A Câmara deve definir nesta terça (22) como seus integrantes serão escolhidos nas próximas eleições e o grau de poder que o eleitor terá durante e depois das votações. Mas os deputados já optaram por seguir um caminho de aprofundamento do sistema atual e deixaram adormecidas na gaveta propostas que promoveriam uma mudança mais radical de regras para escolha e fiscalização de representantes no Legislativo e no Executivo.
A comissão especial formada na Câmara para discutir a reforma política e eleitoral – presidida pelo “Bitelo” e relatada pelo “Palmas” da planilha de propinas da Odebrecht – realizou 11 reuniões de debates e audiências públicas. Em apenas uma delas, estava na pauta discussão sobre a criação de um novo marco legal para participação popular via plebiscitos, referendos e projetos de lei de iniciativa da sociedade. Um projeto de lei nesse sentido passou a tramitar a partir da comissão, prevendo, como novidade principal, a adoção de coleta eletrônica de assinaturas para apresentação de PLs de iniciativa popular.
Mas não há qualquer alteração sobre a questão eleitoral. Nesse ponto, a grande “inovação” política vinda da comissão foi o chamado “distritão”. Sistema adotado apenas no Afeganistão, Kuwait, Emirados Árabes Unidos,Vanuatu e nas minúsculas Ilhas Pitcairn, o modelo favorece candidatos já conhecidos e tende a reduzir o número de opções por partido, de forma que não haja dispersão de votos e que a votação se concentre em nomes percebidos internamente pelos partidos como mais fortes.
Poderia ser diferente, e não é por falta de ideias.
A alternativa não é também grandes coisas: manter tudo como está por pelo menos mais duas eleições. Alterações um pouco mais substanciais, como a extinção dos cargos de vice e dos suplentes de senadores, já foram rejeitadas há duas semanas na Comissão Especial da Reforma Política.
Poderia ser diferente, e não é por falta de ideias. O Senado e a Câmara têm nas gavetas de suas comissões propostas que têm como foco a participação da população no processo político e eleitoral, mas que foram ignoradas na atual discussão, com apoio decisivo do governo Michel Temer. São propostas de emendas à Constituição que estão totalmente paralisadas no Congresso há mais de um ano.
Serviço de apoio ao eleitor insatisfeito
Há quatro propostas de emendas em tramitação na Câmara e no Senado para a instituição do chamado recall, em que um determinado percentual de eleitores teria a possibilidade de pedir a revogação do mandato de ocupantes de cargo eletivo.
Assim como os mais conhecidos plebiscito e referendo, o recall é um instrumento de participação direta, com a diferença de que é voltado especificamente para revogação de mandatos.
A proposta mais tecnicamente bem formulada é da deputada Renata Abreu (PODE/SP), que define que qualquer político pode ser removido do cargo a partir do segundo ano de mandato caso 5% dos eleitores da circunscrição onde ele se elegeu apresentem um pedido nesse sentido à Justiça Eleitoral. Esse pedido somente poderia acontecer a partir do segundo ano de mandato. Com as assinaturas validadas, um plebiscito seria convocado em 90 dias, para que a revogação fosse confirmada ou rejeitada. A proposta tramita junto com outra parecida, mas bem mais conciliatória, em que o pedido de recall vem do Legislativo, e não do eleitor.
As propostas de criação do mecanismo no Brasil estão paradas desde junho de 2016 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, ainda aguardando a designação de um relator. O fato de não haver um relator significa a impossibilidade de eventuais aperfeiçoamentos em uma proposta inicial tecnicamente falha. Na discussão normal de uma medida legislativa, audiências públicas com participação de especialistas também são de praxe, trazendo visões variadas sobre o assunto, que podem ajudar a formar a convicção de parlamentares. Mas nada disso aconteceu em relação ao recall, nem a nenhuma outra dessas propostas que poderiam limitar o raio de poder dos atuais parlamentares.
O responsável por escolher um relator nas propostas que estão na CCJ da Câmara é o deputado Rodrigo Pacheco (PMDB-MG), presidente da comissão e integrante da tropa de choque de sustentação do presidente Michel Temer. Em junho, Pacheco teve uma indicação sua chancelada por Temer, para o comando da estatal Furnas, figurinha fácil no álbum de escândalos das últimas décadas no país. Antes disso, já tinha sido cogitado inclusive para assumir o Ministério da Justiça.
