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Caso Romeia mostra como a Justiça é culpada por desastre humanitário nas penitenciárias

Funcionária de loja que vendia produtos de possível origem ilícita foi condenada a penas que somam quase 35 anos de prisão

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Eu sei que a pauta do momento é o massacre nas penitenciárias brasileiras. Mas precisamos falar do caso da sra. Romeia Pereira da Silva. Até porque, se prestarmos atenção, veremos nele algumas pistas que ajudam a entender como nos afundamos nesse desastre humanitário, um processo de cada vez.

A sra. Romeia foi presa em flagrante, estilo pé na porta e voz de prisão, em 2004, pelo crime de “receptação qualificada”, que, segundo o Código Penal, significa adquirir, vender ou de qualquer forma utilizar um objeto que seja produto de crime. Basicamente, a sra. Romeia trabalhava em um lugar onde se guardavam e vendiam aparelhos de som automotivos – uns “CD players” –, sendo alguns deles de provável origem ilícita. O nome da loja na qual ela trabalhava, é verdade, não ajudava. Era “Sucauto”. E todos nós conhecemos uma “Sucauto”, certo?

A partir daí, a sucessão dos fatos deveria ter sido a seguinte: 1) seria iniciado o inquérito, a evidência contra a investigada seria recolhida e periciada, seriam ouvidos os depoimentos dela e de possíveis testemunhas, e o delegado relataria os fatos; 2) o Ministério Público, com base nos elementos apurados, decidiria se denunciaria a investigada à Justiça; 3) Caso fosse oferecida e aceita a acusação formal pelo Judiciário, a investigada passaria a ser processada nos termos da lei e, se satisfeitas todas as condições exigidas pelo Direito Penal, condenada pelo crime que lhe foi imputado. Neste caso, sra. Romeia receberia uma pena que deveria ser de três a oito anos de reclusão, além de multa. Na prática, considerando a sua pobreza e o fato de ser ré primária, as duas ficariam no mínimo legal, talvez um pouco mais.

Não se sabe por qual motivo, o delegado responsável decidiu iniciar, ao invés de um, nove inquéritos iguais, um para cada “CD-Player”

O que aconteceu, contudo, foi completamente diferente. Não se sabe por qual motivo (pois fundamento jurídico não há), o delegado responsável decidiu iniciar, ao invés de um, nove inquéritos iguais, um para cada “CD-Player” encontrado no local. Desses nove inquéritos resultaram nove idênticos processos penais, em relação ao mesmo fato e contra a mesma pessoa, lembre-se. E, adivinhem só, todos eles chegaram a semelhante fim: nove condenações análogas, depois somadas. Assim, para coroar essa aberração jurídica, chegamos à inacreditável pena total de 34 anos, 10 meses e 4 dias de prisão!

Para se ter uma ideia da desproporção chancelada por juízes, desembargadores e ministros (o caso já passou pelo Superior Tribunal de Justiça), bastaria mencionar que a pena aplicada contra a sra. Romeia é superior ao limite previsto para nossos delitos mais graves, incluindo-se aí a tortura, o estupro e a extorsão mediante sequestro, todos seguidos pela morte da vítima. Ela ultrapassa, inclusive, o máximo castigo previsto para o genocídio. No Brasil, todos esses crimes têm pena máxima de 30 anos – à exceção da tortura com resultado de morte, que tem pena de 16 anos. Se a morte é executada por meio insidioso ou cruel (o que equivale a tortura), entretanto, a pena é de 30 anos também.

Em outras palavras, conforme o Judiciário brasileiro, uma vendedora potencial de produtos com origem ilícita merece sanção superior à reservada para personagens como Pol Pot, Hitler e Leopoldo II.

Não se pretende aqui sustentar que o que a sra. Romeia fez – ou permitiu que se fizesse – fosse certo. Claro que não. Mas, seja do ponto de vista moral ou legal, a atuação dos agentes da lei no caso foi muito pior do que a falta atribuída à cidadã.

E assim, de erro em erro, por algo que não deveria resultar, sequer, em regime fechado, a sra. Romeia está há mais de 10 anos na penitenciária feminina de Santana, em São Paulo, de onde agora dirige um último apelo ao Supremo Tribunal Federal.

O habeas corpus apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo no final do ano passado pedia sua soltura imediata enquanto se discutem filigranas jurídicas e se distribuem culpas institucionais. O ministro Ricardo Lewandowski, entretanto, não deferiu a liminar. Segundo o despacho, do final do ano passado, o caso não seria absurdo o suficiente para motivar uma decisão monocrática e deve aguardar o julgamento do plenário da Corte. Que tal?

Tudo isso custa caro, e não apenas em termos de dignidade humana. Além de manter na prisão alguém que deveria estar em liberdade há bastante tempo, o contribuinte brasileiro precisa arcar com o custo de um processo absurdo, que sequer deveria ter começado, mas que, pela sucessiva incompetência das autoridades envolvidas, chegou à mais alta Corte do país – e sabe-se lá quando será julgado. Nada disso faz sentido.

Por isso encerro com uma provocação, a título de conclusão parcial. A irracionalidade das prisões brasileiras, evidente em seus massacres cíclicos, é reflexo concreto da irracionalidade própria do nosso cotidiano forense, que condena no atacado, absolve no varejo e erra feio em casos como o da sra. Romeia.

A ideia de que algumas mudanças pontuais irão modificar essa realidade é tão ingênua quanto perigosa, mas esse ainda é o horizonte determinado pela miopia do alto escalão da burocracia nacional, Judiciário inclusive. Enquanto eles não se conscientizarem de que são parte do problema, não da solução, não há avanço significativo possível. E isso começa pela autocrítica, no reconhecimento e saneamento urgente de seus erros mais evidentes. Mas quem se importa?

Pior para a sra. Romeia, que segue presa.

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