitarização da polícia e não podemos tolerar nenhum direito a menos. Nenhum direito pode ser negociado. Perdem eles, perdemos todos.
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