A sentença do juiz federal Sérgio Moro que condenou o ex-governador do Rio Sérgio Cabral a 14 anos e dois meses de prisão por cobrança de propina de R$ 2,7 milhões da empreiteira Andrade Gutierrez nas obras do Comperj (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro) tem trechos duros. No meio das 117 páginas, há expressões como “ganância desmedida” ou frases como “não pode haver ofensa mais grave do que a daquele que trai o mandato e a sagrada confiança que o povo nele deposita para obter ganho próprio”. É bonito. Mas é preciso lembrar que, num passado não tão distante assim, enquanto o hoje presidiário ainda vestia os caríssimos ternos comprados com dinheiro ilícito, vozes que ecoavam numa das esquinas mais nobres do Leblon foram bem mais diretas.
“Cabral é ditador!”, gritou insistentemente um grupo, formado basicamente por jovens sem ligação partidária, que fincou a “Ocupa Cabral” na frente do edifício do então governador, na quadra da praia carioca. A primeira vez em que o movimento esteve ali foi no fim de julho de 2012, quando permaneceu por pouco menos de duas semanas. “Tá puto com o governo?” era o sugestivo título de um dos vídeos no YouTube que chamavam para a manifestação.
Pode parecer longe demais, mas é preciso, sim, voltar a 2012, 2013 para que sejam dados os devidos créditos às ruas. Um Cabral preso, condenado no processo que corre em Curitiba e réu em outras nove ações no Rio é, sem dúvida, uma vitória da Justiça. Mas há que se dar crédito às vozes, que, em muitos momentos, não passaram das poucas dezenas. Elas incomodaram.
É claro que seria ingênuo atribuir somente a um grupo de jovens a queda daquele que foi apelidado de ditador. Mas a repetição do refrão teve claramente seu mérito, ao olharmos para o contexto de navegação tranquila que nosso Cabral contemporâneo teve durante boa parte do seu governo.
Desde que começou seu primeiro mandato, em janeiro de 2007, o ex-governador foi visto com olhos favoráveis por aqueles que regiam os rumos da imprensa local. A chegada de Cabral representava o fim de um período de relação turbulenta com o Executivo, depois de quase oito anos nas mãos do casal Rosinha e Anthony Garotinho. Seria uma nova era de “progresso” após um governo populista e rodeado por denúncias de corrupção.
No início, praticamente tudo o que se ouvia ou que se lia era sobre esse novo Rio próspero. Havia um encantamento com o projeto das UPPs. No fim de 2010, a ocupação do Complexo do Alemão e a transmissão ao vivo de dezenas de bandidos em fuga eram mais um marco de um estado de sucesso. Na saúde, as UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) surgiram como a solução revolucionária para desafogar os hospitais e melhorar a qualidade do serviço oferecido à população.
Mas os primeiros sinais mais evidentes de que nem tudo era o que parecia ser começaram a surgir em 2011. A trágica queda de um helicóptero, em junho daquele ano, que culminou com a morte de Mariana Noleto, namorada de Marco Antônio Cabral, filho do então governador; de Jordana Kfuri, mulher do então presidente da construtora Delta, Fernando Cavendish; e de outras cinco pessoas abriu o caminho para a revelação de relações pessoais entre o empreiteiro e o chefe do Executivo fluminense. A aeronave levaria os passageiros à Bahia para o aniversário de Cavendish.Logo na sequência, o governo admitiu que Cabral também participaria da festa do dono da Delta. Para isso, viajara antes da tragédia num jatinho do empresário Eike Batista, em companhia de Cavendish. Naquele momento, a própria imprensa local parecia cumprir seu papel ao mostrar os milionários contratos da empreiteira com o estado. Na balança entre as denúncias e o “progresso” do Rio, porém, o último falava mais alto. Não à toa, Eike, por exemplo, receberia, no ano seguinte, o prêmio “Faz Diferença”, do jornal “O Globo”, na categoria Economia, por seu desempenho em 2011.
