O estado de Minas Gerais abriu licitações para que a gestão das fontes de água mineral siga o modelo de parcerias público-privadas em duas das dez cidades do Circuito das Águas. A privatização é criticada pela presidente do conselho Food and Water Watch e ex-conselheira da Assembléia Geral da ONU, Maude Barlow, em carta enviada ao governador Fernando Pimentel (PT-MG), a qual The Intercept Brasil teve acesso. A especialista lembra ao governador que a demanda por água vai superar a oferta em 40% em menos de uma década e que, por isso, é preciso proteger as reservas hídricas como um patrimônio público e um direito humano — e não enxergá-las como mercadoria.
Barlow foi procurada por cidadãos de Cambuquira (MG) organizados na ONG Nova Cambuquira, cidade que recebeu em 2014 o certificado de “Comunidade Azul”. O mérito é dado a municípios que sigam três regras: reconhecimento legal da água como direito humano, serviços de água com gestão e financiamento 100% públicos e banimento da venda de água engarrafada em instalações e eventos públicos.
Apenas 22 cidades no mundo (entre elas Paris, na França, e Berna, na Suíça) possuem o selo dado pelo Conselho dos Canadenses, do qual Barlow é presidente. Cambuquira é a única cidade brasileira a receber o selo. Colocar suas fontes sob gestão de PPPs fará o município perder não apenas o reconhecimento internacional, como também o controle sobre um recurso extremamente valioso.
“Estou profundamente decepcionada em ver um patrimônio hídrico tão único ser encarado como uma mercadoria a ser engarrafada e vendida.”
Essas são algumas das palavras de Barlow na carta. A canadense também é conselheira do World Future Council, com sede em Hamburgo e, entre 2008 e 2009, atuou como Conselheira Sênior de Água do Presidente da Assembléia Geral das Nações Unidas. Ela liderou a campanha que fez a ONU reconhecer, em 2010, a água potável como um direito humano.
No documento enviado ao governador mineiro, Barlow pede que Pimentel “proteja as águas de sua região” pelo bem das próximas gerações:
Clique aqui para ler o documento original, em inglês, ou leia abaixo a tradução:
2 de março de 2017
Sr. Fernando Pimentel
Governador
Estado de Minas Gerais, Brasil
Prezado Sr. Fernando Pimentel,
Em 2014, tive a oportunidade de visitar a cidade de Cambuquira e conhecer a maravilhosa região do circuito das águas. A meu ver, é uma região única no mundo com diversas fontes de água mineral. Em minha visita a Cambuquira, tive a honra de premiar a cidade com o certificado “Comunidade Azul”, colocando Cambuquira junto às 18 Comunidades Azuis do Canadá, às cidades de Saint Gallen e Bern na Suíça e a Paris. Fico feliz em ver uma comunidade tão pequena como Cambuquira envolvida com a defesa da água como um direito humano e bem público sob controle público. É um exemplo para outras comunidades do mundo. Também é uma combinação rara de um lugar especial em termos de fontes de água mineral com um grupo dedicado de cidadãos locais comprometidos com sua proteção. Seu empenho e entusiasmo me inspiram.
Através desse grupo de cidadãos, fui informada de que a empresa estatal proprietária dos parques hídricos — CODEMIG — anunciou a abertura de uma licitação para uma Parceria Público-Privada para que uma empresa privada possa então explorar, engarrafar e vender a água mineral desses parques hídricos. Estou profundamente decepcionada em ver um patrimônio hídrico tão único ser encarado como uma mercadoria a ser engarrafada e vendida.
Cambuquira e outras cidades do circuito das águas, com seus parques hídricos, merecem um futuro melhor, um futuro azul. Peço que reconsidere a decisão dessa PPP e, pelo contrário, dê total apoio a um projeto regional de desenvolvimento sustentável que possa vir a se tornar um exemplo para o mundo. Fui informada de que a Universidade Federal de Lavras e a Universidade de Bern da Suíça — ambas “universidades azuis” — estão dispostas e já estudam propostas para a região em cooperação com os cidadãos interessados de Cambuquira. Da minha parte, gostaria de apoiar da forma possível todos os esforços por uma cooperação internacional mais ampla em torno de Cambuquira e da região do circuito das águas.
Prezado Governador, as fontes hídricas do planeta enfrentam uma situação terrível de acordo com um relatório da ONU que revela que, em menos de uma década, a demanda por água vai superar a oferta em 40%. Precisamos nos mobilizar agora para proteger as preciosas águas de nossas comunidades como um patrimônio público e um direito humano, e precisamos que o senhor proteja as águas de sua região. As gerações futuras lhe agradecerão.
