No dia primeiro de abril de 1929, um grupo de mulheres elegantes marchou fumando pelas ruas de Nova Iorque. Uma ousadia – na época era inaceitável que o fizessem em público. O protesto “feminista” estampou manchetes de jornal do país inteiro e elas foram descritas como “sufragistas acendendo as tochas da liberdade”.
Mas aquilo não era nada além de uma campanha publicitária, o primeiro viral da história, um truque bancado pela American Tobacco Company e pensado por Edward Bernays, o homem que inventou a profissão de relações públicas – e, com isso, o mundo que conhecemos. Suas técnicas de manipulação moldaram o século – da propaganda de Goebbels à “descoberta” das armas de destruição em massa no Iraque. É difícil imaginar o que seria o mundo sem ele.
Da mesma forma que cientistas utilizaram caminhos abertos por Einstein para criar a bomba atômica, Bernays, sobrinho de Freud, foi pioneiro em usar as ferramentas da psicanálise, não com fins terapêuticos, mas para manipular as massas no que ele chamava de “engenharia do consenso”. Consultor do governo norte-americano por décadas, Bernays foi capital não apenas para difundir o consumo de cigarros, mas para convencer norte-americanos a apoiar a entrada do país na Primeira Guerra Mundial ou fazê-los acreditar que o verdadeiro breakfast nacional é ovos com bacon – uma das muitas invenções suas que inscreveu-se na cultura popular.
Se você sente cheiro de enxofre na presença de publicitários, lobistas, consultores de marketing, assessores de imprensa ou analistas políticos que circulam dossiês, agradeça a Bernays. Ele é o pai de todas essas profissões sinistras que existem tanto para vender refrigerantes quanto para justificar genocídios ou fazer um país apoiar um golpe “contra a corrupção” comandado pelo coração da cleptocracia nacional.
“Aqueles que manipularem esse mecanismo secreto formarão um governo invisível que será o verdadeiro poder instituído.”
Bernays cometeu a deselegância de morrer apenas em 1995, aos 103 anos de idade, mas suas idéias estão mais vivas do que nunca. Esse trecho de “Propaganda” (1928) parece escrito ontem: “A manipulação consciente das opiniões e hábitos organizados das massas é um importante elemento na sociedade democrática (grifo meu). Aqueles que manipularem esse mecanismo secreto formarão um governo invisível que será o verdadeiro poder instituído. Nós somos governados, nossas mentes são moldadas, nossos gostos formados e nossas ideias sugeridas em grande parte por homens que nunca ouvimos falar… São eles que manipulam os fios que controlam a opinião pública.”
“Homens que nunca ouvimos falar” ou algoritmos de redes sociais, eu acrescentaria neste momento em que corporações e políticos coletam nossos dados e moldam nosso comportamento através de uma interface muito mais eficaz do que Bernays jamais poderia sonhar.
É curioso que ele tenha morrido no ano em que as últimas restrições para que a internet fosse usada para carregar conteúdo comercial tenham caído. Hoje, passadas duas décadas, a tecnologia que já foi sinônimo de liberdade e democracia evoluiu para ameaçar a democracia e a liberdade no mundo inteiro – e o big data está no centro disso. A estratégia Bernays de se concentrar não no que as pessoas precisam, mas no que querem ouvir e no que mais temem, racionalmente ou não, hoje é calibrada com precisão monstruosa – que o diga a campanha de Trump.
Se pouco depois do stunt feminista idealizado por Bernays, um anúncio dos cigarros Chesterfield logo diria que “as mulheres começaram a fumar na mesma época em que começaram a votar” e outro da Phillip Morris estamparia o rosto de uma mulher confiante com a legenda “confie em você!” é notável que quase um século depois companhias continuem se apropriando de causas políticas e ideológicas para vender seus produtos ou reforçar sua imagem.
O tão festejado meme da Globo feminista não durou uma semana.
Essa é apenas de uma das rodas inventadas por Bernays que continua funcionando muito bem, como prova o sucesso dos comerciais “políticos”da Coca-Cola, Airbnb e Budweiser no intervalo do último Super Bowl nos Estados Unidos. (Ainda que, no entanto, às vezes haja uma falha no sistema, como na recente propaganda de protesto da Pepsi – aqui a apropriação ficou explicita demais, contradizendo o princípio de que o público precisa ser manipulado sem perceber, seja para comprar um produto, votar num candidato ou demonizar uma minoria. Como o diabo de Baudelaire, o truque mais esperto de Bernays é convencer-nos de que ele não existe.)
No Brasil, exemplo recente de “spin”, manipulação e apropriação ideológica digno de Bernays, é o desenvolvimento do caso José Meyer, onde a TV Globo rapidamente tentou transformar uma denúncia grave de assédio sexual num mero caso isolado ao mesmo tempo em que capitalizava em cima de uma campanha feminista, independente e idealizada pelas funcionárias, cuja importância ultrapassa os méritos e deméritos do canal.
Corporação com notório histórico de casos de assédio (sexual, moral, insira o tipo aqui – alguns timidamente começaram a pipocar na imprensa), a Globo cometeu essa proeza quase ao mesmo tempo que, em seu show de confinamento líder de audiência, exibiu cenas explícitas de violência física e verbal contra uma mulher. O tão festejado meme da Globo feminista não durou uma semana. E o agressor continuou jogando seu jogo misógino com 77% de aprovação dos brasileiros – e impunidade garantida pela omissão do canal até que fosse necessária a instauração de um inquérito policial para que eles finalmente decidissem expulsar o “brother”.
Infelizmente, algumas das feministas que compraram rápido demais o case de R.P. da Globo talvez tenham ficado parecendo mais com as sufragistas de Bernays do que gostariam.
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