Mário de Andrade abre o primeiro prefácio de “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter” escrevendo sobre o personagem que se tornaria maior do que ele mesmo: “Macunaíma não é um símbolo nem se tome os casos dele por enigmas ou fábulas”. No segundo prefácio, ele insiste na negação impossível: “Só não quero é que tomem Macunaíma e outros personagens como símbolos”.
O fato de que o criador do maior herói-símbolo brasileiro, um ícone cultural hoje estabelecido e aceito como expressão da forma e essência do país, o negue justamente como símbolo pode ser menos contraditório do que parece. Talvez sejamos macunaíma demais, sem “civilização própria ou consciência tradicional”, para nos fixarmos num mito identitário ou ideal coletivo. Talvez a “falta de caráter” do Brasil o faça imune a metáforas.
Penso nisso ao ver o vídeo que mostra MC Beijinho cantando “Me Libera Nega” algemado num camburão em Salvador ao lado de um repórter branco que lhe empresta o microfone – para depois ser catapultado para a fama ao mesmo tempo que canibais da MPB lhe vampirizam. Preso em flagrante por assalto, o cantor gatuno não para de cantar, mesmo quando o jornalista do “Balanço Geral”, da TV Record, afasta o microfone para depois vaticinar: “é um artista”.
Alguém poderá tentar usar MC Beijinho como símbolo de alguma coisa, mas o episódio parece “por demais forte simbolicamente” para tal. É só dar play e ser nocauteado pelo Brasil.
A não metáfora continua. Preso e solto em novembro, o baiano de 19 anos Ítalo Gonçalves Conceição gravou a música e um clipe no mês seguinte e virou notícia em todo o país nos primeiros dias do novo ano. Na mesma semana, o Brasil viu o massacre de mais de 90 pessoas sob custódia do Estado em presídios de Manaus e Boa Vista na pior tragédia do tipo desde o Carandiru.
A resposta do governo foi um encolher de ombros (“acidente pavoroso”, disse o ilegítimo) e a descoberta de que o secretário Nacional de Juventude (?) de Temer era um comentarista de portal do tipo “tinha que matar mais.” O sempre equivocado ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, que em outubro do ano passado já tinha chamado uma rebelião em Boa Vista de “situação pontual”, mentiu sobre ajudas pedidas pelo Estado de Roraima e ganhou um abaixo-assinado de juristas pela sua exoneração.
Enquanto a política de Estado para lidar com o caos carcerário, provocado pela guerra às drogas e pelo encarceramento em massa, for mais guerra às drogas e encarceramento em massa, estaremos cada vez mais distantes da paz. Nossa política vai na contramão da tendência mundial, da opinião de especialistas e fortalece o crime organizado, criando uma máquina de alistamento para facções – que efetivamente governam os presídios no lugar do Estado. Não é exagero dizer que o pai do PCC e seu maior sócio-investidor é o governo brasileiro.
O estrelato de um assaltante maconheiro que é revelado para o país algemado num camburão poderia servir para popularizar o debate sobre a descriminalização das drogas e a falência do sistema prisional brasileiro. Mas o hit do verão já veio acompanhado de entrevistas de MC Beijinho numa clínica de reabilitação, ajudando a consolidar a percepção de que o uso de drogas é responsável pela marginalização – e não o contrário.
No carnaval, vamos todos beber, fumar e cheirar bastante ouvindo “Me Libera Nega” do ex-presidiário “usuário de entorpecente” que logo estrelará campanhas contra as drogas. O Brasil vai continuar investindo no caos, no assassinato e no encarceramento de jovens negros. A tão propagada transformação da vida do assaltante de Itapuã através de “Me Libera Nega” com sorte vai servir apenas para libertá-lo do destino que lhe aguardava – o mesmo que seguirá destruindo a vida de milhares de brasileiros todos os dias.
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