Se ouvissem especialistas no tema, a reforma política em gestação hoje na Câmara teria um de seus pilares reprovado praticamente por unanimidade. Em nota divulgada na última terça (18), com cerca de 280 assinaturas, a Associação Brasileira de Ciência Política manifestou posição contrária à adoção do modelo de sistema eleitoral denominado “distritão”.
“A introdução do distritão nas eleições para a Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores representará um verdadeiro retrocesso institucional. (…)Além disso, diferentemente do atual modelo, milhões de votos serão jogados fora, visto que somente serão válidos os votos dos eleitos”, diz a nota.
Entre os retrocessos apontados pelos especialistas estão o possível aumento dos custos das campanhas eleitorais, o renascimento de oligarquias regionais e a diminuição da qualidade da representação política.
“Se a necessidade de uma reforma política surge do diagnóstico de que os partidos são frágeis, a adoção do distritão parece ter como objetivo fragilizá-los ainda mais, interessando a certos segmentos da classe política profissional, em particular àqueles com maior facilidade para dispor de vultosos recursos para suas campanhas.”
Uma das signatárias, a professora Andréa Freitas, do Departamento de Ciência Política da Unicamp e coordenadora do Núcleo de Instituições Políticas e Eleições do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), diz não ver qualquer vantagem na mudança do atual sistema proporcional, no qual os deputados e vereadores são eleitos a partir da votação dos candidatos e dos partidos, para o distrital, onde só seria escolhido o postulante com o maior número de votos em determinada localidade.
“É uma das propostas mais assustadoras que já vi”
Somada à possibilidade de os candidatos se financiarem por um fundo partidário – poeticamente chamado de Fundo de Financiamento da Democracia, que pode passar de R$ 3 bilhões – e às doações de pessoas físicas, a proposta vai de encontro, segundo ela, aos princípios que deveriam ser fortalecidos no sistema atual. Por exemplo, a reaproximação entre representantes e representados e o fortalecimento dos partidos.
“É uma das propostas mais assustadoras que já vi”, resume Andréa Freitas. “No sistema distrital, a pessoa faz campanha para ela mesma e tem a mesma chance de um quadro partidário tradicional. Isso vai enfraquecer ao máximo o partido”, diz.
No distritão, quem tem mais recursos e quem tem mais popularidade (como profissionais da mídia, lideranças religiosas, que já falam com multidões) tem mais chances de ser eleito, o que certamente enfraquece a representação de mulheres, negros e outras minorias – eleitos, hoje, graças à distribuição de votos pelos estados ou cidades. (Em alguns países, a experiência com o sistema transformou criminosos locais, com certo controle sobre determinados bairros, em candidatos ainda mais competitivos).
Tendo de obter mais votos do que os concorrentes no mesmo distrito, nomes com bandeiras específicas, como o combate à homofobia, teriam ainda menos chances de obter espaço em um Congresso majoritariamente formado por homens, brancos, na faixa de 50 anos, com formação superior, empresários e donos de patrimônio acima de R$ 1 milhão. Em outras palavras, as mudanças serviriam para perpetuar a chamada democracia-oligárquica, como pontuou, em entrevista ao Nexo, o cientista político e professor da FGV-SP Claudio Couto, também signatário da carta de repúdio ao distritão.
Vale lembrar que, atualmente, o Brasil possui uma das mais baixas taxas do mundo de presença de mulheres no Congresso. Das 513 cadeiras na Câmara, apenas 9,9% são ocupadas por mulheres, média abaixo de países do Oriente Médio, por exemplo. Negros declarados, por sua vez, são 3%.
Modelo beneficia candidatos ricos
O sistema em análise tende a ampliar a influência do poder econômico nas eleições. Isso poderia ser corrigido com a adoção do financiamento exclusivamente público das campanhas. No entanto, a brecha para doação de pessoas físicas beneficiaria justamente quem tem condições de investir nas próprias campanhas.
Um dos pontos da reforma é a possibilidade de doar para cada cargo em disputa (serão cinco em 2018) até 10% dos rendimentos do ano anterior, ou 10 salários mínimos. Ou seja: a competição eleitoral acompanharia as discrepâncias econômicas de um país notadamente desigual.
