Duas fotos arrebataram os eleitores cariocas e boa parte do país na noite da sexta-feira 22: o senador e atual candidato a prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, de frente e de lado, sendo fichado numa delegacia. Ele foi detido por ameaçar e tentar remover com suas próprias forças — somadas a de seguranças armados — uma família que havia se instalado em um terreno que pertencia à Igreja Universal do Reino de Deus, comandada pelo pastor Edir Macedo, tio de Crivella. A foto é de janeiro de 1990.
Segundo a revista Veja, que publicou as fotos e a história que as cerca, após levar uma dura do delegado João Kepler Fontenelle, o então pastor e engenheiro ficou preso por um dia e foi liberado, no dia seguinte passou mais 4 horas em uma sala da delegacia. Neste ponto os fatos começam a ficar curiosos. A revista conta que a Igreja Universal ameaçou processar o delegado por ser duro demais. De fato, em 1990, as fotos só seriam necessárias se o pastor não estivesse com documentos de identidade. Ou seja, se Crivella estivesse com os documentos na hora, poderia ser um excesso.
O senador já foi às redes sociais explicar a sua versão dos fatos:
“Não deu processo, nada, absolutamente nada. Pelo contrário. Eu que iniciei um processo contra ele [o delegado] por abuso de autoridade. Eu repito, nunca fui preso. Nunca respondi nenhum processo e posso provar com todas as certidões que apresentei no momento em que me inscrevi para ser candidato a prefeito do Rio de Janeiro. Fiquem tranquilos, eu sou ‘ficha limpa’.”
Porém, em entrevista à revista, o senador admite que o finado delegado, como forma de expiar a culpa pelo feito, entregou ao pastor o inquérito, as fotos e seus negativos, recortados do filme da câmera. É este o ponto alto da história: esconder documentos públicos é crime, segundo artigo 305 do código penal.
Curioso golpe de sorte ou de paciência? Crivella vem a público admitir o crime 26 anos após o acontecido. Se fosse há 7 anos, poderia até correr o risco de ter sido preso. Mas, segundo a lei brasileira, em 20 anos, o crime não pode mais receber pena.
Tudo isso e mais um pouco fica explicado nas falas do presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ e professor de Direito Penal do Departamento de Direito da PUC-Rio, Breno Melaragno, ao telefone, neste sábado, ao The Intercept Brasil.
THE INTERCEPT BRASIL: O candidato Marcelo Crivella poderia ser acusado de crime ao esconder o inquérito?
BRENO MELARAGNO: Isso depende de como o juiz do caso interpretaria. Porque, ao que tudo indica, o Crivella não coagiu o delegado a entregar os documentos, nem agiu como corruptor. O importante aqui é a interpretação se essa conduta (de Crivella aceitar ficar com os papéis dados pelo delegado) estaria inserida na autodefesa, no direito de ampla defesa.
TIB: O que seria esse princípio de autodefesa?
BM: É, dentro do princípio constitucional da ampla defesa. Nas ações penais, o direito de defesa é o mais amplo possível. Por exemplo, se fica constatado que um réu mente em um interrogatório perante o juiz, ele não é punido por isso. Porque até isso é englobado na ampla defesa pelo chamado direito de ampla defesa.
“A supressão é um crime instantâneo, mas de efeitos permanentes.”
TIB: Ou seja, se o delegado deu a ele os papéis de boa vontade, porque estava arrependido, como Crivella afirma, ainda poderia se enquadrar a aceitação dos papéis como autodefesa?
BM: É. É importante ressaltar o PODE interpretar. Porque isso varia de juiz para juiz. O Supremo Tribunal Federal garante a autodefesa e a amplia. Penso eu que a jurisprudência do Supremo é nesse sentido. Mas o juiz tem liberdade.
