Em apenas 40 anos, o norte do estado de Mato Grosso sofreu uma transformação profunda: o avanço do agronegócio substituiu o cerrado e a floresta amazônica por extensas monoculturas agrícolas, protagonizadas pela soja.
A soja entrou no estado a uma velocidade assustadora: a área sob cultivo pulou de 1,2 milhões de hectares em 1991 para 6,2 milhões de hectares em 2010 e para 9,4 milhões de hectares em 2016. Segundo o geógrafo Antônio Ioris, professor da Universidade de Cardiff, que pesquisa o avanço do agronegócio em Mato Grosso, um fator-chave neste processo foi a participação do órgão de pesquisa agrícola do governo federal: “As novas tecnologias desenvolvidas pela Embrapa para os solos ácidos e outros problemas permitem que a soja entre após uma crise do setor na década de 1980, dando novo fôlego à fronteira agrícola”. Entretanto, a grande expansão da soja aconteceria no final dos anos 1990, “beneficiada pelo boom das commodities e pela liberalização da economia”, completa Ioris.
O avanço do agronegócio no MT foi acompanhado da narrativa de levar “desenvolvimento para o estado” mas, segundo Andreia Fanzeres, coordenadora do programa de direitos indígenas da Operação Amazônia Nativa (OPAN), ONG que trabalha com povos indígenas na região, tais “benefícios” não alcançaram todos que ali viviam. Como ocorreu em episódios anteriores de colonização na Amazônia, as populações tradicionais que habitavam a região há centenas de anos nunca foram consultadas ou beneficiadas com a indústria da soja: “As comunidades indígenas e agricultores familiares de forma geral sempre estiveram à margem do processo de decisão sobre que tipo de desenvolvimento querem”.
“Há certas regiões, como ali próximo à Brasnorte [município às margens do rio Juruena], por exemplo, onde você pode olhar 360 graus ao redor sem ver uma única árvore”, comenta o antropólogo Rinaldo Arruda, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Chantagem “Moderna”
O cultivo da soja exige grandes extensões de terra para ser lucrativo. Assim, sua expansão no estado levou à concentração fundiária. Com a valorização da commodity e o aumento da produtividade, a economia nacional foi se tornando cada vez mais dependente das divisas oriundas da exportação desse bem primário. O peso da soja na balança comercial brasileira “garante poder político para influenciar a implementação de infraestrutura e logística, como a pavimentação das estradas e até a construção de hidrovias”, explica Ioris, sintetizando: “O agronegócio chantageia o país”.
Em todos os níveis, o agronegócio na região é amplamente promovido por governos e indústria como sinônimo de “modernidade” e “desenvolvimento”.
“Se não fosse a soja, Mato Grosso ainda estaria em uma situação de atraso“, diz o atual ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Blairo Maggi, um dos maiores produtores do grão no país e que governou o estado entre 2003 e 2010. “Hoje, o produtor de soja consegue margem de 30% sobre o capital investido”, afirma Maggi.
Entretanto, o lucro de poucos fazendeiros ao preço da expropriação de um grande contingente de famílias camponesas se revela uma concepção bastante particular de progresso. O esvaziamento populacional do campo, provocado pelas imensas monoculturas, também não parece ser exatamente “moderno”.
Em trabalhos que são referência obrigatória para entender a fronteira, o sociólogo José de Souza Martins apontou o uso de dinâmica similar durante a ditadura. Suas pesquisas mostram que, ao mesmo tempo em que o governo militar discursava a camponeses pobres, acenava a grandes grupos econômicos com fartas ofertas de financiamentos; enquanto propagava a ocupação do “vazio” amazônico, beneficiava com políticas públicas os megaprojetos de pecuária, atividade que justamente expropriou mais gente do que trazia.
Nos campos desnudos de gente e árvores, erguem-se, aqui e ali, um e outro grande terminal graneleiro para estocar a soja. Os silos ostentam marcas de grandes multinacionais em suas fachadas, principalmente Bunge, ADM e Cargill, e da empresa brasileira Amaggi, cujo dono é Blairo Maggi, atual ministro de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Depois de ter acumulado fortuna com o plantio, processamento e exportação de soja, a Amaggi se juntou aos grandes operadores do comércio internacional. A empresa tem relação particularmente estreita com a Bunge, de quem é sócia nos terminais graneleiros localizados em Miritituba (Itaituba, PA), às margens do baixo rio Tapajós.
Tratorando a reforma agrária
Rumo ao norte, a soja expandiu-se de forma irregular, chegando a lugares como o projeto de assentamento de reforma agrária Wesley Manoel dos Santos, criado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 1997. Localizado a 70 km ao noroeste do município de Sinop, o assentamento é um claro indicativo dos desafios que a agricultura familiar enfrenta no Brasil, e em especial, na Amazônia. Ali é possível perceber como o abandono e a negligência estatais acabam inviabilizando a vida dos assentados e permitindo que o agronegócio avançasse sobre suas terras.
