O FBI opera na internet com vigor sem precedentes e sob regras extremamente frouxas, conforme mostram as diretrizes internas secretas obtidas pelo The Intercept. Agentes secretos conversam online livremente com pessoas que não são suspeitas e que nem sequer estão sob investigação.
O órgão fez do antiterrorismo sua prioridade estratégica, dedicando pessoal e atenção a um projeto central chamado Net Talon (garra da internet) e medindo seu desempenho através de métricas como o tempo que seus agentes passam online, quantas publicações fizeram e quantas identidades falsas criaram. Os tentáculos virtuais do FBI são tão extensos que o órgão por vezes acaba investigando seus próprios agentes.
Como alguns grupos terroristas usaram a internet de forma eficaz para divulgar propaganda e recrutar indivíduos conturbados, o mundo virtual se tornou um palco importante para as operações antiterrorismo do FBI. O órgão deu ampla autoridade para seus agentes que operam online, visando aumentar o número de operações “isca” de antiterrorismo, dentre outras. Mas advogados, especialistas e ativistas demonstraram preocupação que o uso agressivo de operações secretas possa estar encarando como terroristas os infelizes que dizem besteiras na internet.
As informações contidas nesse artigo foram obtidas em grande parte a partir do Guia de Política de Antiterrorismo do FBI, um manual para agentes trabalhando em casos de terrorismo nacional e internacionais. O documento, classificado como confidencial, é de 1º de abril de 2015 e está sendo divulgado pela primeira vez.
O The Intercept está publicando partes do guia que lidam com as investigações online do FBI, um assunto sobre o qual o órgão oferece pouca transparência. Outras orientações sobre operações secretas foram publicadas no passado, mas nada que entrasse em mais detalhes sobre as investigações online.
De acordo com o guia, uma investigação antiterrorismo online pode ter como alvo sites e redes online que o FBI acredita serem usados por terroristas para “encorajar e recrutar membros” ou para divulgar propaganda. As investigações podem cobrir os administradores e criadores desses fóruns, bem como as pessoas envolvidas no “desenvolvimento de práticas de segurança nas comunicações” ou pessoas “agindo como ‘mensageiros virtuais’ de organizações terroristas passando mensagens online entre seus membros e líderes”.
O guia classifica como investigações online aquelas que dependem principalmente de informantes online ou funcionários disfarçados, assim como as que envolvem a vigilância de dispositivos de internet ou sites estrangeiros hospedados em servidores nos EUA. Com frequência, o FBI realiza essas operações em parceria com outras agências de inteligência dos EUA ou “parceiros internacionais”, diz o documento.
Desde 2008, a Divisão Antiterrorismo coordena essas operações sob um programa chamado Net Talon National Initiative (Iniciativa Nacional Garra da Internet). O Net Talon usa informantes, linguistas e funcionários do FBI disfarçados de usuários de internet normais para investigar a forma como terroristas usam a internet, explica o guia. A iniciativa visava desenvolver especialização em alvos e plataformas específicos para “suprir as lacunas de inteligência” e criar uma central contendo toda a inteligência que o órgão coletou sobre o uso da internet por parte de terroristas.
As atividades online do FBI parecem ser tão abrangentes e descoordenadas a ponto de levar a confusões. O documento menciona “recursos sendo desperdiçados investigando e coletando [informações] sobre as [próprias] identidades do FBI na rede”, incluindo funcionários disfarçados, informantes e pessoas que já tinham sido investigadas por outros órgãos e agências. Um oficial do FBI revelou ao The Intercept que “você podia estar em um fórum e pensar ‘essa pessoa é muito estranha’, aí, nós vamos e abrimos um caso, e algumas vezes acaba sendo um departamento de polícia local ou um serviço estrangeiro aliado. Ainda há casos em que isso acontece e é importante determinar quem é fogo amigo”.
O Guia de Políticas Antiterrorismo demonstra a flexibilidade que informantes e agentes disfarçados têm quando operam online, mesmo que não estejam trabalhando com alvos específicos. O FBI insiste que não há nada demais: em declarações enviadas ao The Intercept, o órgão de inteligência disse que “ainda que existam diferenças óbvias entre ambientes online e offline”, funcionários e informantes do FBI trabalhando na internet estão sujeitos às mesmas regras, e os funcionários do órgão só podem monitorar a atividade de pessoas online através de uma investigação autorizada.
