Quis o destino que, na mesma semana, chegassem ao noticiário a histórica condenação do Brasil pelos abusos de autoridade e violência policial pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e o vídeo em que policiais da Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas (Rotam) do Paraná treinam sua corrida matinal gritando os seguintes versos, puxados pelo comandante:
“Bate na cara, espanca até matar
arranca a cabeça, explode ela no ar
arranca a pele e esmaga os seus ossos
joga ele na vala e reza um pai nosso”
O vídeo, publicado em uma página de Facebook que se declara apoiadora da polícia, já passa de 250 mil visualizações e foi criticado por vários veículos. Sua divulgação explicita o argumento da Corte, que aponta para uma formação que incita a violência e pede por uma reestruturação das polícias brasileiras tendo em vista que “a violência policial representa um problema de direitos humanos no Brasil”.
“Num contexto de alta letalidade e violência policial, o Estado tinha a obrigação de agir com mais diligência e seriedade”, diz a sentença sobre duas chacinas cometidas pela polícia do Rio de Janeiro na favela de Nova Brasília, no Complexo do Alemão, em 1994 e 1995.
Apenas na primeira chacina, policiais mataram 13 pessoas e estupraram três mulheres, duas delas ainda adolescentes. Na segunda chacina, desta vez envolvendo também o uso de helicópteros, outras 13 pessoas morreram. Apesar do uso das aeronaves, os corpos tinham sinais de tiros dados a curta distância, característicos de execução. As armas dos policiais que atuaram no chão durante a operação não foram periciadas.
Recebendo informações referentes a outros estados, a Corte aponta “a existência de um padrão” de abuso de autoridade contra os direitos humanos no Brasil, “especificamente por meio da violência policial e do uso excessivo da força”. Expedida em fevereiro, a sentença foi publicada em 12 de maio.
A Corte decidiu que o Brasil deverá adotar — além de inúmeras medidas de indenização específicas às famílias de vítimas e a sobreviventes das operações que resultaram nas duas chacinas — um relatório oficial com dados relativos às mortes ocasionadas durante operações da polícia em todos os estados do país. As informações devem ser analisadas anualmente sobre as investigações de cada incidente que resulte na morte de um civil ou de um policial.
Caso o país não cumpra o determinado, podem ser impostas sanções internacionais, políticas ou econômicas. Entre elas, há a possibilidade de suspensão de concessões da Organização Mundial do Comércio ou do Mercosul.
“Um padrão” de abuso de autoridade contra os direitos humanos no Brasil
A diretora do Centro pela Justiça e o Direito Internacional no Brasil, Beatriz Affonso, foi uma das partes que acionou a Corte sobre os casos. Ela acredita que, com a sentença, fica claro um sistema de compadrio entre polícias, justiça e governo estadual:
“A sentença reconhece que violência perpetrada pelos agentes de segurança pública do estado do Rio de Janeiro é cometida em um contexto sistemático, e conta com a omissão dos administradores de justiça para que essas ocorrências não sejam investigadas e os responsáveis punidos, fomentando uma dinâmica contínua de impunidade como causa e consequência da violência de estado.”
As chacinas cometidas pela polícia do Rio de Janeiro se mantêm tão naturalizadas que, em abril, as jornalistas Cecília Oliveira e Juliana Gonçalves publicaram uma matéria no The Intercept Brasil informando que apenas entre março de 2016 e março de 2017 ocorreram 21 chacinas no estado, resultando em 76 mortes e 45 pessoas feridas.
Em 2016, a polícia de São Paulo também teve sua conta de violência e morte. No início do ano, dois dias após o assassinato de um policial militar, um ataque deixou quatro mortos na capital. Em outra chacina registradas no estado, cinco jovens de periferia foram mortos pelas mãos de policiais, em novembro. À época, uma reportagem da revista Veja revelou que, até a confissão, “o governo de São Paulo ignorou as fortes evidências e relutou em admitir que a polícia era a principal suspeita da chacina”.
A mesma negação foi observada e relatada à Corte sobre as duas chacinas de Nova Brasília, de 1994 e 1995. Um dos problemas apontados pela CIDH sobre as investigações delas foi que “o Estado não se pronunciou em relação ao pedido dos representantes sobre a suspensão dos policiais acusados”.
Para Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, a sentença é importante porque aponta a falha do Estado brasileiro em investigar criteriosamente e responsabilizar os culpados por abusos dos direitos humanos em favelas e periferias:
“As chacinas de Nova Brasília ocorreram há mais de 20 anos e ninguém foi responsabilizado. Nem pelas mortes dos jovens, nem pela violência sexual cometida contra as mulheres, que acabam marcadas duplamente pela violência policial ao perderem seus entes queridos e estarem expostas a todo tipo de abuso. Esta impunidade alimenta o ciclo de violência policial nesses territórios que até hoje sofrem com inúmeras violações.”
Investigados e promovidos
Os mais de cem policiais envolvidos nas chacinas de Nova Brasília agiam sob as ordens de seus comandantes. Em vez de serem demitidos, como pediu à época uma sindicância interna da Polícia Civil, os delegados que lideravam as duas operações policiais que resultaram nas chacinas — José Secundino da Costa Silva, em 94, e Marcos Alexandre Cardoso Reimão, em 95 — foram alçados a titulares de delegacias em 2011 pela hoje deputada estadual Martha Rocha (PDT-RJ). Rocha era membro das duas sindicâncias que investigaram os então delegados.
Em 1994, a então delegada Martha Rocha era chefe da Corregedoria Geral da Polícia Civil, órgão responsável pela fiscalização das ações dos agentes. No mesmo mês da primeira chacina, duas sindicâncias foram abertas para investigar paralelamente o caso: uma da própria Corregedoria e outra criada por decreto do então governador Nilo Batista [que hoje toca um escritório de advocacia e tem seu trabalho focado em direito penal]. Rocha fazia parte das equipes das duas sindicâncias.
