O STF se prepara para julgar a descriminalização do aborto em breve. Prestes a se aposentar, a ministra Rosa Weber liberou em setembro de 2023 para julgamento a ação que pode permitir o aborto até a 12ª semana de gravidez. A decisão nos leva de volta ao questionamento: quanto se gasta com a criminalização do aborto?
O estado gasta R$ 40,4 milhões com procedimentos emergenciais decorrentes de complicações após abortos ilegais mal feitos. Já para as mulheres, o custo não é apenas financeiro. Clínicas clandestinas cobram caro sem qualquer garantia de segurança. Para além do dinheiro, há várias outras questões em jogo. Entre elas, a liberdade e a vida.
A cada dois dias, uma mulher morre vítima de aborto ilegal
Apesar da criminalização, uma em cada cinco mulheres terá abortado até os 40 anos no Brasil. As mais ricas pagam ginecologistas de confiança para fazer o procedimento ou procuram clínicas. Quem tem menos recursos opta por medicamentos como misoprostol (Cytotec) ou se arrisca até mesmo com ervas tóxicas.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a cada dois dias uma mulher morre vítima de aborto ilegal no Brasil. É a quarta causa de morte materna no país, atingindo mais mulheres pobres.
Em um busca rápida na internet, é possível encontrar a buchinha ou cabacinha do norte – uma espécie de trepadeira. Seu fruto é utilizado para inalação em tratamentos de sinusite e rinite, porém, na forma de chá, torna-se abortivo. O método pode ser um dos mais acessíveis financeiramente — com valores a partir de R$3,90 — porém, trata-se de uma planta tóxica, uma dosagem errada pode causar morte.
Também na internet, é fácil encontrar páginas que oferecem o misoprostol, remédio inicialmente destinado ao tratamento de úlceras, que passou a ser usado como abortivo nos anos 1990. Hoje é o método mais utilizado no mundo para a interrupção da gestação.
Na Europa, um remédio para aborto; no Brasil, tráfico
De acordo com Pesquisa Nacional de Aborto, publicada no ano passado, 48% das mulheres entrevistadas fizeram o uso de comprimidos, mesmo eles sendo ilegais no país. O misoprostol tem o aval da OMS para o aborto e figura em sua lista de medicamentos essenciais.
Vanessa Dios, doutora em saúde pública e presidente da ANIS, Instituto de Bioética responsável pela PNA 2016, explica o que atrai as mulheres para o uso da pílula e como sua proibição gera mais riscos:
“É considerado um método seguro, principalmente nas 12 primeiras semanas. A forma de se conseguir que é um problema. A mulher vai ter que se deslocar para algum ambiente de ilegalidade. E aí que está o risco maior do uso do remédio, já que por não se ter um controle, a mulher não sabe se está adquirindo uma pílula de farinha, por exemplo. Fora que o tempo vai passando até que ela consiga acesso ao remédio e, quanto mais o tempo passa, maior o risco no procedimento.”
Onde é legalizado, como em alguns estados dos Estados Unidos e países da Europa, pode ser encontrado em farmácias ao custo médio de US$ 45 (aproximadamente R$142). Já no Brasil, a venda é feita no boca a boca, via mensagem de texto ou mesmo em espaços públicos, com preço girando em torno de R$850.
A forma de aquisição, na internet ou fora dela, não garante a idoneidade do medicamento. Relatos dão conta de golpes virtuais em que o remédio não foi entregue ou foram enviados outro tipo de comprimido.
“A mulher faz uso do remédio em casa e não precisa de internação”
A chegada do misoprostol fez com que a mulheres deixassem de lado métodos mais invasivos como venenos, líquidos tóxicos e instrumentos perfurantes, que eram muito utilizados no anos 1980. Com isso, houve uma redução de sequelas associadas ao aborto. O remédio fez com que a procura por hospitais após o procedimento também diminuísse, porém algumas mulheres ainda precisam do atendimento médico, explica Dios:
“A mulher faz uso do remédio em casa e não precisa de internação, somente de um ambiente confortável, com um banheiro que possa utilizar. E não é algo imediato, podendo demorar até três dias. Às vezes o primeiro comprimido pode não fazer efeito. Ela vai sentir as dores das contrações para o feto ser expelido e terá sangramento. O método é seguro, mas é preciso ter essas orientações.”
