Na semana passada, Porto Rico decretou oficialmente a maior falência pública da história dos Estados Unidos. Em 3 de maio, a Junta de Supervisão Fiscal, imposta pelo governo de Washington há menos de um ano, anunciou que a crise econômica “havia chegado a um ponto crítico” e solicitou que um juiz federal interviesse para decidir o que deveria ser feito da exorbitante dívida de 123 bilhões de dólares que o Estado Livre Associado de Porto Rico e suas empresas públicas têm com os detentores de títulos e os fundos de aposentadoria do funcionalismo público.
O anúncio voltou a jogar holofotes sobre o território do Caribe que muitos têm chamado de “a Grécia das Américas”. De acordo com a Junta, a dívida total da ilha é a maior já contraída por uma entidade pública nos Estados Unidos – e deve aumentar exponencialmente se nada for feito. Para comparar, Detroit teve de declarar falência por conta de 18 bilhões de dólares – um nono da dívida de Porto Rico.
Em questão de dias, o presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, John Roberts, decidiu, com base na Lei Promesa, que foi aprovada em junho de 2016 para enfrentar a crise financeira, designar a juíza federal Laura Taylor Swain, de Nova York, para o caso. Swain, que tem experiência em casos de falência, foi nomeada como juíza federal pelo presidente Bill Clinton. Em 2009, presidiu o longo julgamento de ex-funcionários de Bernard Madoff envolvidos no esquema de pirâmide financeira.
Contudo, poucas reportagens sobre as dificuldades financeiras de Porto Rico se dedicaram a examinar as questões mais complexas por trás da crise.
Em primeiro lugar, a relação colonial que se estabeleceu entre os Estados Unidos e Porto Rico a partir de 1898 não é mais viável. Porto Rico é o maior território ultramarino ainda sob soberania norte-americana e foi a posse colonial mais importante da história do país. Por mais de um século, essa relação foi lucrativa para as filiais de empresas americanas que se instalaram na ilha – mesmo quando o governo federal passou a defender que o Estado Livre Associado de Porto Rico, criado em 1952, deveria ser um território autônomo. Mas a máscara da autonomia caiu: uma comissão escolhida por Washington é quem dá as cartas na economia da ilha, e a Suprema Corte reafirmou, no ano passado, que o Congresso americano continua a exercer poder soberano sobre Porto Rico.
Na prática, a antiga “livre associação” está morta. A menos que uma enorme injeção de dólares venha salvar a economia do colapso – o que é quase impossível com Trump na Casa Branca e o Partido Republicano à frente do Congresso –, essa relação não poderá ser restabelecida. Líderes políticos em Washington e San Juan terão de pensar um novo status político e econômico para o território: deverão decidir de uma vez por todas se Porto Rico deve ser anexado como o 51º estado americano ou reconhecido como nação soberana e independente.
Em segundo lugar, a falência de Porto Rico vai impactar o mercado de ações dos Estados Unidos, muito mais do que a maioria dos analistas de Wall Street vem admitindo. A Junta criada pela Lei Promesa tem alertado que, mesmo com cortes drásticos nos serviços públicos e a expectativa de aumento na arrecadação via taxas e impostos, Porto Rico não deve conseguir mais de 8 bilhões de dólares de superávit orçamentário ao longo dos próximos 10 anos, enquanto há cerca de 35 bilhões de dólares em dívidas a serem honradas. Em outras palavras, 75% da dívida não têm como serem pagos. Mais do que apertar os cintos, os detentores de títulos vão ter que jogar o cinto fora, e isso vai repercutir em todo o mercado de títulos públicos. Afinal, esse tipo de investimento sempre foi considerado um dos mais seguros.
Estão por vir anos de batalhas jurídicas entre Porto Rico e seus credores. “A economia vai ficar anos em suspenso”, afirmou à Associated Press Andrew Rosenberg, conselheiro do grupo ad hoc de detentores de títulos da dívida pública de Porto Rico. “Tenha certeza: a junta decidiu fazer de Porto Rico a nova Argentina”.
Dívida impagável
Para organizações da sociedade civil, a falência vai expor negociações escusas e até ilegais de títulos entre políticos da ilha e grandes firmas de Wall Street, que saquearam a população porto-riquenha.
Surpreendentemente, a petição de 23 páginas que a Junta apresentou ao tribunal de primeira instância de San Juan chegou à mesma conclusão que o ex-governador de Porto Rico Alejando García Padilla, em junho de 2015: a dívida da ilha é “impagável”.
