Uma moto passa direto em uma blitz e duas motos da Polícia Militar vão atrás. Um dos policiais saca a arma e aborda os ocupantes, um rapaz e uma moça. Ao tirar o capacete, o homem esbarra a mão na arma do policial, que dispara e acerta a sua cabeça. Daniel da Silva cai com a moto e derruba também o policial, o Cabo André Luiz Bento da Silva. Era uma quarta feira, 1º de maio de 2013, em Matão, a pouco mais de 300 quilômetros da capital paulista. Naquela tarde S., V., e N. ficaram órfãos. Os destinos das três crianças e do Cabo Bento ficariam unidos por ainda mais tempo: o necessário para processar a Taurus S.A., fabricante do armamento fornecido às forças de segurança do país, e o governo de São Paulo.
O cabo da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) prestou socorro, mas Daniel morreu a caminho do hospital. Bento foi preso em flagrante e processado por homicídio doloso, depois convertido em culposo (sem intenção de matar).
“Eu fiquei 18 dias no presídio militar Romão Gomes. A minha arma estava com defeito na trava de percussão. Graças a Deus não foi aberto processo administrativo ou Conselho de Disciplina contra mim, mas mudou minha vida e minha família sentiu muito. Foi em cidade pequena. Houve ameaça de morte. Transferência e mudança de residência para cidade vizinha. Gastos financeiros com advogados e moradia, entre outras coisas”, explicou Bento ao The Intercept Brasil. O PM move ação contra a Forjas Taurus S.A por danos morais no valor de R$ 80 mil. O processo de homicídio está suspenso até setembro. Caso ele não se envolva em nenhuma ocorrência com suspeita de violência excessiva até lá, o processo será extinto.
Segundo o depoimento em juízo do comandante de Bento na época, Capitão Rogério dos Reis, ele era um dos policiais mais produtivos sob seu comando, nunca tendo recebido uma reclamação sobre seu trabalho. “Nenhum evento que desabonasse sua conduta”, disse. O laudo pericial comprovou problemas na arma que o militar utilizava, uma Taurus modelo PT 24/7 Pro LS. De acordo com o documento, havia um desgaste fabril na armadilha e na trava do percussor. Ou seja, a arma podia disparar sem ser acionada pelo gatilho por causa de um defeito de fábrica.
Pouco depois da morte de Daniel, entre junho e dezembro de 2013, a Polícia Militar do Estado de São Paulo realizou um recall em mais de mil armas Taurus de sua tropa para substituir exatamente as partes que deram problema na arma de André Luiz Bento da Silva: trocar a mola que trava o percussor, e assim, evitar que a arma atire sem que o gatilho seja puxado.
O armeiro ouvido no dia da audiência sobre a morte de Daniel, José Cláudio Gômara Filho, tem 16 anos de Polícia Militar e foi categórico ao afirmar que as pistolas da Taurus tinham problemas. “Antes de maio (2013), eu estava no curso de armeiro, falaram isso para nós em São Paulo, que tinha problema na pistola Taurus”, disse em juízo. Ele afirmou ainda que, apesar de não saber o número exato, houve vários disparos acidentais como este no Estado. O Tenente Moisés Sabino Zecheto, também ouvido neste processo, afirmou que “a maioria das pistolas foram trocadas. Até cito o percentual, que foi de 90%”.
A Taurus e a sua seguradora à época – Fairfax Brasil Seguros Corporativos SA – questionam o resultado do laudo apresentado pelo Instituto de Criminalística da Secretaria de Segurança de São Paulo e alegam que a responsabilidade é do policial militar e da imprudência da vítima.