A área fora comprada pela Mercedes Benz do Brasil no final da década de 1960. Segundo as pesquisas de Odimar João Peripolli, professor da Universidade Estadual de Mato Grosso, para burlar a lei, a Mercedes constituiu dez empresas de sociedade anônima; cada S/A acumulava terras em seu nome, integrando “40, 50, 60… mil hectares, perfazendo um total de mais ou menos 500.000 mil hectares. Formada a propriedade, a grande área, o latifúndio passou a ser chamado/conhecido como Gleba Mercedes.” A criação das empresas também “significava garantia de financiamentos junto à Sudam (a antiga Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia)”. Os empréstimos deveriam ser investidos nas terras mas, segundo depoimentos colhidos por Peripolli, a área “nunca foi, de fato, ocupada pela empresa”. A Mercedes acabou por não quitar o terreno e o vendeu a uma empresa familiar de São Paulo. Em 1997, o Incra comprou a terra e criou um assentamento para instalar 507 famílias.
Implementar a reforma agrária não se limita a entregar a terra; inclui assistência técnica, construção de vias de acesso e um pacote de apoio ao colono. Porém, em uma conjuntura na qual o agronegócio é a prioridade das políticas públicas, as famílias procuraram outros caminhos.
Em um mundo onde terra desmatada vale muito mais do que floresta em pé, é a única forma que o assentado consegue valorizar seu lote.
No início, criavam gado leiteiro e vendiam leite e queijo em Sinop, o mercado mais próximo, distante mais de três horas de viagem em dias sem chuva. Os problemas não demoraram a surgir. Segundo o colono Jair Marcelo da Silva, conhecido como Capixaba, eles sempre adotaram cuidados com higiene, pois tinham como princípio só vender no mercado produtos que suas próprias famílias consumissem. Entretanto, a prática de seu cotidiano não atendia aos critérios da vigilância sanitária elaborados para laticínios industriais. “Os órgãos sanitários não pensam como a gente”, contou Capixaba. Os colonos foram proibidos de vender seus produtos em Sinop e os sonhos ruíram. “Eu tinha seis vacas dando leite, tirava até 90 litros por dia”, explicou Capixaba. “Fazer o que com esse leite? O que a gente fazia? Dava para os porcos. Imagina só!”
Os assentados tentaram, então, outro caminho – a criação de porcos e galinhas – e, mais uma vez, encontraram barreiras intransponíveis na legislação sanitária e veterinária. Sem renda, alguns colonos fizeram cursos para aprender a operar as máquinas sofisticadas usadas pelos grandes fazendeiros (que tinham, sim, como cumprir com as exigências sanitárias e veterinárias) e outros foram trabalhar como diaristas.
A terra dos colonos que não conseguiram viabilizar economicamente sua ocupação acabaram entregues de mão beijada aos sojeiros. Alguns, sem condições de viver, venderam seus lotes a preços muito baixos enquanto outros colonos acabaram arrendando por preços baixíssimos ou até, cedendo gratuitamente suas terras para que o fazendeiro as “amansasse”. Amansar a terra significa desmatar, destocar (arrancar as raízes das árvores derrubadas) e corrigir a acidez do solo, um processo custoso que leva pelo menos três ou quatro anos.
Ao final, o colono acaba com uma área apta para o capitalizado agronegócio da soja. Em um mundo onde terra desmatada vale muito mais do que floresta em pé, é a única forma que o assentado consegue valorizar seu lote.
Porém, o principal volume de soja no assentamento entrou por outro caminho. Durante nossa visita ao assentamento, notamos uma enorme plantação de soja, grande demais para pertencer a um único colono. Capixaba explicou: parte da reserva legal dos lotes (porção que deve ser mantida como floresta de acordo com o Código Florestal) foi reunida em uma área coletiva, de modo a formar uma grande massa florestal, proposta adequada do ponto de vista ecológico. Segundo os colonos, a área escolhida era coberta por uma “floresta tão densa que o fogo nunca penetrava”.
Pouco a pouco, a soja venceu a floresta. Os sojeiros usaram o corrent?o, técnica em que uma enorme corrente de aço com 100m de comprimento é atada pelas pontas a grandes tratores e arrastada, derrubando tudo que encontra pela frente. A área desmatada cobre hoje 3.500 hectares e está toda plantada com soja. Como aconteceu? Ninguém sabe dizer ao certo. Há relatos que um funcionário corrupto do Incra local vendeu a reserva para fazendeiros. Nada foi provado, mas de acordo com os assentados, hoje, o servidor goza de sua aposentadoria em uma mansão na cidade vizinha.