Passados quase dois anos do alerta de García Padilla, além de aprovar a Lei Promesa e constituir a Junta de Supervisão Fiscal, Washington pouco fez para atenuar a catástrofe econômica que se abate sobre 3,4 milhões de cidadãos norte-americanos de Porto Rico.
Nos últimos 10 anos, a ilha perdeu 10% de sua população. Atualmente, 46% vivem abaixo da linha da pobreza, a taxa de desemprego está em 11% e a parcela economicamente ativa compreende cerca de 40% da população. Enquanto isso, o Poder Legislativo insiste em mais medidas de austeridade para Porto Rico. A verdade é que uma situação de calamidade como essa jamais seria tolerada por cidadãos norte-americanos de outra jurisdição.
Ao longo dos últimos dois anos, o governo da ilha aumentou drasticamente as contas de luz e água. O imposto sobre as vendas, que agora é sobre valor acrescentado, também aumentou para 11,5%. O governo propôs ainda suspender a aposentadoria dos novos trabalhadores e cortar em 10% os benefícios que já são pagos. Na semana passada, foi anunciado que 179 escolas públicas ficarão fechadas no próximo ano letivo. Além disso, a Junta fiscal pediu que a universidade pública da ilha, que tem 70 mil estudantes, corte 450 milhões de dólares de seu orçamento nos próximos quatro anos.
Pressionado pela comissão, o governador Ricardo Rosselló, que tomou posse em janeiro, considera privatizar as companhias de água, luz e esgoto, e talvez até o sistema público de transportes. Mas cortes drásticos e privatizações não vão resolver o problema da falta de empregos na ilha, a debandada de jovens para os Estados Unidos ou a incapacidade do governo porto-riquenho de desenvolver suas próprias políticas econômicas e comerciais, independentemente dos Estados Unidos.
Por décadas, Porto Rico foi importante para a economia norte-americana: foi uma das capitais do cultivo da cana-de-açúcar, depois se tornou um paraíso fiscal para empresas das áreas têxtil e farmacêutica e também um posto avançado das forças militares contra a propagação do comunismo na América Latina. Mas agora, os Estados Unidos não precisam mais de Porto Rico para nenhuma dessas coisas. A maioria das bases militares norte-americanas foi desativada e o Congresso começou, em 1996, a retirar o status da ilha de paraíso fiscal. Assim que foram suspensos os últimos incentivos fiscais previstos na Seção 936 da Receita Federal americana, as empresas começaram a deixar a ilha, que mergulhou numa recessão da qual ainda está longe de se recuperar. Nos últimos 20 anos, sucessivos governos tentaram resolver o déficit à base de empréstimos tomados junto a bancos de Wall Street, ávidos por vender títulos isentos de impostos a famílias ricas e de classe média nos Estados Unidos e em Porto Rico.
O que atraía os investidores era principalmente uma cláusula da Constituição de Porto Rico que previa que o governo deveria honrar o pagamento de títulos da dívida pública antes de qualquer outro compromisso financeiro. O fato de Porto Rico e suas empresas públicas não poderem apelar para o Capítulo 9 da Lei de Falências americana também seduzia os investidores.
Até 1978, todos os territórios dos Estados Unidos constavam no Capítulo 9. Ou seja, Porto Rico podia reestruturar suas dívidas. Mas, entre 1978 e o início dos anos 1980, foram feitas algumas alterações na Lei de Falências. Em 1984, o senador da Carolina do Sul Strom Thurmon propôs uma emenda para excluir especificamente Porto Rico, sem nenhum motivo aparente, nenhuma diretriz federal, nenhum interesse específico explícito na alteração da lei. Com algumas poucas frases simples numa emenda que pouquíssimas pessoas sequer perceberam, o Congresso lançou as bases para a situação com a qual Porto Rico se deparou no ano passado: além de ter quebrado, não podia recorrer a um tribunal para reestruturar sua dívida.
A Lei Promesa conseguiu pelo menos criar um novo tipo de Capítulo 9 para a ilha. A nova lei prevê que, se o governo porto-riquenho e a Junta de Supervisão Fiscal não conseguirem entrar em acordo com os detentores de títulos, um juiz pode intervir para fazer com que os credores aceitem uma reestruturação forçada da dívida.
Mas a constitucionalidade da lei ainda não foi avaliada nos tribunais, e, com tanto dinheiro em jogo os vários grupos de detentores de títulos estão determinados a travar uma batalha legal titânica contra ela.
