São muitas as expectativas em relação à 15ª FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) que, nesta edição homenageia Lima Barreto e acontece de 26 a 30 de julho, no litoral do Rio de Janeiro. Já estive em cinco edições anteriores e acompanhei com grande interesse a primeira delas, em 2003, quando estava começando a escrever. Até então, nenhuma outra feira literária tinha recebido tanta atenção da imprensa, dando visibilidade a escritores e escritoras nacionais e trazendo nomes de destaque no cenário internacional, como Don DeLillo e o historiador Eric Hobsbawn. De lá pra cá, muito coisa mudou – principalmente o fato de ter partido de uma edição em que, entre os 25 convidados, nenhum era negro e apenas três eram mulheres.
Eu poderia estar não prestando atenção, mas não me lembro de grandes manifestações apontando para isso à época. É bom saber que a FLIP se repensou, ao mesmo tempo em que é triste que tenha levado 15 anos e apenas depois da pressões de ações como a do Leia Mulheres, que questionou o número de escritoras na FLIP 2014, e o evento “Vista nossa palavra, Flip 2016, do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras-UFRJ, que lançou a carta da professora e pesquisadora Giovana Xavier, apontando a ausência de escritoras negras na FLIP 2016.
Grande parte da mudança deve ser creditada à nova curadora, a jornalista Josélia Aguiar, que assumiu reconhecendo a importância de, sendo o evento de referência, a FLIP ter a responsabilidade de acompanhar os debates e as pautas que são, não apenas brasileiras, mas mundiais. Resultado: a FLIP 2017 terá 46 convidados: 24 são mulheres e 30% são negros/as.
Para mudar, para buscar alternativas dentro de um mercado que está sempre discutindo a própria crise, é preciso querer e insistir.
Uma das principais justificativas, quando apontamos a ausência de mulheres, negros e indígenas em eventos literários é a meritocracia, como se não houvesse qualidade fora das esferas mais visíveis em que recaem as escolhas fáceis e midiáticas: “não olhamos cor, nem gênero, mas apenas a qualidade da obra dos convidados”.
Não é esse o questionamento, e meritocracia é palavra que, em tempos de lava-jatos e afins, deveria ser banida da cena brasileira, contaminada pelas relações de apadrinhamento e de negociatas com a finalidade de se manter o status quo.
Curadoria que se vale do conceito de meritocracia para justificar a ignorância frente ao novo, que na maioria das vezes nem novo é, mas apenas algo que esteve fora de seu radar, reconhece a própria incapacidade de acompanhar o mercado (e o mundo) como um todo.
“Esta bibliografia de vocês”.
Lembro-me, por exemplo, da curadoria da FLIP 2016 solicitando, em mesa realizada no Espaço Itaú Cultural de Literatura, “esta bibliografia de vocês”, como se a literatura produzida por escritores e escritoras negras fosse algo em separado da literatura brasileira, como se tivéssemos a obrigação de realizar um trabalho para o qual ele estava sendo pago para fazer.
Infelizmente, esta é uma situação bastante comum no mercado literário. Assim como uma outra ideia também bastante equivocada, também manifesta pela curadoria da FLIP 2016: “O país ainda está democratizando seu universo de leitura. A universidade brasileira, há pouco tempo, começou a ter uma nova cara, e acho que esse movimento vai chegar na Flip – na plateia da Flip. Mas é um processo em que temos de trabalhar juntos para que seja superado.”
O que se está tentando dizer aqui é que não há mercado para escritores e escritoras negras (novamente, considerando-o um mercado em separado) e que negros ainda não se interessam por literatura, e por isso, não frequentavam a FLIP. Ou que, pior ainda, leitores brancos não se interessariam pela literatura produzida por escritores ou escritoras negros/as. Me parece óbvio que essa é uma explicação bastante simplista, que desconsidera, por exemplo, o fator econômico, que impede muitos de frequentar Paraty na época do evento, com seus restaurantes e suas pousadas a preços quase proibitivos. Mas é ignorar também que o público negro, ao se sentir representado, ao ver reconhecido a trabalho e a produção de escritoras e escritores nos quais se sentem representados, comparecerão; não o contrário. Para mudar, para buscar alternativas dentro de um mercado que está sempre discutindo a própria crise, é preciso querer e insistir.
Outra justificativa simplista sempre usada por curadorias literárias Brasil afora é que convites foram feitos, mas não foram aceitos. É preciso saber que mulheres, em algumas situações, precisam pensar em algo mais do que apenas se prepararem para a uma viagem visando participar de um evento literário. Dizem que existe, embora eu não conheça, escritores homens que, antes de aceitarem um convite para viajar a trabalho, ausentando-se de casa por vários dias, consultem esposas para saber se elas podem ficar responsáveis, sozinhas, pelo cuidado com a casa e os filhos que pertencem a ambos. Conheço várias escritoras que, antes de poderem confirmar uma viagem, precisam pensar em arranjos e negociações com companheiros, ex-companheiros, familiares e empregadores e, muitas vezes, a possibilidade de aceitação não depende apenas delas.
Diante de uma recusa, o que a grande maioria das curadorias faz é substituí-las por convidados homens. Como a participação em eventos é completar ao trabalho da escrita, tanto em termos financeiros quanto de divulgação, o que fazem é contribuir para a perpetuação da situação de desigualdade das condições de trabalho oferecidas a uns e outras.
Estamos cansados de sermos convidados apenas para aquelas mesas nas quais são tratados assuntos de “militância negra”.
A justificativa de que escritores e escritoras negras também recusam certas participações também devem ser analisadas com mais atenção. Estamos cansados de sermos convidados apenas para aquelas mesas nas quais são tratados assuntos de “militância negra”, nas quais raramente temos a oportunidade de falar sobre o nosso trabalho, nas quais somos perguntados apenas sobre assuntos considerados “assuntos de negros”, como se tais assuntos não fizessem parte do que é simplesmente humano, sendo, portanto, parte do que deveria ser matéria de uma literatura universal.
Muitas vezes recusamos certos convites porque sabemos que estaremos uma mesa “à parte” da programação, sub-aproveitados e usados para que curadores e organizadores se protejam da acusação de não convidar negros ou mulheres. Queremos também que pensem em nós como entrevistadores, mediadores, curadores e afins, porque acreditamos que podemos colocar em debate assuntos e pontos de vista que, com certeza, enriqueceriam os eventos.
Portanto, minhas expectativas não são somente para um evento mais plural e interessante quanto aos convidados e ao público, mas também para que, como aconteceu logo no seu início, esta FLIP sirva de modelo e inspiração para os vários outros eventos literários Brasil afora. Que venham, cada vez mais, boas leituras, boas conversas, bons encontros e boas descobertas para todos nós! Axé!
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?