Fora de campo, todo dia é um 7 a 1 para quem observa, três anos depois, o legado da Copa de 2014. O episódio mais recente levou à prisão o ex-ministro e ex-presidente da Câmara dos Deputados Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), investigado pela Polícia Federal por envolvimento em supostos desvios na construção da Arena das Dunas, em Natal, onde o clube de maior evidência, o ABC, é o atual 13º colocado na Segunda Divisão e manda seus jogos em outro estádio, o Frasqueirão. Alves foi ministro do Turismo de Dilma Rousseff e Michel Temer.
A situação da arena potiguar, de custo estimado em R$ 400 milhões (99% financiados via BNDES) para receber quatro partidas da Copa, mostra que a sova sofrida pelo futebol brasileiro na fatídica semifinal contra a Alemanha não terminou nos gols de Schürrle. Segundo técnicos do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte, o contrato entre o governo do RN e a OAS, peça-chave da Lava Jato, pode render um prejuízo para os cofres públicos de R$ 451,77 milhões em 15 anos. O custo para usar o local é considerado inviável pelos times do estado.
O envolvimento da principal liderança política da região em suspeitas de irregularidades ajuda a entender o esforço e a generosidade dos organizadores da Copa em democratizar (sic) a participação da torcida nas 12 sedes do Mundial, das quais cinco não têm um time sequer na primeira divisão, onde concentram-se o público, a renda e a exposição na TV.
Natal está longe de ser o único caso.
Em Brasília, dois ex-governadores e um ex-vice, então assessor do presidente Michel Temer, foram detidos na Operação Panatenaico, que investiga suspeitas de propina e superfaturamento calculado em R$ 900 milhões nas obras do Estádio Nacional Mané Garrincha e um rombo de R$ 1,3 bilhão aos cofres da Agência de Desenvolvimento de Brasília (Terracap), estatal utilizada para financiar a reforma do estádio.
As investigações tiveram andamento graças à delação da Andrade Gutierrez, uma das empreiteiras responsáveis (e favorecidas) pela construção. A reforma custou R$ 1,4 bilhão, a mais alta entre as arenas.
As suspeitas se somam às delações da principal empreiteira envolvida na Lava Jato, a Odebrecht. Segundo levantamento do portal G1, as delações de executivos da construtora permitem concluir que pelo menos metade dos 12 estádios utilizados na Copa do Mundo de 2014 está envolvida em alguma suspeita de irregularidade.
Pelo menos metade dos 12 estádios utilizados na Copa do Mundo de 2014 está envolvida em alguma suspeita de irregularidade.
A Procuradoria-Geral da República pediu ao relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, Luiz Fachin, que encaminhe as petições envolvendo as arenas de Recife (Arena Pernambuco), Fortaleza (Arena Castelão), Manaus (Arena da Amazônia) e Rio de Janeiro (Maracanã), além de Brasília (Mané Garrincha), a outras instâncias. Um inquérito relacionado à Arena Corinthians segue em sigilo no STF.
As investigações colocam gestores públicos e privados no centro das suspeitas. Em Pernambuco, a Operação Fair Play, da PF, transformou o governador Paulo Câmara (PSB) e o prefeito de Recife, Geraldo Júlio (PSB), em alvos de um inquérito no Supremo Tribunal Federal sob suspeita de participação no superfaturamento e irregularidades da Arena Pernambuco, da Odebrecht. Há suspeita de superfaturamento em troca de doações oficiais a políticos locais.
O Maracanã teve também destino melancólico após abrigar a final da Copa, entre Alemanha e Argentina. O estádio, que ficou abandonado, sem energia e chegou a ser saqueado no fim de 2016, é objeto de uma investigação do Tribunal de Contas do Estado que apontou supostas irregularidades como superfaturamento na compra de argamassa, gastos em duplicidade em aluguel de guindastes e contratação de equipes de limpeza, além de problemas na licitação das reformas.
Preso em novembro do ano passado, o ex-governador Sergio Cabral (PMDB-RJ) é acusado de receber pagamentos mensais em dinheiro vivo da Andrade Gutierrez (responsável pela obra em consórcio com a Odebrecht) em troca de benefícios na reconstrução.
No caso da Arena Corinthians, corre no Supremo uma investigação relacionada a crimes praticados por funcionários públicos contra a administração em geral e corrupção passiva. O ex-presidente da construtora Marcelo Odebrecht disse em delação que o negócio foi fechado em 2011 durante um jantar que reuniu o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), o então prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (PSD), e o então presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luciano Coutinho.
Longe ou perto dos grandes públicos, a maioria dos estádios da Copa foi alvo de alguma contestação na Justiça.
Também estavam presentes o então presidente do Corinthians e atual deputado federal Andrés Sanchez, o então diretor de marketing, Luis Paulo Rosenberg, e o ex-jogador Ronaldo Nazário de Lima.
