Rodrigo Caio, zagueiro de 23 anos do São Paulo, campeão olímpico pela seleção brasileira e um dos atletas mais promissores de sua geração, foi do céu dos justos ao inferno dos inocentes em menos de uma semana durante as semifinais do Campeonato Paulista.
No domingo, 16 de abril, dia do clássico contra o Corinthians, o árbitro Luiz Flávio de Oliveira tinha acabado de dar cartão amarelo para o atacante Jô por um pisão no goleiro Renan Ribeiro, do São Paulo. Quem pisou no arqueiro são-paulino, porém, foi Rodrigo Caio, que alertou o juiz sobre a confusão.
O erro tiraria o melhor atacante do time adversário da segunda partida da semifinal do Campeonato Paulista. Por ironia, foi dele o gol que classificou o Corinthians no domingo seguinte.
Embora boa parte da imprensa tenha aplaudido a atitude do atleta são-paulino, o Fair Play custou caro e foi motivo de polêmica nos dias seguintes (dois jornalistas chegaram a bater boca ao vivo ao tentar concluir se o atleta fora honesto ou simplesmente “bobo”). Aparentemente assustado com a repercussão do gesto, Rodrigo Caio falhou em jogo no meio da semana, contra o Cruzeiro, pela Copa do Brasil, e ouviu um companheiro dizer, em uma crítica indireta, que preferia ver a mãe dos rivais chorarem, em vez da dele.
O mal-estar ficou evidente na semana seguinte, quando um outro atleta rival, o volante Felipe Melo, espécie de anti-Rodrigo Caio do futebol, foi alçado a exemplo a ser seguido pelos integrantes da maior torcida organizada do São Paulo.
Notabilizado tanto pelo talento como pela agressão que custou sua expulsão e a consequente eliminação do Brasil na Copa de 2010, contra a Holanda, Felipe Melo, ao ser apresentado ao Palmeiras, declarou, entre outras platitudes, que se precisasse não hesitaria em dar tapa na cara de uruguaio durante a disputa da Libertadores, o prestigiado torneio sul-americano de futebol.
Falou em pátria, Deus e porrada. A mistura parecia explosiva, e era.
Na mesma entrevista, atacou a imprensa, falou em pátria, Deus e porrada. A mistura parecia explosiva, e era.
Na partida contra o Peñarol, em 26 de abril, ofereceu não um tapa, mas dois murros no rosto de um adversário uruguaio após ser provocado (e, verdade seja dita, acuado e ameaçado) em uma partida em Montevidéu que já incorporava todos os predicados de uma batalha, e não de um evento esportivo. Pouco antes, Melo acusou um jogador do Peñarol de ofensas racistas, mas minimizou a questão dizendo que a companheira do atleta deveria tê-lo traído com “algum negão”.
Os socos colocaram a equipe em maus lençóis, com a suspensão do atleta e o risco de punição para o clube. Ainda assim, Felipe Melo voltou ao Brasil como uma espécie de herói da batalha no Uruguai.
“Enquanto Rodrigo Caio faz Fair Play, Felipe Melo sai na porrada para defender seu time. Futebol raiz. Isso é libertadores”, escreveu a página da torcida Independente, do São Paulo, para seus milhares de seguidores no Twitter.
No tweet seguinte, os torcedores organizados lamentaram que Felipe Melo não atuasse pela equipe, e ironizaram quem ainda defendia “Cainho”, àquela altura, já no diminutivo, alçado a responsável pela eliminação da equipe.
A paz e a honestidade são sempre motivos de louvor, desde que não joguem contra o nosso patrimônio
Para quem gosta de observar no futebol os sintomas de uma sociedade de vícios naturalizados, o recado estava dado: a paz e a honestidade são sempre motivos de louvor, desde que não joguem contra o nosso patrimônio – o time, no caso, mas podemos expandir a ideia para outros campos, como o deputado que usa verba de gabinete para se lançar candidato a presidente fora do período eleitoral ou a patrocinadora do clube que oferece uma camisa ao papa e usa a imagem para fazer propaganda sem autorização. A lei de Gerson, segundo a qual o importante é levar vantagem, nasceu no esporte, mas suas propriedades são universais.
De volta ao seu país e às redes sociais, Felipe Melo seguiu jogando para a torcida com mensagens sobre garra e religião (uma de suas frases favoritas é a de que Deus o capacitou para as vitórias; os adversários, aparentemente, não rezam o suficiente) até que, no feriado de 1º de Maio, dia do Trabalhador, declarou: “Deus abençoe todos os trabalhadores e pau nos vagabundos. Bolsonaro neles”.
Ele não identificou quem eram os vagabundos ao usar a mesma expressão do prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), para se referir aos manifestantes que dias antes promoveram uma greve geral contra as reformas trabalhista e previdenciária do governo Temer, dois projetos no mínimo polêmicos sobre os direitos dos trabalhadores, alguns dos quais violentamente agredidos nos atos.
A manifestação causou indiferença a quem vê na apologia à violência uma mera opinião política, euforia em quem observa no posicionamento do atleta uma quebra no modelo de declarações insossas no futebol e preocupação em quem assiste atento à expansão do discurso de ódio dentro e fora de campo.
Tanto em um como no outro, vencer é o que importa, não importa como; ainda que às custas da eliminação, física ou simbólica, do adversário. Para bons entendedores, meia inclinação fascista basta.
Em uma comunidade de torcedores, uma carta de repúdio foi redigida e compartilhada na página de campanha online Avaaz. “As atitudes do atleta ofendem grande parte da coletividade palmeirense, composta por torcedores de todos as matizes políticos, gêneros e etnias, incluindo gays, negros, perseguidos pela ditadura civil?militar, aqueles alinhados com a esquerda do espectro ideológico ou simplesmente progressistas que repudiam as atitudes racistas, homofóbicas e misóginas como as do deputado Jair Bolsonaro”, escreveram.
Outros textos críticos à atitude do volante passaram a ser compartilhados ao longo do feriado – um dos autores teve o perfil vasculhado e foi acusado, nos comentários, de ser “esquerdista” por condenar a incitação à violência, por aqui já suficientemente confundida com opinião política.
Bolsonaro, é claro, agradeceu a manifestação do atleta. O episódio ajuda a explicar o fascínio produzido por um defensor da tortura, acusado de apologia ao estupro, entre os que veem nas botinadas de Felipe Melo, ou mesmo do próprio volante, um exemplo de virilidade.
Não são poucos. Na última pesquisa Datafolha, Bolsonaro já figurava em segundo lugar em alguns cenários de uma eventual disputa presidencial. Leva o Ministério da Casa Civil quem sabe citar de cabeça alguma proposta de relevância na Câmara ou algum esboço de projeto de governo além da ofensa e do ataque ao chamado “politicamente correto”.
Neste cenário, de vitória a todo custo e inimigos em cada esquina, não é estranho que o Fair Play de Rodrigo Caio, que deveria ser uma atitude corriqueira, tenha sido tão falado quanto debochado entre colegas e torcedores.
No futebol como na vida, cada um tem o mito que o represente.
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