Ouviu isso? Pois é, silêncio. Em seis meses de governo, seis ministros deixam o governo Temer em meio a conflitos de ética e escândalos de corrupção, um deles tratando como normal pressionar um órgão federal para atingir lucros pessoais; surge um cheque de R$ 1 milhão — assinado por uma empreiteira envolvida na Lava-Jato e direcionado nominalmente a Michel Temer —, a Câmara vota “medidas contra a corrupção” que, na realidade, só tornam a legislação mais permissiva. E nenhuma panela ressoou até então.
Os grupos que organizaram as manifestações de março não demonstram toda a vontade de antes. Ao contrário da forte pressão durante todas as votações do processo de impeachment de Dilma Rousseff, os movimentos Vem Pra Rua, Movimento Brasil Livre e Nas Ruas disseram que, dessa vez, só iriam para as ruas caso Temer sancionasse a anistia ao caixa dois. Ao escolher essa estratégia, os movimentos deixam o caminho livre para que o processo avance até a última instância. E, ainda assim, há apenas um ensaio de protesto que, caso aconteça, será marcado quando Inês já estiver morta.
O presidente alçado ao cargo por esses mesmos grupos correu a acalentar seus pseudo-eleitores. Ao lado dos presidentes da Câmara e do Senado, Temer disse que iria vetar a medida, caso chegasse a ele, numa entrevista coletiva que até mesmo a mídia tradicional criticou. Disse ainda que fazia isso porque era “preciso atender a voz das ruas”.
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No entanto, o que se viu na prática foi o completo oposto. Na noite de terça-feira, dia 29, as duas casas do Congresso votaram medidas impopulares — a PEC do Teto de gastos, no Senado, e as 10 medidas contra a corrupção, na Câmara — a portas fechadas enquanto manifestantes entravam em rota de colisão com a polícia do lado de fora. É claro que estes manifestantes não pertencem ao mesmo grupo que tomou as ruas em março.
Não. Estes — que segundo a classificação de Temer, não fazem protestos, mas sim “vandalismo, destruição e violência” — não são os mesmos de março. Eles gritam as mesmas coisas que aqueles que foram à Avenida Paulista no domingo, dia 27, a única manifestação noticiada no fim de semana, onde o coro era de “Fora, Temer” e “Não à PEC do Fim do Mundo”. Os organizadores falam em 40 mil participantes, a polícia calcula 5 mil.
Independentemente da curiosa disparidade, ambos os números estão bem abaixo dos cerca de 3,6 milhões que gritavam “Fora, Dilma” no início do ano. Bem como os manifestantes diferem do perfil de alta renda e escolaridade dos que pediram pelo impeachment. Mas, afinal, se aqueles cidadãos de bem foram às ruas em março contra a corrupção, o lógico seria esperar, agora, com tantos escândalos surgindo e, pela segunda vez, parlamentares tentando passar a anistia ao caixa dois, que eles voltassem a demonstrar sua indignação. Certo? Errado.
A diferença entre a situação atual e a de março é a personificação do problema. Para o pesquisador do Centro de Justiça e Sociedade da FGV Ivar Hartmann, o fenômeno ainda “exige um estudo empírico para podermos medir” a diferença entre os protestos. Ele já aponta, porém, dois possíveis motivos para a desmobilização: o tempo para processar as informações e organizar atos e a falta de algo (ou alguém) que resuma aquilo contra o qual se protesta.
“Os protestos grandes que vimos no início do ano e no ano passado, que chegaram a milhões de pessoas, tinham uma conexão muito grande e específica com as figuras de Dilma, Lula e da Petrobras. Uma das coisas que motiva as pessoas é ter uma cara para contestação, algo que seja palpável para se protestar contra”, disse Hartmann.
