A destruição de direitos e a proteção à corrupção (de alguns) são as duas faces do processo que levou Michel Temer ao Planalto e Alexandre de Moraes ao Supremo Tribunal Federal. Serão, também, as prováveis marcas de sua atuação como ministro da Corte.
Se é possível prever que a indicação de Moraes ao STF será objeto de grande contestação no meio jurídico e na opinião pública, não se pode deixar de reconhecer que ela é representativa do momento vivido pelo país, sem o qual ele, Moraes, seria não mais que aspirante a um “João Doria” dos Bandeirantes – um “poste” do PSDB na busca a manutenção da hegemonia no estado de São Paulo. Momento que tem como faces a destruição de direitos e a proteção à corrupção de alguns.
Uma missão certeira de Moraes à frente do STF será dar retaguarda ao espectro de restrição de direitos, que rondava o país já no governo Dilma Rousseff, mas se instaurou definitivamente com a posse de Michel Temer.
Diferente de Itamar Franco, que buscou atrair forças progressistas para o governo e centrou fogo na gestão econômica, Temer compôs um governo de oligarcas e abriu espaço para ressentidos de toda ordem em relação às poucas, mas significativas conquistas sociais dos governos petistas.
Uma missão certeira de Moraes à frente do STF será dar retaguarda ao espectro de restrição de direitos.Na Fazenda, montou um time que, a pretexto de que controlar a dívida e criar meios para a retomada do crescimento econômico, condenou o país a duas décadas de paralisia nos investimentos públicos, com fortes impactos em políticas como de educação e saúde; e que continuará sua saga com a reforma da previdência e a já anunciada reforma trabalhista.
Na Saúde e na Educação, alocou amigos do empresariado que atuam para desmontar os serviços públicos e afrouxar a regulação para os serviços privados.
No Desenvolvimento Social, alocou forças que se orgulham de cortar – ao invés de ampliar – beneficiários de políticas bem-sucedidas, como o Bolsa Família, entre um ou outro pitaco moralista em relação às drogas.
Nas Telecomunicações, presenteou as companhias com valores estimados em R$ 100 bilhões sem criar nenhum meio para assegurar que esses valores vão, de fato, se traduzir em investimento na expansão da banda larga. Ao contrário, o Ministério das Comunicações e a Anatel estudam estabelecer franquias de dados até mesmo para a banda larga fixa.
Incapaz de confrontar essa agenda no congresso ou de contar com as “ruas” que, em 2013, juravam querer serviços “padrão Fifa”, a oposição, mais cedo ou mais tarde, terá de recorrer aos tribunais, em geral, e ao STF, em especial. É difícil que saia daí como grande vencedora, mas alguns ganhos podem ser vislumbrados em áreas como a liberação da maconha e a própria reforma na legislação de telecomunicações, já recém obstada pelo ministro Roberto Barroso. Com Moraes, o governo ganha um cão de guarda para fazer frente a esses possíveis obstáculos.
“Estancando a sangria” da Lava Jato
Também é provável, e cada vez mais evidente para a opinião pública, que Moraes vai para o STF com outra missão certeira: cumprir o “plano Machado” e “estancar a sangria” que, desde 2014, a Lava Jato vem causando no sistema político. Para isso, sua indicação apresenta dupla utilidade.
Em primeiro lugar, ela abre espaço para que Temer nomeie alguém mais habilidoso no Ministério da Justiça, órgão que chefia a Polícia Federal, mas também unidades importantes para a operação – como o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, DRCI, responsável por estabelecer pontes com autoridades estrangeiras para a troca de informações e evidências sobre crimes como lavagem de dinheiro. Órgãos e unidades que Moraes já vinha buscando aparelhar, mas com a truculência que lhe era peculiar.