No entanto, o guia sugere que a internet tem áreas ambíguas. Muito se resume a questões sobre o que um informante pode fazer em contraposição ao que fazem os funcionários do FBI, e se o objetivo da operação deve ser entendido como uma tentativa de obter informações de inteligência específicas, um simples monitoramento de sites públicos ou o desenvolvimento de um perfil para uma identidade secreta.
Por exemplo, o guia indica que um funcionário do FBI pode visitar um fórum de mensagens ou blog apenas quando o site for relevante para uma investigação. Um funcionário do FBI, de acordo com o guia, pode ser um agente secreto ou um “funcionário disfarçado online”, um termo que teoricamente se refere aos funcionários do FBI que não são agentes, como analistas, por exemplo. Funcionários do FBI não podem conversar online com alguém que não seja alvo de uma investigação com o objetivo de coletar informações de inteligência sobre a pessoa. No entanto, podem “se comunicar de forma ilimitada com [indivíduos] associados” a uma pessoa sob investigação, se as conversas forem relevantes para a investigação.
Informantes e funcionários disfarçados do FBI também são autorizados a realizar diversas atividades online com a finalidade de “conquistar confiança”, como criar identidades falsas ou se passar por comentaristas normais em fóruns online. O guia diz que, para ganhar credibilidade, os funcionários do FBI “podem fazer publicações e se comunicar com indivíduos que não sejam nem o alvo da investigação, nem associados ao alvo (…) não há limite quanto ao volume de comunicação que [eles] podem iniciar neste sentido”.
E o FBI tem permissão para abrir novas investigações sobre as pessoas que identificar através de “monitoramento passivo ou comunicação ativa” em sites da internet.
Um porta-voz do FBI esclareceu que, para que um funcionário disfarçado ou secreto monitore um site ou um fórum, eles já devem estar associados a uma investigação, “seja porque o fórum era sabidamente usado por um indivíduo alvo [de uma investigação] ou porque os alvos da investigação participam do fórum. Eu não posso ficar no fórum tentando iniciar uma conversa com você”.
No entanto, o FBI reconhece que, quando seus funcionários participam de fóruns online, eles interagem com pessoas que podem ser apenas espectadores da atividade que também levou o órgão ao site inicialmente. E isso não é acidental. “Queremos saber se o alvo conhece outras pessoas que participarão, quem é parte da atividade e quem é apenas expectador”, explicou um porta-voz.
Em outras palavras, os agentes do FBI podem publicar mensagens e conversar com pessoas que não têm nada a ver com a investigação, desde que não coletem informações de inteligência. Mas durante a conversa online, podem decidir investigar alguém.
Michael German, ex-agente do FBI, agora parte do Brennan Center for Justice (Centro Brennan de Justiça) da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York, disse que os agentes sempre querem um pouco de flexibilidade nessa área. Eles podem ter um determinado número de encontros particulares com alguém ou, em algumas circunstâncias, ir a encontros públicos ou visitar sites públicos, sem se identificarem como agentes do FBI. Isso ajuda os agentes a evitar uma série de burocracias ao realizar uma simples apreensão de drogas através de uma operação de “compra e prisão”, por exemplo, disse German.
Mas a possibilidade de conduzir conversas online ilimitadas com o intuito de gerar confiança dá aos agentes “muita flexibilidade”, disse German.
O advogado penal de defesa Khurrum Wahid, que lidou ou foi consultor em diversos casos de segurança nacional, observou que funcionários e informantes do FBI frequentemente se passam por especialistas oferecendo orientação para indivíduos confusos.
“Esses jovens desinformados entram na internet e ficam impressionados com pessoas que demonstram um alto nível de conhecimento, mas frequentemente são informantes ou agentes disfarçados”, disse Wahid.
Informantes operam sob regras mais flexíveis do que funcionários do FBI. São autorizados a se envolverem com um alvo de forma ilimitada durante uma “avaliação”, que é uma investigação preliminar que pode ser iniciada por conta de um dica vaga sobre um comportamento suspeito, para coletar informações de inteligência sobre um alvo ou para avaliar um potencial novo informante. A categoria “avaliações” foi criada em 2008. German acredita ser problemático permitir que cada vez mais informantes sejam utilizados.