De acordo com ele, “os deputados sabem muito bem disso. Tanto que a Câmara tentou fazer uma votação simbólica da anistia ao caixa dois sem ser nominal e ninguém quer ser o autor. Sabem, também que se deixassem para ser votado somente no início do ano que vem, teria muito mais reação. Normalmente, essas votações espúrias são votadas na calada da noite. A gente acorda e descobre que foi votado”.
Segundo o pesquisador, as dez medidas contra a corrupção são um exemplo de como o sistema político brasileiro é corrompido. Porque demonstra bem como “qualquer pacote desses, quando entra para o jogo do Congresso, está sujeito a ser deturpado, o que é lamentável”.
Uma pesquisa de opinião pública realizada pela Universidade de Vila Velha (UVV) perguntou aos presentes nas passeatas contra a corrupção realizadas em agosto de 2015 qual seria considerado o governo mais corrupto da história do Brasil. A resposta unânime foi: Dilma e Lula. Outra pesquisa, feita pelo Datafolha com participantes das manifestações de março na Avenida Paulista, mostrava que 51% não tinham partido favorito, mas que 37% preferiam o PSDB e 82% afirmaram terem votado em Aécio Neves (PSDB-MG) no segundo turno das eleições presidenciais de 2014. Dos entrevistados, 47% afirmaram estar ali “contra a corrupção”.
“É interessante, as pessoas identificavam o PT como mais corrupto do que Collor ou Sarney, que tiveram governos envolvidos em crises de toda ordem, inclusive corrupção”, resume Vitor Amorim de Angelo, pesquisador do Instituto de Ciências Sociais e Política na Université de Paris, professor de ciências sociais e coordenador da pesquisa na UVV. Segundo ele, a literatura internacional aponta ser impossível determinar se um governo é mais corrupto que outro devido à falta de transparência das operações.
E agora, quem poderá nos defender?
Segundo Vitor Amorim, “o quadro tem sido favorável ao discurso salvacionista — da força de fora que vai ser a redenção, com um viés conservador, autoritário, um discurso belicoso — no Brasil e fora daqui, como na Europa, e agora nos Estados Unidos, com a eleição de Trump”.
Com mais casos de corrupção vindo à tona após a saída da ex-presidente Dilma e a entrada da Lava-Jato em fases que denunciam outros partidos além do PT, como o PSDB e o PMDB, aumenta a parcela da população que vê a classe política de forma cética e até mesmo preconceituosa. Estes procuram por estratégias e pessoas que possam salvar a pátria. Assim surgem as figuras do Super-Moro e dos “não-políticos” que venceram nas últimas eleições — como João Dória, em São Paulo e Alexandre Kalil, em Belo Horizonte.
Para inflar a imagem de idoneidade, muitos abrem mão de seus salários de políticos, como a prova de que não estão ali para ganhar dinheiro, porque já são ricos. No entanto, como explica o professor Amorim, “a corrupção está para além do terreno da necessidade”.Nesse quadro de sentimento antipolítico, explica o professor, a tendência é pensar no empresariado como imune à corrupção:
Para derrubar este mito do herói moderno personificado no empresário basta trazer à memória a Operação Zelotes. Realizada em março de 2015, ela focou em lobbies de grandes empresas do país para sonegação de impostos e a influência dessas mesmas empresas junto a políticos que negociavam a aprovação da medida provisória que prorrogou a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados.“O empresário acaba surgindo, do ponto de vista imagético, como um sujeito objetivo. Sua palavra é ‘gestão’, ele vai chamar ‘um pessoal técnico’ que vai resolver o problema. Ele não é de esquerda, nem de direita, ele é o que tem que ser. Esse é o discurso que começa a fazer sentido para muita gente que se sente em um momento que a disputa entre políticos tradicionais não os levou em frente. É um discurso que tenta pairar sobre as diferenças ideológicas, o que é falho. Porque me impressionaria se houvesse um empresário de esquerda, economicamente intervencionista.”