No dia 5 de maio, por exemplo, a Ambac Assurance Corp, uma das principais seguradoras de títulos da dívida de Porto Rico entrou com um processo contra o governo e a Junta. E o fez num tom particularmente estridente:
A soberania garante amplos poderes, mas não autoriza a viver sem leis. A presente ação busca pôr fim à série de atos inconstitucionais e ilegais que tem sido o infeliz modus operandi do governo do Estado Livre Associado de Porto Rico na tentativa de resolver suas dificuldades financeiras e econômicas. Em vez de retificá-los, a Junta criada pelo Congresso para restabelecer a responsabilidade fiscal tem deliberadamente exacerbado tais abusos, dando seu imprimatur ao atual esquema de violações constitucionais e estatutárias, que só pode ser qualificado de roubo.
A Ambac é a seguradora de bilhões de dólares em títulos COFINA, oriundos do imposto sobre as vendas e que vêm sendo emitidos pelo governo de Porto Rico desde 2006. Assim como qualquer outra seguradora de títulos, a companhia enfrenta enormes perdas por conta da reestruturação da dívida.
Enquanto isso, o grupo de credores da última grande emissão de títulos, que somou 1,4 bilhão de dólares, entrou com um processo na Suprema Corte do Estado de Nova York em 2014. Liderados pelos hedge funds Aurelius Capital Management e Monarch Alternativa Capital, esses credores alegam que a Constituição de Porto Rico garante o pagamento prioritário a eles. Junto com muitas outras organizações da sociedade civil, eles argumentam que os títulos COFINA, que representam quase 18 dos 78 bilhões de dólares da dívida referente aos títulos, foram emitidos ilegalmente e, por isso, não devem ser pagos.
A Constituição porto-riquenha proíbe que despesas com o pagamento de dívidas ultrapassem 15% da receita pública anual. O poder legislativo de Porto Rico criou a COFINA justamente para contornar esse teto e usar a receita dos impostos sobre as vendas para garantir o pagamento de parte das dívidas. Mas a legalidade dessa manobra ainda não passou pelo crivo da Justiça.
Enquanto os diversos grupos de credores lutam nos tribunais, a Junta fiscal se alia ao governo de Porto Rico para defender que credores aceitem abatimentos importantes no pagamento.
“Dadas as atuais receitas, a Commonwealth e demais organismos governamentais não poderão quitar ao mesmo tempo a dívida de 74 bilhões de dólares, o déficit de 49 bilhões nos planos de aposentadoria e as atuais despesas operacionais”, concluiu a Junta na semana passada, após meses de análise dos arquivos financeiros de Porto Rico.
A crise financeira da ilha “está prestes a piorar exponencialmente, devido ao corte de aproximadamente 850 milhões de dólares nos Affordable Care Act Funds, os fundos do sistema de saúde, para o ano fiscal de 2018”, alertou a comissão. No total, essa perda deve chegar a 16 bilhões de dólares ao longo dos próximos 10 anos, ainda de acordo com a Junta. Além disso, os fundos de pensão estão quase sem dinheiro e precisarão de 1,5 bilhão de dólares por ano só para conseguir manter os atuais aposentados. Contrariamente aos servidores municipais nos Estados Unidos, a maioria dos funcionários públicos de Porto Rico não faz parte do sistema de seguridade social – ou seja, esses fundos são para eles a única fonte de renda na aposentadoria.
Enquanto isso, Donald Trump e líderes republicanos no Congresso repetem que não haverá resgate financeiro de Porto Rico, nenhuma assistência extra por parte do governo federal à população da ilha.
Eles preferem esquecer que, lá nos anos 1990, quando Clinton presidia o país e Newt Gringrich estava à frente do Congresso, líderes de Washington se deram conta de que teriam de tomar medidas drásticas para salvar o Distrito de Columbia do colapso econômico. O Congresso teve de formar uma junta de controle fiscal igual à que foi criada em Porto Rico.
Mas a comissão logo concluiu que o distrito que abriga a capital federal tinha problemas estruturais que precisavam da ajuda federal para ser resolvidos. Em 1997, um pacote de reformas estabeleceu que o governo federal assumiria as dívidas da cidade e a administração dos tribunais locais e prisões. Também aumentaria os repasses do Medicaid e passaria a controlar os fundos de pensão dos servidores.
Consequentemente, o distrito se recuperou da situação de calamidade econômica. Hoje é uma cidade vibrante e próspera.
O Poder Legislativo terá que prestar ampla assistência a Porto Rico ou agir rapidamente para mudar o status político e econômico da ilha. Depois de um século sob as leis coloniais de Washington e décadas de dívidas predatórias de Wall Street, a conta chegou
Tradução: Carla Camargo Fanha
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