Em setembro de 2016, The Intercept Brasil publicou com exclusividade a acusação do Exército – órgão regulador e fiscalizador de empresas de armamentos no país – de que a Taurus, falhava no controle de qualidade de seus armamentos. Mas, se a Taurus falhou no controle de qualidade, o Exército falhou em fiscalizar a Taurus e o resultado é esse: mortes acidentais. Por sua vez a Taurus diz que “O Exército Brasileiro fez avaliação completa do processo produtivo da Taurus e suas armas e não encontrou falhas de projeto ou fabricação que sejam responsáveis por acidentes com armas de fogo”. Um pouco contraditório.
Órfãos
Daniel da Silva França deixou três filhos pequenos. Todos com menos de 10 anos de idade. Taurus e Estado enfrentam duas ações: uma movida pela ex-esposa e suas filhas S.R. e V.F., e outra movida por N.G.K., fruto de outro relacionamento de Daniel.
Na ação movida no início de 2015 pela ex-esposa, o Ministério Público deu parecer favorável às duas crianças, alegando que a responsabilidade do Estado de São Paulo e da Forjas Taurus S.A. eram evidentes. O processo movido por N. está mais atrasado.
A Procuradoria-Geral do Estado – regional São Carlos – acatou as informações da perícia e também os dados relativos ao recall e pediu que o Estado e a Taurus sejam condenados a pagar “indenização civil, consistente em pensão mensal vitalícia para o autor, no valor de 03 salários mínimos e reparação por dano moral, no valor estimado de R$ 500.000,00 sob o fundamento de responsabilidade civil das requeridas pela morte de seu genitor”. Ex-esposa, S.R. e V.F. já recebem pensão mensal, paga pela Taurus e Estado.
Já N., que tinha 3 anos quando o pai foi morto, ainda espera as primeiras decisões da Justiça sobre a pensão. O juiz da ação determinou que a Taurus pague, mas a empresa recorreu alegando que “há dúvida quanto a responsabilidade” da morte de Daniel e que o assunto exige “debate aprofundado”. Os advogados da empresa alegaram ainda que “a prova técnica (…) não aponta defeito na arma, muito pelo contrário: o laudo técnico realizado (…) mostra que em momento algum arma teria disparado sozinha” (grifo deles) e que os argumentos apresentados para a condenação da Taurus são confusos. O advogado de N., José Cioffi Netto, solicitou que a ação siga os parâmetros da ação proposta em 2015 por serem semelhantes. As duas ainda correm na justiça.
“Estamos otimistas em relação a ação, que a justiça acate a procedência do processo. Em relação ao tamanho do dano – a quantificação – vai de acordo com o arbítrio do juiz. Mas estamos otimistas”, disse ao The Intercept Brasil o advogado que representa N..
Em nota a The Intercept Brasil, a Taurus afirmou que não comenta casos ainda em andamento na Justiça e que é alvo de uma campanha difamatória, “movida por interesses comerciais e financeiros”. Mas não fala por quem. Afirma ainda que “mantém diálogo com pessoas que sofreram acidentes com armas de fogo, independentemente de suas causas, para avaliar possíveis formas de apoio”. O que nos foi enviado é basicamente uma revisão de uma nota já disponível no site da empresa.
Sob nova direção?
Em outubro de 2016, sem entrar em detalhes, o Exército afirmou a The Intercept Brasil que, dentre as sanções aplicadas à empresa por produzir armas defeituosas, estão o impedimento de fabricar e comercializar as armas sob investigação, a ampliação dos recalls e a instauração de um processo administrativo. A arma que Bento usava e que matou Daniel saiu de linha em 2015, diz a Taurus, por causa de mudança natural no portfólio da empresa. Vale lembrar que em 2015, nos EUA, quase um milhão de clientes fizeram acordo judicial para devolver ou trocar suas armas, dentre elas o modelo semelhante ao usado pelo Cabo Bento, a PT 24/7. O próprio site da empresa, em inglês, orienta clientes americanos a como proceder para requerer reembolso.
Oportunamente a Taurus lançou em fevereiro uma nova linha de armamentos – pistolas, submetralhadoras e carabinas e um modelo de Fuzil. A identidade visual da empresa também mudou.
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