Enquanto a Operação Carne Fraca assusta os brasileiros sobre a péssima qualidade da carne que chega a sua mesa, alguém questiona a forma como os animais são abatidos neste processo? Em geral, se a criação e o abate seguem ou não a Lei de Proteção Animal e se o gado sofre ou não maus-tratos não são preocupações que costumam passar pela cabeça dos consumidores.
No entanto, quando o tema é o abate de animais em rituais religiosos, as reclamações chegam até o Supremo Tribunal Federal. É na Corte que, sob a proteção de um crucifixo no plenário, os ministros vão decidir se o uso de animais em ritos de matriz africana viola a Constituição, que em seu artigo 225 coíbe a crueldade contra animais. Como a Carta também garante o livre exercício de cultos religiosos, a discussão reacende o debate sobre cerceamento de uma religião por parte do Estado.
“O que eu diria é que a opinião pública jamais associa o abate comercial a maus-tratos e a intolerância faz com que se associe o abate religioso ao sacrifício. Para acabar com o abate religioso, teria que acabar com qualquer tipo de abate”, comenta Hédio Silva Jr., jurista que participou de uma comitiva composta por representantes das religiões de matriz africana que levou ao ministro Marco Aurélio Mello – relator da ação – um parecer técnico para auxiliar no julgamento do caso.
“A gente não faz sacrifício, quem sacrifica é a Friboi.”
O método utilizado no abate religioso é o da degola, catalogada pelo Ministério da Agricultura como método humanitário. De acordo com a Lei de Proteção Animal, não dar morte rápida, livre de sofrimento prolongado do animal cuja a morte é necessária para consumo ou não é o que caracteriza o mau-trato.
“No abate religioso, o animal não sofre maus-tratos. Nós sacralizamos o animal, e depois ele é consumido como alimento. A gente não faz sacrifício, quem sacrifica é a Friboi”, afirma o babalorixá Ivanir de Santos, que é interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. O abate faz parte de um preceito litúrgico do candomblé e de alguns segmentos da umbanda, que consomem parte da carne como alimento .
Ainda sem data para julgamento, a ação no STF diz respeito a uma ação direta de inconstitucionalidade apresentada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul. O texto pede a anulação de uma lei estadual que exime as religiões de matriz africana de processos por maus-tratos a animais e da proibição do sacrifício animal religioso.
A decisão, se entender que a lei gaúcha é inconstitucional, vai ferir o artigo V da Constituição Federal, que garante a liberdade de crença e das cultos religiosos. Ela seria um retrocesso, um retorno ao tempo em que as religiões chamadas espíritas no Brasil – incluindo o Kardecismo – tinham seus cultos interrompidos pela polícia. Ou ainda, indo um pouco mais atrás, quando os escravos eram proibidos de cultuar seus orixás.
Em 1993, uma discussão semelhante chegou à Suprema Corte norte-americana. O abate religioso na Santeria (religião levada ao país por cubanos) tinha sido proibido na Flórida. Por lá, prevaleceu a Constituição e a tolerância religiosa.
Com a benção do agronegócio
Assim como as religiões de matriz africana, muçulmanos e judeus, na alimentação kosher (judaica) e halal (islâmica), seguem rituais de abate. A diferença é que, por aqui, quando se trata das outras duas religiões, a questão é vista com bons olhos e passa longe do STF.
Setores do agronegócio brasileiro até mesmo se especializaram no abate religioso para garantir o mercado de exportação para os países que seguem essas religiões. A Friboi é a maior exportadora de carne halal do país – os animais são abatidos por degola, com dizeres do alcorão e voltados para Meca. A BR Foods já tem 25% da sua produção voltada para o mercado islâmico – mesmo com denúncias de que a degola não é feita dentro dos preceitos da religião. Ambas são alvos da operação Carne Fraca.
Do mesmo lado, na bancada ruralista do Congresso, com a justificativa de proteger os rebanhos do agronegócio, o deputado federal Valdir Colatto (PMDB-SC) apresentou o projeto de lei 6268/16, que libera a caça de animais silvestres. O texto permite o abate de animais exóticos que possam ameaçar plantações ou o gado, além de prever a criação de reservas privadas para a prática de caça desportiva.
Também por pressão da bancada ruralista, mesmo após decisão desfavorável do STF, a PEC da Vaquejada foi aprovada e a prática passou a ser considerada patrimônio imaterial do Brasil. A emenda ainda pode ganhar um adendo que visa liberar a rinha de galo.
“Não há paralelo possível entre a vaquejada, onde o animal fica confinado e tem seu saco escrotal amarrado, com o abate religioso, onde não existe sofrimento. E na rinha de galo muito vezes o galo perdedor vem a falecer. Nestes casos não há dúvidas de maus-tratos”, afirma Hédio Silva Jr.
Ao que parece o conceito de maus-tratos é relativo. O Brasil estaria mesmo preocupado com os animais nos ritos de matriz africana?
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