Corrupção, madrinha do Agronegócio
O avanço criminoso do agronegócio sobre assentamentos de reforma agrária não é peculiaridade da gleba Mercedes. No Tapuráh-Itanhangá, localizado ao oeste de Sinop, a Operação Terra Prometida, deflagrada em novembro de 2004 pela Polícia Federal prendeu mais de 20 pessoas pela apropriação de 1 mil lotes de um total de 1.149 lotes do assentamento. Segundo a Operação, as áreas eram concentradas e utilizadas como campos de soja. Entre os presos, estavam Odair e Milton Geller, irmãos do então ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Neri Geller, que hoje é secretário de Política Agrícola do Ministério.
De acordo com o geógrafo Antonio Ioris, há um caráter sistêmico na associação entre grilagem e agronegócio: “o agronegócio é intrinsecamente corrupto; há a corrupção mais evidente e imediata (como no caso da atuação do Incra e seu controle por fazendeiros e grileiros), mas há também a corrupção de longo-prazo, demonstrada na apropriação violenta e especulação da terra, na agressividade contra posseiros e índios e na destruição socioambiental.”
A Constituição Federal institui que o título que um assentado da reforma agrária recebe é inegociável pelo prazo de 10 anos. Isso torna ilegal a compra de lotes pelo agronegócio no assentamento Tapuráh-Itanhangá, pois, apesar do assentamento ter 20 anos de criação, a grande maioria de seus beneficiários não tinha títulos dos lotes há mais de 10 anos.
O Brasil é o país com maior possibilidade de ampliar sua produção de soja.
Essa regra foi alterada em 23 de dezembro de 2016, quando o governo de Michel Temer editou a Medida Provisória (MP) 759. Festejada por alguns, a medida apresentava caminhos para a situação caótica das ocupações em periferias urbanas.
Por outro lado, a MP acelerou o processo que reconcentra lotes em assentamentos de reforma agrária. Pelo texto da Medida Provisória, o prazo de 10 anos passa a contar logo no início do assentamento, quando as famílias recebem a autorização formal para se instalarem no lote, e não mais a partir do momento que o assentado recebe o título.
Para Cândido Neto da Cunha, “a MP tem a estratégia de jogar as terras da reforma agrária no mercado com a maior rapidez possível e criar meios de tornar ‘legais’ as ocupações ilegais de terras da reforma agrária”. Segundo Cunha, os assentamentos da região não contam com a estrutura necessária e a precariedade torna-se uma forma de pressão para que o assentado não consiga permanecer na terra.
“Isso torna as famílias assentadas mais susceptíveis à pressão que passarão a sofrer para a venda das terras nas áreas de expansão do agronegócio”, completa o perito agrário do Incra.
Futuro que repete o Passado
O cenário é de crescente mercado de consumo internacional para a soja, especialmente por parte da China. Prevê-se que até 2024 a demanda chinesa chegue a 180 milhões de toneladas de soja por ano, ou mais do que a soma atual dos três maiores produtores mundiais – Estados Unidos, Brasil e Argentina.
De onde virá essa soja? Os Estados Unidos têm pouca margem para aumentar sua produção e, desde 2010, analistas diziam que a área cultivada com soja na Argentina não pode mais crescer.
O Brasil é o país com maior possibilidade de ampliar sua produção de soja.
Até o início da década passada, o Brasil aumentou o volume de grãos por meio do crescimento em produtividade. Tal opção não existe mais: desde 2000, a produtividade se estabilizou em aproximadamente 3,1 toneladas de soja por hectare. A perspectiva, então, é a expansão da área cultivada e, neste sentido, uma das únicas opções é o avanço da fronteira agrícola sobre a Amazônia.
Esse cenário apavora o antropólogo Rinaldo Arruda: “Cidades inchadas de gente, sem saneamento, muito violentas, com conflitos internos e meio ambiente degradado. Uma Amazônia de periferia. Essa noção que acompanha nossa sociedade, pelo menos desde o século XIX, de uma evolução civilizatória é totalmente enganosa: é uma ficção.”
Ao que tudo indica, o projeto de futuro do agronegócio, que inclui a soja alastrando-se pela floresta amazônica e as comunidades locais expropriadas mudando-se para as grandes cidades, repete um passado de devastação ambiental, grilagem, concentração de terras, pobreza e violações dos direitos de povos indígenas e comunidades rurais.
Esta matéria é da série exclusiva “Tapajós sob Ataque”, escrita pela jornalista Sue Branford e pelo cientista social Mauricio Torres, que percorrem a bacia Tapajós. A série é produzida em colaboração com Mongabay, portal independente de jornalismo ambiental. Leia a versão em inglês. Acompanhe outras reportagens no The Intercept Brasil ao longo das próximas semanas.
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