A curetagem após aborto é a cirurgia mais realizada pelo SUS, segundo levantamento do Instituto do Coração (InCor). Foram 181 mil procedimentos do tipo apenas em 2015. Pela tabela de valores do Datasus, cada curetagem pós-aborto custa R$199,41. Segundo um levantamento feito pelo site Aos Fatos, foram destinados R$ 40,4 milhões dos recursos do SUS para cirurgias de curetagem ou de esvaziamento do útero por aspiração manual intrauterina (AMIU).
A experiência internacional mostra que, quando o procedimento é realizado por profissionais preparados, o número de complicações cai, poupando dinheiro do governo. No Uruguai, que descriminalizou o aborto em 2012, foram registradas 6.676 interrupções e nenhuma morte, com uma taxa ínfima de complicações: 0,007%.
O aborto é um procedimento seguro desde que feito com orientação e profissionais.
“As mulheres que podem pagar mais têm um cuidado maior porque, em geral, são assistidas por um profissional de saúde ou um médico que aceita fazer o procedimento”, conta a presidente da ANIS. Ela explica que clínicas utilizam a aspiração manual intrauterina, o mesmo procedimento utilizado pelo SUS nos casos de aborto legal: “As mulheres tomam um relaxante muscular ou uma anestesia. O período de internação é de um dia.”
Em uma clínica clandestina também no Rio de Janeiro, o valor do aborto pode custar R$3,5 mil. Em consultórios tradicionais, o preço do procedimento chega a R$6 mil. A especialista pontua que um serviço caro não é sinônimo de procedimento seguro:
“Muitas mulheres morrem em clínicas. Não sabemos se é o método utilizado, se é o equipamento ou a dosagem da anestesia que levam a mulher à óbito. Só ficamos sabendo depois que acontece e, com isso, não conseguimos mensurar. Mas é preciso frisar que o aborto é um procedimento seguro desde que feito com orientação e profissionais.”
Entre as entrevistadas pela PNA que fizeram uso do medicamento, metade precisou de atendimento e ficaram expostas a denúncias. “Se elas estão com hemorragia, ficam com medo de ir até o hospital e sofrerem denúncia”, afirma Dios.
Legalizar aborto não é aumentar número de procedimentos
No Brasil, a mulher que aborta pode cumprir uma pena de até três anos de prisão, e o médico que realizar o procedimento, até quatro anos – as exceções são para casos de estupro, risco de morte da mulher ou feto anencéfalo. A PNA critica a criminalização por ser contraproducente:
“A julgar pela persistência da alta magnitude, e pelo fato do aborto ser comum em mulheres de todos os grupos sociais, a resposta fundamentada na criminalização e repressão tem se mostrado não apenas inefetiva, mas nociva. Não reduz nem cuida: por um lado, não é capaz de diminuir o número de abortos e, por outro, impede que mulheres busquem o acompanhamento e a informação de saúde necessários para que seja realizado de forma segura ou para planejar sua vida reprodutiva a fim de evitar um segundo evento desse tipo.”
Uma pesquisa internacional, publicada pela revista científica The Lancet no ano passado, revelou que a legalização ajuda a reduzir não apenas o número de mortes de mulheres como também o de procedimentos cirúrgicos. Segundo o estudo, dos 56,3 milhões de abortos realizados por ano em todo o mundo, 16 milhões são feitos clandestinamente.
De acordo com o Instituto Guttmacher, que pesquisa sobre direitos reprodutivos e saúde da mulher, em países onde o aborto é ilegal, as taxas médias são de 37 abortos para cada mil mulheres em idade reprodutiva, enquanto nos países onde é legalizado o índice cai para 34.
O levantamento mostra que o fator determinante para a queda nos índices de interrupções não seria a legalização, mas sim a facilidade de acesso a contraceptivos gerada pela liberação.
Atualização: 14 de setembro, 14h52
Este texto foi atualizado para incluir a informação de que o STF deve julgar em breve a descriminalização do aborto no Brasil.
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