Em maio de 2012, semanas antes da primeira ocupação em frente ao seu prédio no Leblon, o ex-governador vislumbrava a possibilidade de uma CPI que investigava o bicheiro Carlinhos Cachoeira – atualmente em prisão domiciliar – atingi-lo. Mas, ao ser questionado por um repórter sobre o medo de uma possível quebra de sigilo da Delta, acusada de ligação com Cachoeira, Cabral mostrou a arrogância de quem parecia ter a certeza de ser intocável: “Acho até um desrespeito da sua parte me perguntar isso (…) Essas ilações são de uma irresponsabilidade completa, um desrespeito completo com a minha pessoa”.
O mesmo ano ainda teve a incômoda divulgação, por parte do ex-governador Anthony Garotinho, de fotos da farra numa viagem de Cabral à Europa com outros secretários, como o da Saúde, Sérgio Côrtes, e o de Governo, Wilson Carlos. Foi a chamada “gangue dos guardanapos”. Nada, porém, era suficiente para derrubar a pompa do alcaide. No fim de 2012, sob protestos da oposição, ele sequer foi citado no relatório final da CPI do Cachoeira.Foi em 2013 que os gritos começaram a ecoar mais alto no Leblon. Na carona das manifestações multifacetadas de junho, o “Ocupa Cabral” ressurgiu. Se tinha uma relação de distância com a imprensa local, acabou ganhando o mundo, com reportagens de correspondentes estrangeiros que queriam saber mais sobre aquele protesto, durante a realização da Copa das Confederações.
Com o fim do torneio e os olhos do resto do mundo já mais distantes, a conhecida truculência policial fez o silêncio voltar ao bairro nobre da Zona Sul carioca. Até as luzes da orla foram apagadas para dificultar o registro da retirada dos manifestantes. Mas a ocupação retornou novamente. E com o reforço de um grito tão incômodo quanto o de “ditador”.
A terceira e última etapa do “Ocupa Cabral” foi a mais longa. Durou de 28 de julho a 6 de setembro de 2013. E, no início de agosto, chegou a ganhar o reforço de moradores da Rocinha. “Cabral, bandido, cadê o Amarildo?” era o refrão que iria atormentar definitivamente o sono do governador. O desaparecimento do pedreiro, morador da comunidade, cujo corpo nunca foi encontrado, num território teoricamente “pacificado”, foi um baque que ressoou sem parar. No ano passado, 13 policiais militares foram condenados no processo do caso.
Quando saíram do Leblon, os últimos manifestantes deixaram um governador já bem mais desgastado. Ainda que denúncias, como a de uso de helicópteros do estado para fins particulares, tivessem sido engavetadas pelo Ministério Público do Rio, Cabral foi aos poucos rumando para os bastidores.
Em abril de 2014, com a popularidade em baixa, ele renunciou ao cargo para dar lugar ao vice, Luiz Fernando Pezão, que ainda conseguiria vencer as eleições daquele ano para lidar com um estado que caminhava definitivamente para o fundo do poço.
O fim da história – ou ao menos o começo do fim – de Cabral todos sabem. Depois do período de ocaso, o ex-governador voltou às manchetes após ser preso, em novembro do ano passado, durante a Operação Calicute, desdobramento da Lava Jato no Rio. Desde então, não param as notícias de mais e mais milhões que caíram no colo do ex-chefe do Executivo fluminense.
Este ano, sobrou até para o empresário Eike Batista, aquele que “fez a diferença” no passado. E o ex-secretário de Saúde Sérgio Côrtes foi outro a parar atrás das grades por acusações de desvios de verbas em seu governo.
Falar de Cabral agora pode ser, como diz a gíria, “chutar um cachorro morto”. Com variações, a sentença dada por Sérgio Moro nesta terça-feira (13) possivelmente se repetirá nos processos que correm no Rio, a cargo do juiz Marcelo Brêtas.
Então, fui buscar palavras de quem, lá atrás, insistiu em gritar contra um governador que parecia inatingível. Recebi duas respostas distintas sobre o que sentiam ao participarem do “Ocupa Cabral”:
- “Não tinha a esperança de que isso (a prisão do ex-governador) fosse acontecer porque a gente sabe como é o sistema político, né?”
- “Eu só fui protestar pela prisão dele porque sabia que ele ia acabar preso”
Ou seja, fosse o grito mais ou menos convicto de uma real consequência, há que se registrar que ele ecoou.
E, quem sabe, o “Cabral é ditador” do passado não possa se transformar no “Fora, Temer” do futuro.
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