Os dados da pesquisa sobre as diferenças na qualidade de vida entre a população negra e a população branca, divulgada na última semana pelo Pnud, evidenciam em números o que faz parte da vida real, para além das estatísticas: passados 129 anos da abolição da escravatura, o Brasil mantém o roteiro de sua herança colonial-escravocrata. Não há nada que seja capaz de mascarar de maneira eficiente que aqui a população negra se constituiu como uma subclasse, uma população feita para não vingar, não dar certo, uma força de trabalho trazida à força do continente africano mas que, se esperava, não necessariamente constituiria o que seria a “nação brasileira” e, por isso mesmo, deveria desaparecer.
A abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888, saiu como o ato maior do altruísmo de uma princesa de ascendência portuguesa. Mas os fatos e os anos pós Lei Áurea mostraram muito mais. Para quem quisesse ver, é claro, a Lei não tornou negros escravizados cidadãos livres. Ao contrário, tornou o Império (e a República em seguida) e suas instituições verdadeiramente livres de continuar “carregando o fardo” dos corpos negros escravos, um atraso na sociedade da época, uma ameaça constante de evasão e levantes nos estados onde o abolicionismo já havia vencido e predominado, onde o capitalismo pedia mercado de consumo e produção assalariada para se legitimar.
Não havia qualquer dificuldade de perceber isso ontem. Não há qualquer dificuldade em perceber hoje.
Como tão bem apontou Florestan Fernandes , “os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho”. Não havia qualquer dificuldade de perceber isso ontem. Não há qualquer dificuldade em perceber hoje.
Basta ver como o ano de 1888 está situado entre dois diferentes momentos de nossa história. De um lado, o incentivo, do Império, cada vez maior a partir de 1870, à entrada de trabalhadores imigrantes no país, principalmente europeus, para as lavouras basicamente do sul-sudeste; de outro, em 1890, a promulgação do Código Penal Brasileiro, em que o sujeito negro é a principal personificação dos “crimes” ali descritos.
A população outrora escravizada via sua mão de obra ser desprezada como ferramenta obsoleta e seu corpo criminalizado, enquanto brancos das mais diversas nacionalidades ocupavam este lugar agora regido pelo regime assalariado e condições que não poderiam mais ser comparadas à escravidão (ao menos legalmente).
A ditadura militar no Brasil escolheu investir na “democracia racial”. Interessava aos militares a ideia do país unido, onde o único inimigo comum, para a toda a sociedade fosse de fato o comunismo e as ideias socialistas.
O intelectual e ex-senador Abdias do Nascimento, cujo principal livro se tornou um clássico e um escândalo, “O Genocídio do negro brasileiro”, já apontava em seu livro que os militares consideraram, em 1969, como “subversiva” uma campanha que abordava a discriminação racial. Eles temiam que a abordagem racial causaria novas áreas de atrito e crítica ao governo. Ou, como afirma o historiador americano Thomas Skidmore, os militares, a partir de 1968, tornaram “a pesquisa de campo sobre relações raciais virtualmente impossível”. E mais, “não só a rubrica raça foi omitida no censo de 1970, mas sobretudo a censura governamental impediu toda e qualquer crítica à imagem da democracia racial brasileira”.
Em nome da “democracia racial”, militantes negros que tentaram destruir o mito, contra a ditadura, foram perseguidos e torturados. E é evidente que, por trás dessa resistência também tem a reverberação da intensidade das lutas dos movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos, a repercussão dos assassinatos de Malcom X e Martin Luther King e como tudo isso inflamava os movimentos negros ao redor do mundo, junto com as lutas anticolonialistas no continente africano e em especial na África do Sul. No Brasil? Democracia racial.
E parece que o mito da democracia racial venceu. Violentou tanto a mentalidade brasileira, silenciou tanto a população negra, sua memória, que hoje pode ser bem ilustrada, como exemplo, na resistência que as cotas raciais ainda enfrentam entre grande parte da sociedade, que enxerga sentido na cota para pobres mas rejeita em esmagadora maioria o uso das mesmas com recorte racial.
Uma cidade onde a desigualdade entre brancos e negros não compromete seu status de qualidade de vida é o exemplo significativo de quanto a desigualdade se cala, quando a parte mais miserável e explorada da desigualdade é preta.
Os debates sobre o sistema prisional e o encarceramento em massa que insiste em negar o aspecto racial da questão; o alto índice de homicídios no Brasil e por que atinge de forma tão acintosa a população negra, em especial os jovens, com diferenças gritantes e escandalosas em relação a população branca; os menores salários, que insistem em existir entre homens e mulheres, e são ainda mais gritantes quando essa mulher é negra; a academia branca que segue dando o tom na produção de saber e a ausência ainda profundamente perceptível dos autores e pensadores negros nas bibliografias principais; e assim vamos longe.
A pesquisa do PNUD mostra que há 50 municípios brasileiros em que ao menos o IDH da população branca é considerado muito alto. Mas a pesquisa aponta que em absolutamente nenhum (lemos “nenhum”) município do país a população negra chega a ter a mesma oportunidade.
Pela pesquisa, uma cidade como Niterói, no Rio de Janeiro, é a segunda cidade do Brasil com a maior desigualdade entre brancos e negros, atrás de Porto Alegre. Niterói é a cidade celebrada por seus moradores como aquela que ocupa o primeiro lugar em qualidade de vida no Estado do Rio. Uma cidade onde a desigualdade entre brancos e negros não compromete seu status de qualidade de vida é o exemplo significativo de quanto a desigualdade se cala, quando a parte mais miserável e explorada da desigualdade é preta. Ainda no estado do Rio, a segunda cidade com a maior desigualdade entre brancos e negros, Petrópolis, é aquela que já foi considerada a cidade mais segura do Estado. Segurança e desigualdade só podem estar dissociadas se a “segurança” estiver garantida para a parte mais abastada da desigualdade.
Se isto não é um “grito estatístico” que ilustra em números a situação nacional e histórica de nosso racismo e o legado de nosso passado colonial, nada mais pode ser.
Vejam que a pesquisa aponta que só em 2010, a população negra alcançou o IDH que a população branca havia alcançado em 2000. Se isto não é um “grito estatístico” que ilustra em números a situação nacional e histórica de nosso racismo e o legado de nosso passado colonial, nada mais pode ser. Diga-se de passagem que o economista Marcelo Paixão, referência da ONU para a análise do IDH no Brasil e que há duas décadas foi pioneiro em desmembrar a pesquisa no recorte racial, já havia em 2002 divulgado pesquisa em que apresentava “dois Brasis” com dois IDHs pesadamente distintos. Com a população branca, o Brasil ocupava o 46° lugar, enquanto com a população negra, o Brasil era o 101°.
É preciso levar os dados dessa pesquisa a sério, porque ela segue nos mostrando a capilaridade do alcance que o racismo possui, e onde ele se mascara de “desigualdade apenas”. O legado do passado colonial e escravocrata do Brasil não diluiu com o passar do tempo, não desapareceu com o avanço da sociedade no que tange a conquistas de direitos. O legado permanece, e os dados divulgados pelo PNUD só confirmam que ele não desaparecerá apenas com as nossas boas intenções e lembranças em datas comemorativas.
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