“O museu me decepcionou e saber disso me causa repulsa”. A surpresa da mineira Margarete Schmidt ao visitar o Museu do Amanhã, na zona portuária do Rio de Janeiro, se deu quando foi informada de que a região – conhecida como “Pequena África” – foi a porta de entrada de centenas de milhares de pessoas escravizadas até o fim de 1830 . “Fiquei enojada. Não dá para imaginar a situação de vida dessas pessoas”, disse estarrecida.
As informações sobre a região não foram encontradas no Museu do Amanhã, que é focado em ciências e “possíveis caminhos para os próximos dos próximos 50 anos”, mas no Museu do Ontem, um aplicativo criado pela Agência Pública que ajuda os usuários a descobrirem histórias escondidas no centro do Rio.
O app segue uma lógica parecida com a do Pokémon Go, uma vez que permite uma interação do usuário com o espaço onde a história foi feita. Uma das opções para quem estiver na região é explorar o porto a pé, guiado pelo mapa atual ou por um de 1830, redesenhado pela artista plástica Juliana Russo. O aplicativo mostra os pontos turísticos e traz um compilado de reportagens sobre fatos pouco conhecidos. É possível, por exemplo, ouvir anúncios de negociação de escravos publicados nos jornais do Rio à época, narrados na voz da cantora Anelis Assumpção, ou até mesmo trechos do livro 1808, do jornalista Laurentino Gomes.
São 160 pontos mapeados e distribuídos em cinco tours temáticos: Terror, Samba, Fantasmas do Centro, Corrupção e História do Brasil. O tour do Terror se desenvolve a poucos metros do Boulevard Olímpico – onde turistas e moradores do Rio aproveitavam o “clima olímpico” durante os Jogos de 2016. Com o aplicativo, o usuário se depara no local com a deprimente história dos “Tigres”, como eram conhecidos os escravos na época. O áudio é angustiante:
“A urina e as fezes dos moradores recolhidas durante a noite eram transportadas de manhã para serem despejadas no mar por escravos que carregavam grandes tonéis de esgoto nas costas. Durante o percurso, parte do conteúdo, repleto de amônia e uréia, caía sobre a pele e com o passar do tempo deixava listras brancas sobre as costas negras. Por isso, estes escravos eram conhecidos como ‘Tigres’.”
Os “Tigres” continuaram em atividade na região até 1860. Para Margareth, o aplicativo faz a pessoa sentir o cheiro, a dor do “Tigre” e o olhar de repulsa dos transeuntes. “O problema é que o primeiro que ouvir poderá contraindicar [o app] a terceiros, pois é pesado. Muitos podem negligenciar, pois é mais fácil que encarar a história”, pondera.
Claro, a história da escravidão não é algo agradável. Mas negá-la não a faz desaparecer. Para a advogada Thais Pinhata, que estuda temas relacionados à negritude e já visitou a zona portuária mais de uma vez, “por maior que seja a cidade, ela ainda carrega um ‘quê’ de provinciana”. “São as mesmas famílias, ocupando os mesmos espaços e se vangloriando de fortunas e feitos que saem desse período de império/colônia, mas que se forem pensados a fundo, terão de ser vistos também sob outras perspectivas, como a escravização. É fácil dizer que o avô construiu esse ou aquele prédio, que fulano trouxe a art deco para o centro, difícil é dizer o custo que isso teve para quem vivia ali”, disse.
Em abril, Thais participou do lançamento de outro roteiro com propósito semelhante ao proposto pelo do Museu do Ontem. O “Pequena África” faz parte do aplicativo desenvolvido pelo projeto “Passados Presentes – turismo de memória da escravidão no Brasil”, da Universidade Federal Fluminense. O roteiro oferecido também busca difundir a memória da escravidão no Rio, especialmente as dos quilombos.
“Eu sabia da existência do mercado de escravos aqui, sabia que tinha alto volume de pessoas. Mas, quando estive com as pessoas que desenvolveram o aplicativo e elas mostraram a quantidade de quarteirões que isso ocupava, me assustei muito. Imagina quem nem para e pensa sobre isso. Falar de espaços faz com que tenhamos que falar de temas mais profundos”, reitera Thais sobre o porquê da escolha de se priorizar o Amanhã em detrimento do Ontem.
Os mercados de escravos tomavam conta da região portuária do Rio. No entanto, até 2011, isso era desconhecido. A área a que a advogada se refere tem quase um quilômetro de extensão. Sai do Cais do Valongo – maior porto negreiro das américas, onde mais de 700 mil negros escravizados aportaram a partir do século 18 –, passa pelo Museu de Arte do Rio (Antigo Palacete Dom João VI) e sobre o Túnel Rio 450 Anos, inaugurado em março de 2015.
São locais que fazem parte do conjunto de obras realizadas no Porto Maravilha, “concebido para a recuperação da infraestrutura urbana, dos transportes, do meio ambiente e dos patrimônios histórico e cultural da Região Portuária“. Parece que a prefeitura do Rio “esqueceu” a história africana ao construir o complexo sobre os milhares de ossos de escravos traficados, dizem os historiadores.
Mas o Museu do Ontem foi desenvolvido para resgatar a história. Por isso, quando o usuário chega no Largo de São Francisco da Prainha, é notificado que ali havia um dos mercados de escravos da região do Valongo. Era ali que, de acordo com o Passado Presente, provavelmente se situava o barracão pintado pelo artista alemão Johann Moritz Rugendas na década de 1820, já que a torre ao fundo é identificada como a da Igreja da Venerável Ordem Terceiro de São Francisco da Penitência, que ainda se pode avistar do local.
Um Hoje esvaziado
A região portuária e as pomposas obras do Boulevard Olímpico, Túnel Rio 450 e Museu do Amanhã também são cenário de outra história no Rio, a a da corrupção. A região abriga a maior parceria público-privada do país, feita em 2009 para o desenvolvimento do Porto Maravilha, como foi denominada a revitalização da zona portuária. O conjunto de obras aparece nas planilhas de contabilidade de corrupção da empreiteira Odebrecht, e foi citada Operação Xepa, da Polícia Federal, como uma das fontes de pagamento de propina a políticos. A revitalização custou R$ 8,2 bilhões e foi anunciado como um dos legados da Rio 2016. Além da Odebrecht, a Carioca Engenharia e OAS também participaram das obras na região. As duas também são investigadas na Operação Lava Jato.
O “Tour da Corrupção” também está disponível no aplicativo com imagens e reportagens. Para descobrir os caminhos do dinheiro desviado, o usuário precisa de uma hora. Já o “Tour História Brasil”, que demanda duas horas de caminhada, aborda a história da região desde a chegada da família real. No “Tour do Samba”, o usuário descobre, em uma hora, os encantos da casa da Tia Ciata, do Afoxé Filhos de Gandhi, da Pedra do Sal entre outros outros locais onde o samba se desenvolveu na cidade. Porque afinal, a história dos negros não se resume a pilhagens e escravidão. É também a riqueza de nossa cultura.
O Museu do Amanhã promete “uma narrativa sobre como poderemos viver e moldar os próximos 50 anos”, “para ampliar nosso conhecimento e transformar nosso modo de pensar e agir”. A pergunta que fica é quase retórica: Como planejar o amanhã desconsiderando o ontem?
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