A crise econômica reduziu o número de enredos patrocinados e fez minguar a receita de várias escolas de samba do Rio de Janeiro para o Carnaval de 2017. No entanto, mesmo com a carência de patrocínios, enredos autorais como os da Mangueira, Beija-Flor, Vila Isabel, Portela, Salgueiro, União da Ilha e São Clemente geraram bons sambas e prometem ótimos desfiles. As agremiações já são experientes na inovação diante da diminuição de recursos e sobrevivem com controversas formas de financiamento – o que ficou evidente quando as verbas advindas do jogo do bicho, abundantes desde a década de 1970, encolheram com a prisão da alta cúpula de contraventores na década de 90.
As primeiras escolas de samba do Rio de Janeiro foram criadas entre o final da década de 1920 e o início dos anos de 1930. Ao invés de aparecerem como instituições de resistência direta das comunidades afrodescendentes ao contexto de exclusão em que se encontravam, elas surgiram a partir de um processo sutil de negociação. De um lado, os pretos cariocas tentavam desbravar caminhos de aceitação social em um ambiente francamente hostil; do outro lado, havia um Estado empenhado em controlar e disciplinar as manifestações culturais das “classes perigosas”, que se expressavam com especial contundência no período do carnaval.
A história das escolas de samba foi marcada por circunstâncias de negociação.
O desejo de aceitação social de alguns setores subalternizados das camadas populares urbanas – e a vontade legítima de expressar elementos de sua cultura fora do alcance da repressão – e o interesse disciplinador do Estado convergem para a criação das agremiações carnavalescas.
Desde então, a história das escolas de samba foi marcada por circunstâncias de negociação, resistência, adesão, conflito, mediação e adequação aos interesses de patrocinadores que possam bancar a festa, sejam eles o Estado, a indústria do turismo ou mesmo a contravenção.
Expansão do jogo do bicho
Especialmente a partir da década de 1970, as relações estabelecidas entre as escolas de samba e os três elementos externos acima citados (Estado, indústria turística e contravenção) passam a ganhar contornos cada vez mais fortes.
Naquela década ocorreu uma reconfiguração na estrutura de comando do jogo do bicho no Rio de Janeiro, a partir da formação de uma cúpula que expandiu definitivamente os negócios da contravenção para além do jogo inventado pelo Barão de Drummond. Foram estabelecidas conexões com o aparelho de repressão da ditadura militar, que, aos poucos, migraram dos porões do regime autoritário para os subterrâneos da contravenção, e se aproximaram das escolas de samba cariocas, que já realizavam um carnaval importante para a economia e a cultura da cidade. Em busca da legitimidade social, Pade demarcação de território e de um setor propício para o investimento de parcela do capital ilícito, o bicho se apropriou do negócio do carnaval.
Vem desta ligação com o bicho a ascensão de escolas como a Beija-Flor de Nilópolis, a Imperatriz Leopoldinense e a Mocidade Independente de Padre Miguel. A presença do bicho no comando das grandes escolas de samba virou a regra confirmada pelas poucas exceções.
Financiamentos controversos
A década de 1990 trouxe novidades para este quadro. Os comandantes do bicho se viram envolvidos nas malhas da justiça, sobretudo com a prisão dos 14 maiores banqueiros do jogo no Rio de Janeiro, ordenada pela juíza Denise Frossard. Naquele momento, os desfiles das escolas de samba se caracterizavam cada vez mais pelo apelo visual e se tornavam mais caros de forma vertiginosa.
O revés da cúpula do bicho – que da cadeia continuava entranhada nas escolas, mas ia paulatinamente restringindo o investimento direto de capital – exigiu uma reconfiguração das fontes de financiamento das escolas de samba.
O dinheiro que patrocina desfiles das agremiações, de lá pra cá, é oriundo de diversas fontes: subvenção pública via Prefeitura do Rio (garantida em 2017 pelo atual prefeito), possível subvenção do governo federal via Petrobrás (em 2015 a empresa entregou R$ 12 milhões à Liesa), direitos de transmissão televisiva, arrecadação de bilheteria, e patrocínios que podem vir de empresas, cidades, governos do exterior e doações de benfeitores (os patronos).
A prestação de contas dessa dinheirama é um mistério. Em 2012, o Ministério Público investigou a emissão de notas fiscais para escolas de samba emitidas por empresas de fachada ou desativadas. A investigação se debruçou sobre a emissão de 43 notas fiscais de alto valor por empresas do Espírito Santo, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.
Segundo os investigadores, as escolas de samba compram, ao longo do ano, material com dinheiro não declarado. Quando recebem o repasse da prefeitura, emitem notas frias para justificar os gastos, limpando o dinheiro.
As agremiações, por sua vez, alegam que o repasse da prefeitura sai muito perto do carnaval, quando o desfile já tem que estar todo montado. Desta forma, o dinheiro da subvenção para o carnaval de um determinado ano terá que ser, a rigor, usado ao longo do ano para a preparação do carnaval seguinte, alimentando a suspeita ciranda do capital justificado por notas frias.
O ano de 2013, logo depois dessa investigação, foi marcado por uma série de enredos patrocinados: a cidade de Cuiabá, o cavalo Mangalarga, as novelas da TV Globo, o mundo de uma revista de celebridades, o estado do Pará, a Coréia do Sul, o Rock in Rio e a Alemanha passaram pelo Sambódromo. Ficou explícito ali um modelo de desfile das escolas de samba como espetáculo condicionado pela possibilidade de captação de recursos através da propaganda. Em 2015, a polêmica envolveu o patrocínio que a Beija-Flor recebeu do governo ditatorial da Guiné-Equatorial. Do próprio mundo do samba, todavia, articulam-se críticas a este modelo.
Grande parte da verba da prefeitura para os desfiles de fevereiro de 2017 foi repassada às escolas em dezembro, no final do mandato do prefeito Eduardo Paes. Naquela altura, os trabalhos nos barracões da Cidade do Samba, mesmo sem a verba pública, já estavam bastante adiantados.
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