Obrigada por seu tempo e atenção,
Maude Barlow
Presidente Nacional, Conselho de Canadenses, Ex-consultora sênior da Assembleia Geral da ONU
Superexploração de água em cidade vizinha acendeu o sinal de alerta
A Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig) é detentora da concessão das fontes de águas minerais das marcas Araxá, Caxambu, Cambuquira e Lambari, extraídas e produzidas nos municípios com os mesmos nomes. É a Codemig que está liderando as negociações para a PPP.
A privatização do serviço de exploração das águas minerais de Cambuquira e de sua vizinha Caxambu começou a ser negociada em fevereiro. As águas produzidas nos dois municípios participam de festivais gastronômicos internacionais, como o Madrid Fusion. A água Cambuquira se encaixa no conceito de “água exclusiva”, premiada como uma das melhores do mundo e vendida a preços acima da média, fazendo concorrência com a francesa Perrier.
Preocupados com problemas recentes na cidade vizinha de São Lourenço — que vendeu suas fontes à Nestlé e deixou de fazer parte do Circuito das Águas — os moradores procuraram as autoridades de defesa da água como direito humano. O Circuito das Águas é um conjunto de 10 municípios ricos em fontes naturais de água mineral. No lugar de São Lourenço, hoje figura o município de Maria da Fé.
O caso São Lourenço
É observando o ocorrido em São Lourenço — localizada a 63 km de distância — que se entende o medo dos moradores de Cambuquira. Ali é produzida a água que leva o nome da cidade, hoje uma marca pertencente ao grupo Nestlé.
Problemas com as fontes geridas pela empresa suíça no Parque das Águas levaram os cidadãos de São Lourenço a entrarem na justiça contra a Nestlé. A empresa chegou a espionar ativistas locais que defendiam a água como direito humano.A polêmica ganhou um capítulo próprio no livro-reportagem francês “Affaire classée. Attac, Securitas, Nestlé” (em português, Caso arquivado, Attac, Securitas, Nestlé) que revela as investigações feitas pela empresa Securitas, contratada pela Nestlé para infiltrar agentes na ONG Attac (sigla em francês para Associação pela Tributação de Operações Financeiras e pela Ação Cidadã).
Franklin Frederick, carioca, ativista pela água apoiado pela Attac, foi o alvo das investigações da Securitas a mando da Nestlé, como conta o livro:
“Quando Sara Meylan começa sua atividade de espionagem na Attac, Franklin Frederick estava na Suíça. Fazia certo tempo que ele lutava para atrair a atenção de apoiadores da alterglobalização para o combate que ele mesmo e mais 3 mil habitantes da pequena cidade brasileira de São Lourenço travaram ao assinar, em 2000, uma petição contra as ações da Nestlé em sua cidade. Ele se encontrava na Suíça para mobilizar as igrejas, alertar a imprensa, sensibilizar tantos quanto possível. Franklin Frederick pertence àquela categoria de gente combativa que não se intimida pela multinacional.”
O abaixo-assinado fez com que o Ministério Público de São Lourenço ajuizasse uma Ação Civil Pública ambiental contra a Nestlé em dezembro de 2001. Ao passarem para as mãos da Nestlé, as águas de uma das fontes da cidade começaram a ser tratadas segundo um processo conhecido como osmose reversa, proibido pelo Código de Águas Minerais. Os minerais eram completamente retirados, depois apenas sais selecionados eram adicionados — artificialmente — à composição da água, que era embalada sob a marca Pure Life.
A empresa já enfrentou problemas similares em outros lugares no mundo, como nos Estados Unidos:
O problema de São Lourenço ficava mais evidente nos relatos dos moradores da região, que começaram a denunciar que as águas estavam perdendo o sabor, as fontes estavam diminuindo a vazão e novas rachaduras apareciam no chão em torno de alguns pontos onde a água brotava do solo.
A razão dos relatos foi apontada na denúncia do ministério público: superexploração das águas. A média de 6,2 milhões de litros extraídos em 1972 saltou para 27,6 milhões em 1999. A Nestlé assumiu em 1994 a Perrier Vittel do Brasil e desde então passou a ter direito de explorar o subsolo e as águas minerais no município.
O resultado final do embate jurídico foi um Termo de Ajuste de Conduta onde a empresa se comprometeu, entre outras ações, a acabar com as atividades ilegais, interrompendo a produção de Pure Life, e a reflorestar 26m² do parque com mata nativa. No entanto, moradores estão novamente na justiça denunciando a empresa por ter secado os lençóis freáticos de todo o parque.
É o tipo de problema que a carta endereçada ao governador tenta evitar que se repita nas cidades vizinhas.
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