Family members mourn victims from a police operation against drug dealers that occurred on November 19 at Cidade de Deus favela (community) in Rio de Janeiro, Brazil, on November 20, 2016.Rio, which is home to 6.5 million people and drastic social inequality, suffers from high levels of criminality, made worse by heavily armed gangs of narcotraffickers, but also by the presence of paramilitary militias. / AFP / YASUYOSHI CHIBA (Photo credit should read YASUYOSHI CHIBA/AFP/Getty Images)

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Cabral e Garotinho não são vítimas do Estado

Debater punitivismo a partir das prisões dos ex-governadores é ignorar a memória dos que sofrem com a política de segurança adotada por eles

Family members mourn victims from a police operation against drug dealers that occurred on November 19 at Cidade de Deus favela (community) in Rio de Janeiro, Brazil, on November 20, 2016.Rio, which is home to 6.5 million people and drastic social inequality, suffers from high levels of criminality, made worse by heavily armed gangs of narcotraffickers, but also by the presence of paramilitary militias. / AFP / YASUYOSHI CHIBA (Photo credit should read YASUYOSHI CHIBA/AFP/Getty Images)

Menos de um mês depois do catastrófico resultado das eleições no Rio de Janeiro, a esquerda parece já haver esquecido as duras lições que a sua derrota tinha a ensinar. Ignorando as justas comemorações dos mais pobres do estado, vários teóricos da esquerda começaram a discutir a legitimidade da celebração em torno às prisões dos ex-governadores do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho e Sérgio Cabral. Seus argumentos têm fundamento, fazem sentido e devem ser levados em consideração, mas não havia pior momento para que fossem levantados como bandeira.

A ideia de que não é lícito comemorar tais prisões repete – e é fruto dele – o já característico distanciamento da esquerda dos anseios e sentimentos mais genuínos da população. Enquanto negros e pobres soltavam fogos nas favelas, os acadêmicos da esquerda enchiam suas redes sociais de condenações moralistas – tal como fizeram quando as urnas decretaram a vitória de Crivella.

Erigir um marco da luta anti-punitivista a partir das prisões dos ex-governadores é ignorar a memória daqueles que há anos sofrem com a política de segurança pública de Cabral e Garotinho; que sofrem nas prisões e nas favelas, e que agora são vítimas de um pacote de maldades herdado dos anos de farra com a máquina da administração pública. É assim que o recado será entendido pelo grosso da população – e a direita não tardará em explorar tal fato.

A prisão de Sérgio Cabral não é apenas uma derrota política para o ex-governador. É, antes disso, uma vitória extraordinária dos movimento sociais que deixaram em frangalhos sua reputação e o obrigaram a renunciar ao cargo em 2014. Sua prisão, na semana em que a Alerj era ocupada por manifestantes contrários ao “pacote das maldades” do governo – herança inequívoca da terrível administração Cabral – não deve ser entendida de outra maneira.

A exibição de suas fotos de cabelo raspado, sendo fichado na unidade prisional de Bangu que construiu, é errada do ponto de vista jurídico e dos direitos humanos – e portanto deve ser condenada, mas convém não exagerar na dose. O caso não é parecido com o dos milhares de homens negros que são exibidos como troféus, pelos jornais e pela própria polícia, a cada operação policial nas favelas do Rio. Não se pode, em hipótese alguma, colocar um sinal de igual entre eles. Cabral não foi espancado, não está em cela superlotada, não teve atendimento médico negado, teve direito a visitas. Essa é a exceção, não a regra.

 A não observância dos direitos humanos no país também tem cor e classe social.

 

Uma pesquisa de 2014 mostra que apenas 20% dos brasileiros que procuram o SUS são atendidos no prazo de um mês, e 29% aguardam mais de seis meses. Se falamos especificamente dos presos, os dados são bem piores. Em 2015, o Ministério Público do Rio de Janeiro concluiu que “os presos não são sequer incluídos nas filas de espera por vagas, como também não são direcionados para atendimento nas vagas existentes”, e que “é frequente que essa demora desumana resulte em agravamento dos quadros de saúde dos internos, e mesmo em elevado número de mortes”.

Garotinho estava sendo bem atendido, com regalias que revoltaram inclusive os funcionários do hospital Souza Aguiar – acostumados com a barbárie habitual – no mesmo dia em que foi preso.

Existe, obviamente, um gravíssimo problema de direitos humanos no tratamento dos presos no Rio de Janeiro e no Brasil. Este problema, no entanto, não está claramente expresso nos casos dos ex-governadores, pelo contrário: se os tomamos como exemplos, estaremos passando a impressão de que aquela é a realidade do preso no Brasil. Por conseguinte e indiretamente, estaremos dizendo que o jovem negro e pobre preso sob suspeita de tráfico todos os dias nas favelas do estado enfrenta esta ordem de problemas. Não é disso que se trata, como mostram os dados do relatório “Você Matou Meu Filho”, da Anistia Internacional, sobre homicídios cometidos pela polícia na cidade do Rio. A regra por aqui está mais para execução sumária.

Aqui vai um rápido paralelo com os dois casos: a travesti Verônica, brutalmente torturada após ser presa, teve seus cabelos raspados e fotografias em que aparecia com os seios à mostra e totalmente desfigurada divulgadas pela polícia. Há diferença, e é urgente que se faça notá-la. A não observância dos direitos humanos no país também tem cor e classe social.

A rigor, se todos os presos do Estado passassem a ser presos nas condições em que Cabral e Garotinho foram, estaríamos longe do ideal, mas teríamos avançado décadas no cumprimento dos direitos humanos. É importante que essa linha de argumentação, da abertura de precedente, também não caia no colo da esquerda.

O que precede estas prisões é o sistemático e rotineiro desprezo pelos direitos humanos. Que o digam a auxiliar de serviços gerais Claudia Ferreira, arrastada por uma viatura da PM; o pedreiro Amarildo, torturado e ocultado pela PM; Rafael Braga, preso nos protestos de julho de 2013 por carregar um desinfetante na mochila ou os homens assassinados pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) no Dia da Consciência Negra na Cidade de Deus, supostamente por envolvimento com a queda de um helicóptero que, conforme as primeiras perícias, caiu por pane e falta de manutenção. Todos morreram nas mãos da polícia comandada por Sérgio Cabral.

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Policiais comemoram operação na Cidade de Deus que resultou em diversas mortes.

Foto: Reprodução Facebook

Portanto, se a esquerda resolver que este é o momento oportuno de iniciar um debate a respeito do punitivismo, defendendo por tabela dois dos maiores responsáveis pelo estado em que o Rio de Janeiro se encontra, não poderá culpar novamente os pobres daqui a dois anos, quando o novo governador for eleito.

É importante apontar e defender a plena observância dos direitos humanos em todos os casos e para qualquer preso. É preciso, contudo, fazê-lo em perspectiva. Vamos demonstrar nossa indignação com os meninos executados da Cidade de Deus. Cabral e Garotinho definitivamente não precisam de nossa proteção. Este, aliás, já conquistou o direito de ir pra casa. A ver quanto tempo aquele ainda ficará preso. O único precedente aberto por estes casos é a prisão de ex-governadores até então intocáveis pela justiça. A vida do pobre e negro favelado continuará igual: preconceito, perseguição, morte. É contra isso que devemos mirar todas as nossas forças.

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