Não é exatamente um exemplo de elefante-branco – público e renda não faltam na arena em dias de jogos –, mas os custos e a forma como o estádio foi erguido em uma cidade onde não faltavam alternativas para sediar as partidas da Copa (o Morumbi, que seria ligado ao aeroporto de Congonhas por um projeto até hoje no papel, era a opção inicial) são nebulosos.
Em seu famoso artigo na revista Piauí, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) escreveu que o promotor de Justiça Marcelo Milani teria pedido propina de R$ 1 milhão para não entrar com uma ação relativa à Arena Corinthians. Por causa da afirmação, foi intimado a dar depoimento na Corregedoria-Geral do Ministério Público de São Paulo. Em 2012, o promotor entrou com ação na Justiça contra a lei que permitia à Prefeitura de São Paulo, administrada à época por Kassab, ajudar na construção do estádio com a emissão de R$ 420 milhões em títulos (as empresas que comprassem os títulos poderiam usá-los para abater dívidas com a administração municipal).
Em janeiro deste ano, reportagem do jornal O Estado de S.Paulo mostrou que o Corinthians, após meses de inadimplência, havia chegado a um acordo com a Caixa Econômica Federal, sua antiga patrocinadora, para retomar o pagamento das mensalidades da arena. Com a correção, o valor a ser desembolsado é calculado em R$ 2 bilhões.
“Essa obra é uma demonstração da eficiência do setor privado mineiro e de um governo que planeja e entrega”.
Longe ou perto dos grandes públicos, a maioria dos estádios da Copa foi alvo de alguma contestação na Justiça, mas a frustração do legado não é apenas caso de política.
Em Cuiabá, por exemplo, o esqueleto de projetos até hoje não entregues rasgam a paisagem da capital mato-grossense. Na Arena Pantanal, abandonada e com necessidades de reforma, estudantes de uma escola estadual começaram a ter aula nos camarotes do complexo esportivo. O espaço é considerado o primeiro estádio-escola do Brasil – uma escola que custou R$ 700 milhões, recurso suficiente para construir 175 unidades de ensino. A arena segue longe dos principais eventos esportivos do país – o Luverdense, principal time do estado, é um dos lanternas da Série B.
Assim como Cuiabá, cidades distantes da elite do futebol sofreram com uma decisão recente da CBF que proibiu os times grandes de mandarem seus jogos fora de seus estados de origem, algo comum até 2016. Era uma forma de movimentar as arenas construídas para a Copa.
Uma das prejudicadas foi a Arena da Amazônia, em Manaus, que fechou 2016 com um rombo de R$ 6 milhões. Clássico elefante branco pós-Copa, a arena rendeu à construtora Andrade Gutierrez uma condenação por dano moral coletivo de R$ 5 milhões por irregularidades trabalhistas. Segundo o Ministério Público do Trabalho no Amazonas, a empreiteira descumpriu 63 de 64 normas de proteção à saúde e segurança dos trabalhadores nas obras, que registraram três mortes.
Em sua delação premiada, um ex-executivo da Odebrecht relatou a existência de um acordo entre a empreiteira e a Andrade Gutierrez para combinar valores da licitação. A arena custou R$ 650 milhões e também recebeu quatro jogos da Copa.
Palco dos 7 a 1, o Mineirão, em Belo Horizonte, também é alvo de investigação do Ministério Público de Minas Gerais. De acordo com o UOL Esporte, as empreiteiras contratadas para reformar e administrar o estádio desviaram mais de R$ 35 milhões dos cofres públicos.
Em 2012, o hoje senador afastado Aécio Neves (PSDB-MG), denunciado por corrupção e obstrução da Justiça, visitou as obras do estádio, iniciadas em seu governo, e celebrou: “Essa obra é uma demonstração da eficiência do setor privado mineiro e de um governo que planeja e entrega”.
A celebração serviu como agouro e o estádio virou sinônimo de tragédia. Após o chamado “Mineiraço”, o comando da seleção brasileira trocou o técnico Luiz Felipe Scolari por Dunga. A equipe seguiu passando vergonha dentro de campo, com eliminações precoces e futebol pouco vistoso, enquanto seus dirigentes e ex-dirigentes enfrentavam acusações diversas fora das quatro linhas. Quem era detido no país da Copa, porém, eram os manifestantes que protestavam contra os gastos para o Mundial.
Dilma Rousseff, que chegou a defender o uso do Exército nos atos anti-Copa, foi reeleita naquele ano, mas foi retirada do cargo após a perda de apoio no Congresso e da popularidade entre eleitores, irritados com a crise econômica e a avalanche de investigações da Lava Jato sobre seu governo e aliados. Em seu lugar assumiu Michel Temer.
Ao menos até a chegada de Tite ao comando da seleção, qualquer semelhança entre as agruras políticas e esportivas brasileiras, sobretudo nos canteiros de obras nas 12 sedes, é mera coincidência.
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