Dezoito detentos mortos, 22 feridos e 10 desaparecidos em prisões de Rondônia e Roraima em 24h, presos “jogando bola” com a cabeça de rival em Fortaleza, 25 homens armados tentando invadir um presídio no Acre e, por isso, centenas de presos do semiaberto liberados e quatro feridos, transferência de quase uma centena de presos. Os últimos dias têm exposto problemas jogados para debaixo do tapete pelas autoridades há anos: o domínio das facções sobre o sistema penitenciário superlotado e subcontrolado do país e seu impacto real na segurança pública em todos os estados.
A ruptura da aliança de anos entre Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital pode reconfigurar o mapa do crime organizado dentro e fora das prisões e fazer o sangue chegar a muitas portas país afora. O Primeiro Comando da Capital agora quer ser amigo dos Amigos dos Amigos. É o bonde PCC-ADA sem freio.
“A existência do PCC não passa de uma ficção, uma fantasia“. A frase proferida pelo então secretário da Administração Penitenciária de São Paulo, João Benedito de Azevedo Marques, no início da década de 90, é um exemplo de como a segurança pública é planejada: à base da negação dos fatos.
Apesar de “não existir”, desde o primeiro estatuto do PCC, escrito entre 1996 e 1997, a ideia de aliança com o CV transpareceu. O lema da facção paulistana é o mesmo da carioca, criada em 1979, no presídio de Ilha Grande: “Paz, Justiça e Liberdade“. Mas não por afinidade ideológica, mas, sim, por conveniência e mercado. Eles firmaram uma espécie de consórcio para a compra de drogas e armas no Paraguai, Colômbia e Bolívia.
“Mera bravata.”
O PCC, que domina, além do tráfico de drogas, uma série de negócios com verniz de legalidade — como postos de gasolina e cooperativas de vans em São Paulo —, acha o CV muito violento e que isso atrapalha os negócios. E também já se aventura na política, financiando candidatos.
No vácuo da negação, o Primeiro Comando da Capital nasceu, em 1993, cresceu e se fortaleceu dentro do sistema prisional paulista. Consolidado, fez aliança com a mais antiga facção do país, o Comando Vermelho. Agora presente em todos os estados do Brasil e na Argentina, no Peru, na Colômbia e na Venezuela, muda de lado.
Quando um problema não é admitido, não é necessário fazer planejamento sobre o que “não existe”. O resultado é como em 2006: São Paulo sitiada e quase 600 mortos em quinze dias. A apuração dos crimes foi duramente criticada por suas falhas, os casos — registrados como resistência seguida de morte — foram arquivados três anos depois, reabertos este ano e agora, podemos estar prestes a assistir um revival.
“Mera bravata.” Esta é a leitura — irresponsável — que o ministro da Justiça, Alexandre Moraes, faz da atual situação dos presídios. E ele não está só. A Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro também negou que houve ruptura de aliança entre as facções. É Azevedo Marques fazendo escola. Moraes afirmou ainda que “não há nenhuma informação de inteligência” sobre o orquestramento de rebeliões.
O ministro persiste no erro comum de onde vem — e onde ganhou experiência — e ignora, por exemplo, que o Ministério Público de SP apurou que o conflito entre CV e PCC começou em 2015, quando presos do CV em Roraima, Rondônia e Acre se aliaram à Família do Norte (FDN) e a outros grupos rivais ao Comando da Capital. Segundo o MPE, há cerca de 200 a 300 integrantes do CV espalhados em penitenciárias paulistas dominadas pelo PCC.
De acordo com o procurador de Justiça de SP, Márcio Sérgio Christino, a relação entre as facções estremeceu depois do assassinato do empresário e traficante Jorge Rafaat Toumani, de 56 anos, em Pedro Juan Cabalero, fronteira entre Brasil e Paraguai, em junho. Rafaat foi morto em emboscada com cem mercenários comandada pelo PCC, que passou a ter mais poder que o esperado pelo CV. Isso porque, com a morte do “rei do tráfico”, o PCC pode tomar o poder sobre essa região chave para a importação, e assim tomar controle de toda a cadeia de produção, comércio e distribuição de drogas. Uma mina de ouro.
O “salve” encaminhado pelo PCC aos membros espalhados em presídios diz que o CV o desrespeitou, matando pessoas ligadas ao grupo e se aliando à facções inimigas no norte do país:
“A cerca de três (3) anos buscamos um dialogo com a liderança do c.v nos estados, sempre visando a Paz e a União do Crime no Brasil e o que recebemos em troca, foi irmão nosso esfaqueado e Rondonia e nada ocorreu, ato de talaricagem por parte de um integrante do cvrr e nenhum retorno, pai de um irmão nosso morto no Maranhão e nem uma manifestação da liderança do cv em prol a resolver tais fatos.
Como se não bastasse, se aliaram a inimigos nossos que agiram de tal covardia como o PGC que matou uma cunhada e sua prima por ser parentes de PCC, matarão 1 menina de 14 anos só por que fecahava com nós.”
A negação dos fatos permitiu que o PCC se espalhasse nacionalmente, bem como permite, agora, os mandos e desmandos nas penitenciárias e, inclusive, no impacto nas taxas de criminalidade, firmando acordos de paz e mudando o ritmo de vida em municípios inteiros.
Moraes anunciou nesta segunda, dia 17, que prepara um Plano Nacional de Segurança Pública, a ser lançado em novembro. Se o plano não previr ações mais efetivas do que se munir de facão para cortar pés de maconha no Paraguai, com o reconhecimento da gravidade da situação, a admissão da “guerra nacional” de facções e a revisão da legislação sobre drogas, maio de 2006 será café pequeno.
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