A sindicância da Polícia Civil chegou à conclusão, em 1995, que para 10 dos mais de cem agentes envolvidos deveria “ser aplicada a pena de demissão, face às circunstâncias agravantes de terem sido as transgressões praticadas como abuso de autoridade”.
O policial identificado por uma das vítimas de estupro, Plínio Alberto dos Santos Oliveira, ficou de fora da lista por se tratar de um policial militar [a lista tratava apenas de policiais civis]. Um relatório anexado aos autos do processo da Corte Interamericana, a que The Intercept Brasil teve acesso com exclusividade, afirma que, por seus atos, Oliveira pagou apenas 30 dias de prisão disciplinar.
Já Comissão Especial criada pelo governador emitiu seu relatório final em 1994. O então Secretário de Justiça do estado afirmou não restarem dúvidas “de que há fortes indícios da ocorrência de execuções sumárias”. Mas em janeiro de 1995, Marcello Alencar (1925-2014) assumiu o governo do estado.
Mudanças na política de segurança pública e guerra às drogas como justificativa
Com a posse do novo governador, houve uma reestruturação na secretaria de Justiça. Entre as mudanças, a secretaria de segurança, extinta por seu antecessor Leonel Brizolla (1922-2004) voltou a existir, e a Delegacia Especial de Tortura e Abuso de Autoridade, de onde partiram os pedidos pelas sindicâncias internas, fechou as portas.
O novo governador ia recorrentemente à imprensa para defender que policiais envolvidos em operações não fossem punidos ou criticados por participarem de confrontos armados. Em 1995, ele criou a bonificação policial que ficou conhecida como “gratificação faroeste”, que avaliava o desempenho dos policiais por sua participação em operações, dando aumentos de até 50%.
Segundo laudos periciais enviados à Corte Interamericana, entre 2003 e 2009, o processo passou por uma via crucis em forma de troca de mãos incessante entre Ministério Público Estadual e Corregedoria da Polícia. Inúmeros pedidos de postergação de prazo de ambas as partes foram aceitos sem qualquer explicação de motivo. Até que, em 2009, um relatório final foi encaminhado ao MP pedindo a extinção da punibilidade, alegando a prescrição dos crimes e acusando “um lapso temporal de cerca de 14 anos” que prejudicaria o andamento dos autos.
Dois anos depois, em 2011, Martha Rocha se tornou Chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Na cerimônia de posse, estavam o então governador Sérgio Cabral e o então secretário de segurança pública José Mariano Beltrame. A mesma pessoa que, em 1994, fez parte das duas sindicâncias que pediram a demissão do delegado José Secundino por comandar a operação que resultou em chacina e estupros de garotas, agora o tornava titular de uma delegacia.Curiosamente, hoje atuando como deputada estadual pelo PDT do Rio, Martha Rocha se coloca como combatente aos abusos sexuais. Basta dar uma olhada no site da parlamentar para perceber que todas as notas destacadas em sua página principal são sobre defesa dos direitos das crianças, dos adolescentes e das mulheres. Em 2013, com a reabertura do processo das duas chacinas a pedido do Ministério Público, muitos policiais envolvidos — inclusive Plínio Oliveira, acusado de estupro — chamaram Rocha, ainda chefe da Civil, como testemunha de defesa.
Já o delegado Marcos Reimão, coordenador da operação que matou 13 pessoas na mesma favela, foi escolhido por Marta Rocha para ser titular de uma delegacia logo que ela se tornou chefe da Polícia Civil. Antes disso, porém, ele ainda recebeu, em 1998, a Medalha Tiradentes – maior reconhecimento que a Assembleia Legislativa do estado pode dar a quem tenha prestado “serviços de grande relevância” ao estado.
A honraria já foi feita, por exemplo, ao filósofo Paulo Freire e ao Papa Bento XVI, mas chegou a se tornar motivo de piada na internet por escolhas curiosas de lauredados, como um dos filhos de Sérgio Cabral [à época com 24 anos] e Jair Bolsonaro. Responsável pela homenagem a Marcos Reimão, o então deputado do PSB Cosme Salles ficou conhecido por ter contratado para trabalhar em seu gabinete, na mesma época, um homem acusado pelo MP de envolvimento com a milícia.
“Estas canções não determinam a formação e nem a conduta de atuação dos policiais”
The Intercept Brasil consultou a Polícia Civil do Rio de Janeiro para saber se os delegados citados no processo ainda estão na ativa, já que seus nomes não se encontram mais na lista pública de delegacias.
A Polícia Civil informou que José Secundino da Costa Silva permanece lotado na Delegacia de Acervo Cartorário (DEAC) e que Marcos Alexandre Cardoso Reimão está lotado no Departamento Geral de Recursos Humanos (DGRH), desde 01/07/2015, “sem atividade no momento”. Outros dois delegados envolvidos no caso não estão mais na ativa.
A reportagem entrou em contato com a equipe da deputada estadual Martha Rocha sobre sua atuação nas sindicâncias de 1994 e sobre com a escolha dos dois delegados para serem titulares quando ela se tornou Chefe da Polícia Civil do Rio. Até a publicação da reportagem, os questionamentos não tinham sido respondidos.
Em resposta à publicidade que o vídeo ganhou, a Polícia Militar do Paraná se defendeu, por meio de nota à imprensa, dizendo que “se pauta pela atuação de policiamento comunitário, em consonância com os Direitos Humanos e de absoluto respeito à dignidade da pessoa humana”. A nota também afirma que “estas canções não determinam a formação e nem a conduta de atuação dos policiais militares nas ruas diariamente”.
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