Com fundamentos sólidos na cidade-problema-quintal-do-PMDB, estruturado por uma profunda crise econômica e construído com papelão e cobertores velhos, um verdadeiro povoado (com mais habitantes do que 3.187 dos 5.570 municípios brasileiros) desliza sobre carrinhos de supermercado e carroças pela face do Rio.
Num monta-e-desmonta diário, entre um ‘garimpo’ (gíria para o ato de catar coisas do lixo) e outro, cerca de 14.279 pessoas sobrevivem nas ruas de uma das cidades mais desiguais-sangrentas de que se tem notícia.
Enquanto o novo prefeito Crivella afirma que “precisamos ir para as ruas em parceria com as igrejas para mudar este cenário”, estimulando um suposto processo de caridade em detrimento de políticas públicas eficazes, os abrigos continuam com um déficit de mais de 12 mil vagas.
Não me esqueço de quando – nas preliminares da Copa do Mundo – Dona Valéria, que acabara de ser removida com seus filhos e ter sua casa na favela Metrô-Mangueira demolida, me dizia que em “abrigo, eles trata nóis como bicho” e por isso preferia permanecer na rua com suas crianças até encontrar outra morada.
Neste ensaio, acompanhei pessoas em situação de rua que encontraram no garimpo uma forma de subsistência. Ao contrário dos catadores de materiais recicláveis, estas pessoas percorrem os bairros nobres da cidades em busca dos mais diversos itens e os disponibilizam para venda em brechós também conhecidos como “shopping chão”.
Há “lojas” especializadas em roupas, carregadores e baterias de celulares, discos e CDs, fotos antigas, livros, pinturas, revistas playboy, eletrônicos e tudo mais que possa soar descartável ao mercado consumidor carioca.
Durante nossas conversas, fui apresentado ao conceito/gíria “rua escura”, representando um caminho de vida árduo, que leva à degradação pessoal e pode ser causado por solidão, depressão, desespero, fome, sentimento de falta de dignidade, vícios… Para muitos que vivem na rua e precisam ganhar um dia de cada vez com o que foi jogado no lixo, manter-se longe da rua escura pode ser uma missão penosa. Por isso, o ensaio foi batizado “Tomara que amanheça”.
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