Imagine o Rio de Janeiro como um campo de batalha, suas ruas cobertas de destroços e sangue. Postes no chão, montanhas de paralelepípedos, vidros espatifados, os bondes virados e incendiados, servindo de trincheira. Por toda a parte gritos, correrias, tiroteios. No centro da cidade, comércios, repartições e delegacias atacadas e invadidas por multidões furiosas.
Às investidas e tiros da polícia, o povo reagindo ferozmente, recuando para avançar de novo, arremessando garrafas, pedras, bombas – caindo feridos, tombando mortos. Milhares de cariocas massacrados numa reação que conta até com bombardeios de embarcações de guerra numa cidade em estado de sítio.
A Revolta da Vacina, de 1904, é considerada o maior levante popular da história do Rio de Janeiro. Durante uma semana, o povo enfrentou a polícia, os bombeiros e o exército – e contou com o reforço de cadetes sublevados, sindicalistas, florianistas, jacobinos, radicais e monarquistas. A repressão brutal e indiscriminada contra os mais pobres durou meses. Depois de surras na Ilha das Cobras, eram enviados num navio-prisão para o Acre. Muitos não sobreviviam à viagem. O objetivo não era perseguir os culpados pelos atos de vandalismo, mas eliminar da paisagem do centro agora “revitalizado“ os desvalidos.
A Segunda República Velha e o bicho pegando no balneário
Insurreições desse tamanho vêm aos soluços, sua causa nunca é solitária. Hoje acredita-se que a campanha de vacinação compulsória contra a varíola promovida por Oswaldo Cruz foi apenas a gota d’água num contexto de profunda desigualdade social, instabilidade política, alto custo de vida e reformas urbanas baseadas na demolição de habitações populares que deixaram milhares de cariocas sem teto. Soa familiar em 2016?
Os paralelos entre o que hoje vivemos e a República Velha são suficientes para que alguns já comecem a chamar isso aqui de Segunda República Velha. Vale lembrar o mesmo sacrifício do povo bancando o progresso dos oligarcas, a mesma cidadania à porrete com os coronéis no centro do comando, os mesmos piratas mais ou menos diplomados cavando o fosso entre o poder e a população.
E, principalmente no Rio de Janeiro, o mesmo divórcio entre a cidade fantasma criada no silêncio dos gabinetes de empreiteiros-governantes e o mundo real. Um prefeito com a mesma carta branca e poderes quase absolutos para fazer o que bem entender sem direito de defesa para a comunidade – até a operação “Choque de Ordem” encontra ecos no aprisionamento arbitrário dos pobres da cidade nos anos Pereira Passos.
No verão 2016/2017, há quem aposte que esta Segunda República Velha terá sua primeira grande insurreição no Rio de Janeiro – seria mesmo de se esperar que o bicho comece a pegar por lá. Justamente onde o delírio de prosperidade brazuca viajou mais alto, a queda foi maior.
Resta saber qual será a vacina da vez a entornar o caldo.
Ao mesmo tempo em que hoje os instrumentos de repressão estatal são muito mais eficazes que no início do século XX, vivemos um derretimento da política de “segurança” baseada na farsa das UPPs. A violência e o medo hoje parecem interessar ao governo do Estado falido, sonhando com uma intervenção federal, e também ao tráfico e à milícia, disputando espaços e aproveitando-se do vácuo de poder. Some-se isso ao atraso nos salários do funcionalismo público e, ao lado deles, manifestações da Polícia Civil e Militar num clima de justiçamento crescente, alimentado pelas prisões espetaculares de dois ex-governadores.
Cada época têm o puxa-saco do prefeito que merece
Se na primeira década do século XX havia um Lima Barreto denunciando os desmandos de Pereira Passos, é preciso lembrar que cada cidade e cada época têm os puxa-sacos do poder que merece. Ali, havia Olavo Bilac, o cronista higienista, celebrando em jornais “a vitória da higiene, do bom gosto e da arte!” e o “clamor das picaretas” das obras de Pereira Passos que expulsavam a população pobre do centro.
Se estivesse vivo nos anos 2010, certamente o poeta apaixonado por esportes olímpicos poderia assinar perfis do “Namoradinho do Rio”, Sérgio Cabral, ou usar algum outro espaço do jornalão do balneário para bajular o nervosinho Eduardo Paes – o prefeito plutocrata, arrogante, autoritário e sem noção que mais “removeu” cariocas de suas casas na história da cidade.
No entanto, Olavo Bilac, homem que ouvia e entendia estrelas, o faria com bastante mais talento que alguns aduladores contemporâneos – esta admiradora aqui, em especial, ouvia “galáxias”.
Longe do céu, terreno dos sonhos, e perto da terra, onde costumam estar nossos pesadelos, o historiador Nicolau Sevcenko escreve em “A Revolta da Vacina”: “O pesadelo tornou-se realidade. Nada mais natural, portanto, que a população inerme reagisse, transformando a realidade em pesadelo”.
Nós já quebramos tudo no Rio de Janeiro. No verão politicamente mais quente que a cidade terá em mais de um século, podemos quebrar de novo.
Temos uma oportunidade, e ela pode ser a última:
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