No último debate da interminável eleição presidencial americana, nesta quarta-feira, Donald Trump demonstrou que é ignorante demais para ser o presidente de qualquer país — e, em particular, de um com armas nucleares suficientes para destruir o mundo. Porém, seu intelecto brilhou quando ele se posicionou contra o aborto.
TRUMP: “Eu acharia terrível se você aceitasse o que HIllary está dizendo: que, no nono mês [de gravidez], você pode tirar o bebê e arrancá-lo do útero da mãe imediatamente antes do nascimento do bebê. Bom, você pode dizer que isso é aceitável, e Hillary pode dizer que isso é aceitável, tirar o bebê e arrancá-lo do útero da mãe no nono mês, no último dia [de gravidez]. Mas isso não é aceitável.”
Segundo a lógica de Trump, eu e 32,2% dos Americanos nascidos em 2014, na verdade, fomos abortados. O que sua justificativa descreveu, afinal, é um parto cesariano.
Como a obstetra americana Jennifer Gunter twitou, “Não existe aborto no nono mês — eu sou uma médica treinada em aborto tardio”.
There is no such thing as a ninth month abortion – I'm a doctor who trained in late term abortions #debate2016
— Jennifer Gunter (@DrJenGunter) October 20, 2016
Antes desse comentário, Trump já estava perdendo por uma média de 15 pontos entre mulheres nas pesquisas de opinião pública, e parece que está caminhando para uma derrota sólida no dia 8 de novembro. Não faltam motivos para o resultado. Este mês, foi vazado um vídeo em que ele fala que, porque é poderoso e famoso, pode “pegar mulheres pela buceta”. Desde o segundo debate, no dia 9 de outubro, várias mulheres apresentaram novas acusações de agressão sexual e/ou assédio sexual. Trump também já foi processado por uma acusação de estupro de uma menina de 13 anos, em 1994, na casa de um bilionário pedófilo convicto. O processo consta que ele amarrou a menor de idade na cama e cometeu um “ataque sexual selvagem”.
Trump nega todas as acusações. Em um discurso, respondendo à acusação de uma jornalista que o acusa de forçar-se sobre ela em sua casa na Flórida (corroborada por seis testemunhas), ele insinuou que não a assediaria porque não é suficientemente bonita: “Olha aí. Olha ela. Olha as palavras dela. Me fala o que você pensa. Eu acho que não.”
Trump é um político machista, arrogante, racista, xenofóbico, homofóbico, ofensivo, demagógico, perigoso e com tendências fascistas que comanda a fidelidade intensa de uma crescente onda de fãs. Os brasileiros, acompanhando o acidente de trem em câmera lenta que é sua campanha, talvez se lembrem de um político doméstico com uma postura parecida. Um político que levou sua colega, a deputada Maria do Rosário (PT-RS), às lágrimas quando interrompeu uma entrevista na televisão para chamá-la de “vagabunda” e dizer que ela “não merece” ser estuprada por ele.
E repetiu em sessão da Câmara dos Deputados:
Depois, gabou-se dos “incidentes” em seu Twitter oficial, orgulhoso de tê-la colocado “em seu devido lugar”:
E dedicou seu voto em favor de impeachment “pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor da Dilma Rousseff”. Brilhante Ustra comandou o infame grupo do DOI-Codi que torturou brutalmente presos políticos durante a ditadura. O uso de tortura sexual e estupro pelo grupo foi bem documentada.
Antes da chuva de acusações de assédio sexual, Trump se defendeu dizendo que seus comentários eram apenas “papo de vestiário” entre homens — uma defesa fraca que está se esfarela a cada nova mulher que encontra a coragem para tornar seus casos públicos. Nesse sentido, talvez — apesar deu seu discurso e sua visão de mundo deplorável — Bolsonaro seja uma centelha menos objecionável que Trump, já que não existe nenhuma acusação parecida contra ele.
Porém, os dois sujeitos são semelhantes demais para meu gosto, e o apoio a ambos é alimentado por setores da população e forças sociais análogas. Intelectuais da esquerda muitas vezes tentam desqualificar os apoiadores do BolsoTrump como ignorantes, mal-educados, odiosos e pobres, mas pesquisas nos dois países mostram que eles têm renda e escolaridade bem acima da média.
O ódio é potente, mas outros fatores estão em jogo – inclusive uma rejeição a políticos manchadas por sua associação à velha guarda, que fica rica e prega bom senso e estabilidade sem que os resultados cheguem ao povo, a política identitária que Hillary e os partidos da esquerda brasileira abraçaram efusivamente e o movimento “politicamente correto” que tenta criminalizar ideias e falas repreensíveis na esfera privada.
Trump é um fanfarrão, mas a sociedade brasileira não deveria rir dele (ok, pode rir um pouco). Melhor seria estudar sua ascendência e contemplar como pode desarmar a energia que sustenta políticos trumpianos. Se não, talvez o mundo ria e ranja seus dentes contigo quando assistir ao candidato Jair Bolsonaro nos debates do segundo turno à presidência.
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