TIB: Outra questão que gerou dúvidas foi o fato de o senador ter guardado os documentos até hoje. No Brasil, crimes prescrevem — ou seja, perdem a pena — se não julgados 20 anos após o ocorrido. Mas se ele ficou com os papéis até hoje, mesmo assim prescreveu?
BM: A supressão é um crime instantâneo, mas de efeitos permanentes. No entanto, para medidas judiciais de prescrição, começa a ser contado da data dos fatos, do dia em que ele ficou com os documentos. O que leva à prescrição.
“Ele teria que pagar multa, ou cestas básicas, ou até menos que isso.”
TIB: E o crime original dele, de ameaçar as pessoas que estavam na casa?
BM: Isso seria crime de exercício arbitrário das próprias razões, artigo 345 do Código Penal. Ele teria que ter entrado com uma ação de reintegração de posse no poder judiciário. No entanto, ele foi fazer justiça com as próprias mãos.
De 1995 para cá, com a Lei 9099, a lei dos juizados, esse passou a ser considerado um crime de pequeno potencial ofensivo. E nem seria porque ele não feriu ninguém, porque a lesão corporal leve também é de pequeno potencial ofensivo. Isso é regulado pela pena máxima, se ela não ultrapassar dois anos, é pequeno potencial ofensivo. A pessoa não é presa em flagrante, vai para o juizado.
Então ele teria que pagar multa, ou cestas básicas, ou até menos que isso. Se ele entrasse em acordo com a vítima, ou com alguém da família, caso fosse após a morte do vigia, se entrasse em acordo, nem cesta básica, nem pena alternativa teria.
Muitos inquéritos simplesmente desapareciam e o Ministério Público sequer ficava sabendo que tinham sido abertos.
TIB: E sobre o desaparecimento do inquérito. Não é no mínimo estranho que um inquérito tenha desaparecido sem ninguém notar?
BM: Infelizmente, não é tão estranho assim para aquela época. Antes da informatização do sistema penal, o Ministério Público só sabia da instauração de um inquérito penal 30 dias depois, que é o primeiro prazo que o delegado tem para abrir vista do inquérito ao Ministério Público. Então, naquela época, o Ministério Público só ficava sabendo depois de 30 dias. Tudo era registrado em chamados “livros tombos”. Então não era difícil, por exemplo, fraudar anotação feita à mão, escrita com caneta ou lápis. Muitos inquéritos simplesmente desapareciam e o Ministério Público sequer ficava sabendo que tinham sido abertos. Na época, isso favoreceu muito os interesses das pessoas que tinham fortes poderes políticos e econômicos.
Então, provavelmente, foi antes desses 30 dias iniciais que o delegado entregou.
TIB: E hoje em dia, como isso funciona?
BM: Hoje em dia, com a informatização, o MP fica sabendo da criação do inquérito na hora. E se não receber em 30 dias a documentação, ele cobra. Então hoje em dia é praticamente impossível.
Inclusive, algumas poucas delegacias começaram a digitalizar os inquéritos para que os autos não tenham que ser transportados fisicamente para o MP. Esse projeto parou por causa da crise do estado (do Rio de Janeiro). A maioria dos inquéritos continuam sendo transportados fisicamente.
Quando um inquérito é digitalizado pela Polícia Civil do Rio, o MP tem acesso permanente a ele. Quando não digitalizado, o MP fica sabendo na hora que existe aquele inquérito e o recebe 30 dias depois.
Nesse caso do Crivella é muito provável que o Ministério Público nem tivesse tomado consciência da existência dele. Porque o inquérito só pode ser arquivado a pedido do Ministério Público ou pelo juiz.
(Esta entrevista foi editada para melhor compreensão do leitor.)
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Em tempo: segundo a reportagem da revista Veja, Crivella afirmou “que o processo foi arquivado um ano mais tarde”, o que, tendo em vista as explicações de Melaragno, não seria possível, se os papéis descansavam dentro de uma caixa em seu armário nos últimos 26 anos.
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