“O que notamos em operações ‘isca’ é que, antes de ser iniciada oficialmente, há uma parte questionável que conta com o informante”, contou German. “Aí então, quando isso é passado para um agente, eles [os investigados] parecem estar prestes a cometer um crime.”
Wahid observou que, pelo menos nos casos online, geralmente existem conversas entre suspeitos e informantes, mas “quando o informante atua no mundo real, eles podem desativar o gravador e nunca vamos saber o que aconteceu”.
Ouso de informantes em operações “isca” antiterrorismo se expandiu desde os ataques de 11 de Setembro, quando o FBI adotou o mantra de que seu trabalho é impedir ataques terroristas antes que eles ocorram, não apenas investigá-los depois. O governo defende que o anonimato que a internet oferece aos suspeitos demanda uma abordagem agressiva, inclusive operações isca. No ano passado, o diretor de segurança nacional do FBI disse ao New York Times que “usar agentes disfarçados online permitiu que o FBI confirmasse suspeitos ganhando sua confiança e os persuadindo a revelar suas identidades reais”. Em alguns casos, o FBI chegou a criar sites falsos para atrair suspeitos.
“As agências estão sob enorme pressão para encontrar uma agulha em um palheiro, algo que vem nos atormentando desde o começo da guerra contra o terror”, contou Karen Greenberg, diretora do Centro de Segurança Nacional da Faculdade de Direito de Fordham. “É verdade que a Internet mudou completamente a forma como nos comunicamos, mas vamos apenas investigar a internet daqui em diante? É colocar os princípios de investigação criminal de ponta cabeça.”
Poucos documentos ilustram tão bem a importância que o FBI coloca em suas operações online como a seção do Guia de Políticas Antiterrorismo sobre como alegar “conquistas estatísticas”. Esses números podem ser usados nas avaliações profissionais de agentes e nos relatórios do órgão para o Congresso. De acordo com o documento, o FBI criou novas formas para medir o desempenho de funcionários específicas para a atividade online, calculando o “tempo online, o número de publicações, sites extremistas identificados (por exemplo, blogs ou páginas) e identidades virtuais criadas”.
“Acredito que estamos em um período de transição na área de segurança entre o estilo antigo, que gastava sola de sapato e batia de porta em porta, e o novo, em que funcionários disfarçados online investigam fóruns e coisas do gênero”, explicou Seamus Hughes, especialista em extremismo da Universidade George Washington. “É evidente que eles estão concentrando esforços online, e faz sentido, porque é comum esse ser o sinal mais claro de que as pessoas se autodenominam radicais, e é mais fácil do que introduzir um informante em pessoa e grampeá-lo. E se você é um jovem de 17 anos de Indiana, é mais provável que você entre em contato com um terrorista conhecido ou suspeito na internet do que em Indiana.
É indiscutível que propaganda e mensagens online permitiram que o terrorismo estrangeiro semeasse a violência nos Estados Unidos, seja através de comunicação direta ou servindo de inspiração para terroristas solitários, como Omar Mateen, que atacou na boate Pulse, em Orlando.
No entanto, Hughes escreveu que “o papel da internet na radicalização [de pessoas] tem sido exagerado” e demonstra “uma simplificação extrema” do assunto.
“Isso não quer dizer que o ambiente online não é importante, mas não passa de um reflexo da vida real — a idade média de um alguém recrutado pelo Estado Islâmico é de 20 a 30 anos, e toda essa faixa etária usa a internet”, contou Hughes ao The Intercept. “As pessoas vão apontar para um perfil do Facebook e dizer, olha, ‘isso é radicalização online, ele postou uma foto de uma bandeira do EI’, mas essa análise é provavelmente muito superficial.”
Na maioria dos casos de pessoas que realmente tentaram entrar para o EI ou planejar um ataque violento, o relacionamento fora da internet foi crucial para isso.
“A radicalização não ocorre em um vácuo”, escreveu Hughes. “Embora o ambiente online possa solidificar crenças e oferecer um apoio inimaginável há apenas alguns anos, ele não é a única forma de recrutamento de terroristas.”
Esta é uma reportagem de uma série de onze publicadas pelo The Intercept com base em centenas de páginas de documentos secretos do FBI. Para ler todas as reportagens e os documentos em inglês, clique aqui.
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