Na votação na CCJ sobre o parecer que pedia admissibilidade da denúncia contra Michel Temer, a sessão de discursos dos deputados começa com o voto de Paulo Maluf (PP-SP) que apresenta o presidente como “um homem honesto, probo, correto e decente”. Mas quem conhece Paulo Salim Maluf sabe que sua fala seria constrangedora em qualquer lugar do mundo onde a política fosse levada a sério.
O deputado Paulo Maluf, que já foi condenado à prisão na França e figurou na lista da interpol, diz que Temer é homem "honesto e probo". pic.twitter.com/CytvXPLWn8
— The Intercept Brasil (@TheInterceptBr) July 12, 2017
A era do cinismo pelo qual estamos passando permite que alguém como o ex-prefeito de São Paulo, condenado por lavagem de dinheiro pela corte francesa, torne isso completamente irrelevante e invisível. E dita as regras numa comissão que traz no nome as palavras constituição e justiça.
A condenação de Lula por Sérgio Moro, criou o ambiente propício para o tipo de disputa narrativa que se tornou o grande embate na política brasileira atual. Lula é um símbolo, é impossível negar isso, e, como todo símbolo, seu sentido, ou o sentido de tudo que diz respeito a ele, será, inevitavelmente, disputado, concorrido, requerido, reivindicado permanentemente.
Cinismo generalizado
De um lado, falando sobre Lula, a senadora Ana Amélia (PP-RS) dizia que “agora, felizmente, estamos vendo que a lei é igual para todos, porque antes só pobres, ladrões de galinha ou negros iam para a cadeia”. É o cinismo de quem sabe que uma frase como essa nem deveria ser pronunciada, porque é um escárnio diante das diversas histórias cotidianas da seletividade da justiça e do sistema penal brasileiro. Ana Amélia, crítica dos excessivos cargos comissionados do governo do seu estado, mas que foi servidora do Senado enquanto era diretora da RBS, na década de 1980.
O senador Paulo Bauer (PSDB-SC) fez questão de ressaltar que “ninguém está acima da lei, que foi feita para ser cumprida por todos os cidadãos brasileiros”. Ele que, acima da lei, nos custou quase 150 mil reais, alugando carros de luxo para uso particular, para se deslocar no seu estado, Santa Catarina.
Por outro lado, o senador Carlos Zarattini, líder do PT na Câmara, chama atenção para o fato de a condenação de Lula ter de ser reprovada por todos os brasileiros, porque ela atropela a democracia e os processos jurídicos. Cinismo e desonestidade é associar a prisão de Lula a um atropelo da democracia, mas não reconhecer a violação da democracia com a sanção, pelo governo Dilma, da chamada Lei Antiterrorismo em 2016.
À revelia dos vetos feitos por Dilma, a lei foi o balde de água fria definitivo em grande parte da herança do junho de 2013. Aliás, em junho de 2013, as manifestações foram, sobretudo no Rio e em São Paulo, reprimidas com força desproporcional, com diversas violações de direitos.
É cínico não reconhecer o atropelo da democracia na assinatura de uma portaria casuística como a 3.461, em 2013, feita por Celso Amorim, à época ministro da Defesa, para garantir a Lei e a Ordem: leia-se, reprimir, com o Exército, todo levante popular contra a maneira que os grandes eventos foram pensados (e pagos) para o Brasil, com a Copa das Confederações, Copa do Mundo e Olimpíadas/Paraolimpíadas.
O cinismo de Moro
Tomados pelo cinismo que inspira e pauta as relações na política no país, nada mais coerente que a construção como herói de uma figura como Sérgio Moro. É ele, hoje, a principal referência de ética e honestidade, à revelia do cinismo com o qual age, mas envolto em uma áurea de imparcialidade inquebrável.
Celebrado pela elite política conservadora que tem nitidamente asco da política de ascensão dos pobres empreendida pela gestão de Lula e celebrado pela elite midiática que não quer mesmo ver o petista novamente no centro do poder, Moro exerce bem sua aparente capacidade de revestir frieza e cinismo de serenidade.
Lula, se preso preventivamente, só se fortalece como herói, e Moro corre o risco de se afundar na imagem de juiz a serviço de uma torcida, em grande parte, rica e conservadora.
Faz isso quando diz que não decretou prisão preventiva de Lula por prudência, e para evitar “certos traumas”, por se tratar de um ex-presidente da república. Envolto no ambiente do cinismo que envolve a todos, Moro sabe que as provas para a condenação de Lula são frágeis, e as provas produzidas pelo MPF não lhe dão a garantia de que sua decisão não passe na revisão de instância superior.
Neste caso, Lula, preso preventivamente, só se fortalece como herói, e Moro corre o risco de se afundar na imagem de juiz a serviço de uma torcida, em grande parte, rica e conservadora. Dizer “não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você” é o cinismo típico de quem confunde-se com a própria lei, e que, portanto, está ele mesmo acima de qualquer um.
O cinismo de Renan
E o que diríamos ao ver Renan Calheiros rompendo publicamente com Temer, acusando o governo e criticando a reforma trabalhista. Assim como no caso de Maluf, chega a ser constrangedor sob a luz da troca de carinhos entre os dois políticos, em novembro de 2016, portanto menos de um ano atrás, em que Renan prometia sua fidelidade a Temer, colocando o Senado aos seus serviços para votações, disposto inclusive a cancelar as férias.
Logo ele, que votou contra a PEC do Trabalho Escravo, em 2012. Só o cinismo explica.
Mas no nosso universo cínico, Renan Calheiros critica a reforma trabalhista como um homem preocupado com o direito dos trabalhadores pobres, assim como o senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) critica o governo e a reforma da previdência. Logo ele, que votou contra a PEC do Trabalho Escravo, em 2012. Só o cinismo explica.
Também soa muito cínico o PSDB dissimular uma disputa interna, como se fosse quase uma crise de consciência, sobre deixar o governo ou ficar com o governo, alegando como única questão dessa crise a falta de ética da gestão Temer. Depois de ser marcado por uma geração de políticos de relevância – José Gregori, Mário Covas, Sergio Motta, Celso Lafer, além do próprio Fernando Henrique Cardoso – o PSDB alcança um momento medíocre de sua história, mendigando espaço na cúpula do poder, em crise internamente porque não consegue ocupar e manter este espaço.
É este cinismo que sustenta cada declaração da cúpula do PSDB
O ninho tucano vê a queda política do senador Aécio Neves, sua outrora principal estrela e aposta, enquanto vê agora sua única força política para cargos majoritários, ser possível na figura de um ambíguo e outsider João Doria, prefeito de São Paulo. É o partido cuja metade da bancada fecha com o senador Romero Jucá (PMDB-RR) para blindar membros da linha sucessória da presidência e volta atrás vergonhosamente diante da repercussão negativa.
É este cinismo que sustenta cada declaração da cúpula do PSDB, simulando unidade e compromisso com os interesses do Brasil, enquanto tudo o que querem é que seus poderes e privilégios não percam espaço.
O fato é que, politicamente, o Brasil parece se encontrar no seu momento mais cínico. E o seu momento mais cínico é também o seu momento mais frustrante e diametralmente oposto ao que junho de 2013 esboçou pautar, antes de ser também capitulado por uma pauta cínica anticorrupção.
O que temos no Legislativo é uma coleção de correlações de forças, onde tudo se torna imprevisível, toda trama é obscura, a rua está distante, e a democracia é só recurso narrativo impregnado de muito cinismo.
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