Ou seja: a competição eleitoral acompanharia as discrepâncias econômicas de um país notadamente desigual.
A professora da Unicamp diz não ser favorável à possibilidade de o Estado bancar campanhas políticas. “Mas, em relação ao que está sendo proposto, prefiro o financiamento exclusivo público. Se não é o pior dos mundos, com alta influência do poder econômico e um alto valor de dinheiro do Estado que poderia ser usado em outros projetos”, diz.
Para ela, um mecanismo de aproximação entre candidatos e a sociedade é a adoção de um modelo com financiamento privado de baixo valor nominal. Por exemplo: se os recursos fossem limitados a R$ 10 mil, tanto para megaempresas como para qualquer cidadão, o peso da influência das corporações seria reduzido.
Isso incentivaria os partidos a procurar a sociedade e os indivíduos dispostos a financiar, literalmente, suas ideias, o que estreitaria o vínculo entre eles. “Ninguém vai financiar a campanha de quem não acredita.”
Hoje, no entanto, o potencial de doação da maioria dos eleitores é ínfimo perto, por exemplo, de um banqueiro.
No caso do financiamento público, a especialista aponta ainda para o risco de, no sistema distrital e com acesso a recursos públicos, as decisões sobre quais candidatos serão privilegiados se concentre nas mãos de poucos dirigentes.
“Quem vai controlar o recurso no interior do partido? O que vai determinar quem vai ter mais visibilidade, mais recursos? É muito ruim que a ideia de um fundo partidário venha sem nenhuma regra de distribuição no interior dos partidos. Vai passar pelos diretórios? Quantas mulheres ou negros terão acesso a esses recursos?”
“Porque é ruim mesmo. Não é a reforma que acho ideal”
Uma crítica recorrente do modelo atual é a influência dos chamados puxadores de voto na eleição de deputados e vereadores – candidatos que excedem o coeficiente eleitoral, e ajudam a eleger outros postulantes em votos suficientes. Freitas aponta, no entanto, que contam-se nos dedos os puxadores de voto na Câmara, e que esta é uma questão menor diante do quadro.
“Quem foi eleito vem de um conjunto de votos que o partido recebeu. Não só de quem está acima, mas também de quem está embaixo”, afirma.
O que dificulta a relação, aponta ela, não é o sistema proporcional, mas a possibilidade de coligações entre partidos, que faz com que, atualmente, o voto em candidatos como Tiririca, que pode ser de protesto ou de brincadeira, eleja postulantes de outra legenda e com outras ideias.
“Se não tivesse coligações, o eleitor saberia que, se votar em um candidato do PT, o voto dele ajudaria a eleger alguém do partido.”
Para a especialista, as mudanças no sistema político poderiam ser focadas em aspectos pontuais, mas de grande impacto na representação. Um deles, além do fim das coligações, é a adoção da cláusula de desempenho, que exigiria um número mínimo de votos para as legendas terem acesso, por exemplo, ao fundo partidário.
“Mais do que diminuir o número de partidos, o que a cláusula de desempenho propõe, em teoria, é o direcionamento de recursos do Estado para os partidos e também o tempo de TV. Se o partido não alcança, não tem acesso a esses recursos. O filtro será sempre o eleitor.”
Este filtro, porém, tende a se distanciar ainda mais de seus representados nas próximas eleições. Questionado, no fim de semana, sobre os motivos de tantas críticas ao projeto, o relator da reforma política na Câmara, deputado Vicente Cândido (PT-SP), respondeu com uma espécie de surto de sincericído: “Porque é ruim mesmo. Não é a reforma que acho ideal, mas também não estou ferindo nenhum princípio ético-moral.”
No fim de 2015, antes de assistirem à aprovação de reformas impopulares, como a trabalhista, ou à sessão que livrou o presidente mais mal avaliado da história de ser investigado por corrupção pelo Supremo, 53% dos brasileiros diziam considerar o trabalho dos parlamentares ruim ou péssimo, índice mais alto desde o escândalo dos anões do orçamento, segundo o Datafolha. Os números sobre a atual legislatura ajudam a explicar a desconfiança com as mudanças das regras propostas por eles mesmos.
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