Exatamente um ano depois, em março de 2016, surgiram as grandes manifestações organizadas por grandes empresários ligados à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). Eles diziam que não iriam “pagar o pato”, em alusão aos impostos. Acontece que eles nunca pagaram.
O grande empresário não é um ser que vivia apartado da política e que agora despertou. A elite econômica do país sempre esteve politicamente ativa. Não no papel de político profissional, mas na ação política. Ela sempre esteve presente nos cafés e jantares, nos conselhos, no lobby e, até 2014, abertamente, nos patrocínios de campanhas eleitorais.
Com os militares, pelo menos…
Outra falsa ideia defendida por grupos minoritários e extremistas é a de que a solução para acabar com a corrupção seria a intervenção militar. Durante as duas ditaduras brasileiras havia menos notícias sobre escândalos, bem como menos investigações sobre corrupção para serem noticiadas. Contudo, muito longe de ser um reflexo de transparência e honestidade, isso era o resultado da falta de instituições livres para fiscalizar.
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“De fato, durante a ditadura nós tivemos menos denúncias públicas, mas tudo indica que os esquemas eram maiores naquela época, porque os mecanismos de fiscalização estavam amordaçados, não tínhamos Ministério Público nem imprensa livres”, diz o historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, autor de livros sobre a corrupção na época da ditadura, em entrevista ao The Intercept Brasil. “Os escândalos que temos hoje só chegam ao conhecimento do público devido ao amadurecimento e fortalecimento desses mecanismos e instituições.”
Campos também chama a atenção para o caráter conservador das manifestações que tomaram as ruas no início do ano, repetindo o discurso moralista já visto da campanha de Jânio Quadros ao golpe de 64, passando pela recente deposição de Dilma. A bandeira anticorrupção, lembra ele, nem é levantada por “agentes não necessariamente não corruptos e não necessariamente para acabar de fato com a corrupção”.
Em seus últimos dias de vida, em 1954, Getúlio Vargas encarou a imagem de corrupto que fazia o povo pedir sua deposição. Quando o governo de Juscelino Kubitschek começou a enfrentar uma crise econômica, principalmente afetada pela inflação, logo surgiram denúncias e escândalos de corrupção. A vitória do pleito seguinte, em 1960, coube a Jânio Quadros, da conservadora UDN. Sua campanha ficou famosa pelo jingle “Varre, varre, vassourinha”, que varre a “bandalheira”, e prometia um “Brasil moralizado”. E no golpe que derrubou o governo João Goulart, em 1964, o objetivo — ao menos no discurso — era combater a corrupção e derrubar o comunismo.
“Inclusive, a corrupção que temos hoje é herdada de práticas que foram cristalizadas no período da ditadura. Muitos dos políticos mais corruptos de hoje são herdeiros. Pessoas notoriamente conhecidas e com diversas acusações, como Paulo Maluf, o falecido Antônio Carlos Magalhães, José Sarney, eram líderes herdeiros da ditadura”, diz Campos.
Então vamos, de fato, combater a corrupção
Para atacar de maneira objetiva a corrupção, é preciso atacar os mecanismos legais e políticos que estão na origem da questão. As normas que regem os contratos de licitação, especialmente de obras públicas, por exemplo, seriam um bom começo. Maior transparência em relação ao financiamento de campanhas políticas e uma atenção especial ao trabalho dos auditores fiscais, já que são eles os responsáveis por investigar crimes desse tipo, também seriam boas ideias.
No entanto, a tentativa de anistia ao caixa dois — a segunda este ano, lembre-se disso — já mostra quais são as reais intenções do governo e do Congresso Nacional. Apesar de seu óbvio interesse na aprovação do projeto, não seria espantoso que os parlamentares acabassem sugerindo que ele surgiu na pauta por geração espontânea (nem seria surpreendente se algum parlamentar defendesse isso, lembrando que há apenas dois anos, este mesmo Congresso defendeu o criacionismo). Afinal, filho feio não tem pai.
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