Não vejo nada de novo nem de promissor em um projeto de nação no qual as minorias, que formam mais de 50% da população brasileira, estão representadas por apenas duas pessoas em um universo de 217.
Encabeçado pelo ex-ministro da Economia Antônio Carlos Bresser Pereira, o Projeto Brasil Nação já foi assinado por milhares de pessoas. Lançado no último dia 27 de abril, nas dependências do Centro Estudantil 11 de Agosto, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), ele foi elaborado por um grupo de convidados de diversas áreas que se reuniram durante mais de três meses. As primeiras assinaturas, 217 no total, são dos que eles chamam de “signatários originais”, que participaram das reuniões ou que foram convidados por estes, entre os quais não há nenhum indígena e apenas dois negros*. O que não é novidade, aliás: a esquerda continua excluindo os excluídos de sempre. E é claro que a cerimônia de lançamento do manifesto reflete esta exclusão, com uma presença 100% branca.
Segundo o manifesto, em uma sociedade que “se divide e se radicaliza, abrindo espaço para o ódio e o preconceito”, a missão do “Projeto Brasil Nação é pensar o Brasil, é ajudar a refundar a nação brasileira, (…) não apenas do ponto de vista econômico, mas de forma integral: desenvolvimento político, social, cultural, ambiental; em síntese, desenvolvimento humano”.
Os intelectuais que o elaboraram e o assinam dizem que “cabe a nós repensarmos o Brasil para projetar o seu futuro”, baseados em cinco pilares: autonomia nacional, democracia, liberdade individual, desenvolvimento econômico, diminuição da desigualdade, segurança e proteção do ambiente. “Para voltar a crescer de forma consistente, com inclusão e independência, temos que nos unir, reconstruir nossa nação e definir um projeto nacional. Um projeto que esteja baseado nas nossas necessidades, potencialidades e no que queremos ser no futuro. Um projeto que seja fruto de um amplo debate”, dizem eles. Complementando que “precisamos garantir às mulheres, aos negros, aos indígenas e aos LGBT direitos iguais aos dos homens brancos e ricos”.
Não acredito neste projeto de país que não refaça o pacto social.
Não acredito neste projeto de país que não refaça o pacto social. Não vejo nada de novo nem de promissor em um projeto de nação no qual as minorias, que formam mais de 50% da população brasileira, estão representadas por apenas duas pessoas em um universo de 217; ou seja, menos de 1%. O que vejo, na verdade, é o futuro da maioria sendo planejado por uma minoria formada majoritariamente por homens brancos e ricos, que se colocam como mentores, articuladores, protetores, aqueles que sabem o que é bom para os que nunca são chamados para uma discussão horizontalizada sobre as próprias necessidades.
É triste ver a jornalista Eleonora de Lucena, de frente para um mar de branquitude (veja uma panorâmica interessante no minuto 31:07), agradecer a acolhida do centro acadêmico e dizer que é emocionante estar naquele lugar que já viu tanta luta, no qual brasileiros de todas as matizes deram vazão ao movimento abolicionista. O discurso desancorado da prática se torna ainda mais problemático quando faz parecer que a abolição foi um movimento colocado em prática pelos intelectuais, diminuindo a importância das rebeliões negras, dentro de uma faculdade que rejeitou o advogado e abolicionista Luiz Gama pelo fato de ele ser negro.
Eleonora de Lucena cita também o centro acadêmico como local de abrigo da campanha “O petróleo é nosso”, popularizada pelo racista e eugenista Monteiro Lobato, provando que um povo que não conhece e não respeita a sua história tende mesmo a repeti-la.
O discurso que segue é do jurista Fábio Konder Comparato, que diz que o coração de uma nação é o povo. Ele conta que, em 1549, Tomé de Souza chegou à Bahia para inaugurar o governo geral acompanhado de 1.200 funcionários civis e militares e 3 jesuítas. Mas para que o regimento geral de governo pudesse funcionar, faltava o que ele chama de “uma espécie de assombração”: o povo. Sem citar os indígenas e os africanos escravizados – estes povos que as máquinas dos sucessivos governos continuam silenciando e engolindo e que, segundo ele, deveriam ser o coração –, Comparato pula para 1822, falando da independência, e terminando por dizer que o povo precisa ser “educado”, precisa ser “organizado”, sendo esta a missão daquele grupo que se reunia.
A questão de “educar” o povo é lembrada a todo instante por vários oradores que afirmavam o título de “intelectuais” dos organizadores do Projeto Brasil Nação, o que, para mim, funciona mais como uma carteirada do que chamado ao debate que eles dizem que precisa acontecer. Todos intelectuais, todos vindos da universidade, como fez questão de frisar em sua fala a presidente da União Nacional dos Estudantes, Carina Vitral. O senador Lindbergh Farias (PT/RJ) diz que aquele é um manifesto que vai ter que olhar para o passado, ver os erros e os acertos. Não deveria antes, fazer o famoso “teste do pescoço” e olhar simples e honestamente para o lado?
É um “projeto de intelectuais; somos todos intelectuais”, deixa bem claro o homem à frente do projeto, o ex-ministro Bresser Pereira.
O ex-ministro Celso Amorim parece ter pescoçado algo que faltava no manifesto, pois diz que “a gente podia ter falado um pouco mais dos indígenas”. Mas não vai além da necessidade da elite brasileira de sempre estar falando por, falando sobre o que ela chama de povo, que sempre é chamado a “se juntar” a algo que ele nunca é chamado para construir, para ser ouvido, para pensar e falar junto.É um “projeto de intelectuais; somos todos intelectuais”, deixa bem claro o homem à frente do projeto, o ex-ministro Bresser Pereira.
Deixo então algumas perguntas aos intelectuais signatários, aos que não conheço e também aos amigos e conhecidos, gente de quem gosto e a quem respeito e que, muitas vezes vejo na mídia e nas redes sociais denunciando casos de racismo e de abusos inúmeros contra a população negra e indígena: é este mesmo o projeto de país de vocês defendem? Negros e índios não devem mesmo ser chamados para as mesas dos “pensadores”? “Pode o subalterno falar?”
* Procurei pela identificação fotográfica de todos os signatários que não conheço, e entre eles há apenas os dois negros facilmente identificáveis. Há ainda cinco dos quais não consegui encontrar referências, mas que, somados aos dois, não fariam tanta diferença no problema que quero levantar: uma esquerda que quer continuar pensando o país levantando a bandeira da inclusão sem se importar em incluir.
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