Em segundo lugar, ela desloca alguém do governo com passagem pelo PSDB e pelo DEM para a condição de revisor dos processos da Lava Jato no STF. O revisor tem posição crucial nesse tipo de julgamento, pois tem acesso privilegiado aos autos e pode abrir divergências em relação ao relator, criando bases argumentativas para recomposições do plenário. Quem tem a memória do julgamento do Mensalão do PT deve se lembrar dos embates entre Joaquim Barbosa (relator) e Ricardo Lewandowski (revisor), que, em muitos casos, chegaram a rachar a Corte, com Rosa Weber (assessorada, à época, por Moro) servindo de voto decisivo em relação a condenar ou não alguns réus.Em reação genérica ao nome de Moraes, que já circulava nas redações de jornais e redes sociais como o indicado de Temer, o coordenador da força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal, Deltan Dallagnol, lembrou seus seguidores nas redes sociais que o novo ministro do Supremo poderia comprometer a operação. Dallagnol referiu-se à decisão apertada proferida pelo STF quanto à possibilidade de prisão após a condenação em segunda instância. Segundo ele, essa decisão era um incentivo às delações, e poderia ser revertida com a mudança na composição do Tribunal, já que Teori Zavascki dera um voto decisivo para compor a maioria que a proferiu.
Mas essa obsessão pelas delações só mostra a atitude “monocular” do procurador, para usar a expressão de alguns de seus colegas de carreira. Muito mais estratégico seria, por exemplo, que Moraes trabalhasse para alterar a posição do Tribunal na distinção entre “corrupção” e “caixa dois”, o que eventualmente pode beneficiar parte dos políticos do PSDB e do PMDB, reforçando, ademais, o foco da operação no PT. Se tivesse que apostar, diria que é por aí que ele vai.
Um ministro “político”
Por fim, Moraes poderá cumprir um papel inusitado, mas de extrema utilidade para os interesses que representa – uma reconfiguração do STF no longo prazo.
Respeitáveis analistas do Tribunal costumam caracterizá-lo como fragmentado (“onze ilhas”) e suscetível a voluntarismos de ministros. Não estão errados, mas o fato é que essa condição, embora facilitada pelo desenho do STF na Constituição, também é resultado do perfil de indicações nos governos petistas, Dilma Rousseff em especial: “juristas”, como Fachin e Barroso, ou egressos de carreiras jurídicas, como Teori e Rosa Weber. São figuras que entendem, mas engajam muito seletivamente na linguagem da política.
Moraes tem outra procedência. É um ministro que não tem como esconder seu tino político, como Gilmar Mendes, Dias Toffoli ou o próprio Fux, que votou contra o direito de greve de servidores públicos alegando abertamente a preocupação com a ordem social, já que o país passaria por período de reformas e ajustes econômicos.
Virou mania no Brasil a preocupação com ministros “políticos” sob a hipótese de que eles fariam a defesa de posições partidárias, ao invés de decidirem com base na lei. E é possível encontrar algo disso nas biografias acima, embora em alguns casos a orientação partidária vá em direção radicalmente oposta à da origem de sua indicação.
Mas a ampliação da carga política do Tribunal pode cumprir outros propósitos para os quais nem mesmo os bons analistas parecem estar de olho. Um deles é a formação de posições mais agregadas entre os julgadores, que sairiam de “onze ilhas” para formar um “arquipélago”, capaz de produzir maiorias, ao menos nos casos mais relevantes para a preservação (ou a destruição) da governabilidade (muitos dos quais, não por coincidência, acima referidos).
Descrevendo a democracia americana, Tocqueville disse que os advogados (e juízes, em particular), eram a “aristocracia na República”. Porque aplicam a lei, eles dão efetividade aos interesses majoritários. Mas por sua posição social, eles podem barrar os impulsos majoritários sempre que estes puserem em xeque os interesses das elites. Na alusão ao Brasil de 2016 e na formulação bem mais direta de Sergio Machado, poderíamos dizer que são os únicos capazes de assegurar “um grande acordo, com Supremo, com tudo”.
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