Uma outra PEC, esta no Senado, também propõe a instituição do recall, por iniciativa do senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE). Foi apresentada em 2015 e está pronta para ser votada no plenário. O único problema é que a proposta original foi desfigurada pelo senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), com o apoio da maioria dos senadores que integram a CCJ. Valadares havia proposto, embora de maneira bem superficial, a adoção de um recall amplo, inclusive para senadores e deputados.
O modelo é, evidentemente, polêmico. Caso seja aplicado de forma muito aberta, pode resultar em ações políticas, sem respaldo em nenhum ato irregular.
Em junho deste ano, Anastasia mudou o projeto e definiu que o recall seria válido apenas para o mandato de presidente da República. Ainda assim, caso os eleitores conseguissem juntar as assinaturas necessárias, a decisão final sobre a revogação caberia exclusivamente ao Congresso. Ao apresentar os motivos da mudança, escreveu que, caso o recall original fosse mantido, “poderia gerar grande instabilidade política e jurídica”.
O senador tucano e ex-governador de Minas Gerais não menciona, contudo, que o sistema é adotado há muitas décadas em países desenvolvidos e com democracia bem consolidada, como em determinadas regiões do Canadá e da Suíça e, principalmente, nos Estados Unidos – onde o sistema é adotado nos estados desde 1903. Atualmente, o mecanismo está em vigor em 20 estados, entre eles Califórnia e Illinois. Os americanos, inclusive, lidam com recall praticamente todos os anos, em especial para revogação de mandatos de prefeitos e congressistas estaduais.
O último caso que resultou em perda de mandato ocorreu em 2013, com o recall do presidente do Senado do Colorado (nos EUA, quase todos os estados possuem Legislativos com Câmara e Senado, ao contrário do Brasil, onde os estados têm apenas a Assembleia Legislativa). O senador estadual John Morse, do Partido Democrata, foi removido do cargo por defender medidas que restringiriam o comércio de armas de fogo no estado.
O modelo é, evidentemente, polêmico. Caso seja aplicado de forma muito aberta, pode resultar em ações políticas, sem respaldo em nenhum ato irregular. O último caso registrado no Colorado, é um símbolo disso.
No Brasil, no entanto, não é sequer discutido, o que impede a implementação de limites ao uso do instrumento. A adoção do recall no país foi abertamente defendida em 2013 pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa. “Uma medida como essa tem o efeito muito claro de criar uma identificação entre o eleito e eleitorado, de impor ao eleito responsabilidade para com quem o elegeu”, disse na ocasião.
Na época, o governo estava paralisado e o Congresso acuado com as manifestações de rua. Um gabinete de crise se formou e a então presidente Dilma Rousseff tentou levar à frente uma reforma política e eleitoral que seria baseada inicialmente em um plebiscito para que a população definisse as linhas gerais da reforma. A tentativa de consulta popular sofreu forte resistência de deputados e senadores, que não abriam mão de definir diretamente as novas regras do jogo.
Candidatos sem partido
Um antídoto a esse espírito de autoproteção dos parlamentares em exercício, que dá o tom da atual proposta de reforma política, envolveria a adoção de um sistema eleitoral que permitisse candidaturas independentes, desvinculadas de máquinas partidárias. A proposta também foi defendida por Joaquim Barbosa no calor de 2013 e, neste ano, pela ex-senadora Marina Silva (Rede).
Um deputado de seu partido, João Derly (RS), apresentou uma PEC nesse sentido em julho. É bem detalhada, e prevê que o cidadão possa concorrer caso consiga comprovar, em até oito meses antes das eleições, ter o apoio, dentro da respectiva circunscrição eleitoral, de 0,2% dos eleitores para cargos no Legislativo ou de 0,5% para disputar mandatos no Executivo (prefeito, governador ou presidente da República).
Uma outra proposta sobre candidaturas independentes, bem menos detalhada, já tramitava na Câmara desde 2008. Com isso, as duas passaram a tramitar conjuntamente. Mas a proposta está paralisada há dois anos e meio, já que o deputado Rodrigo Pacheco, aquele mesmo que hoje preside a CCJ e barra a tramitação de outras propostas de reforma, nunca apresentou parecer sobre a PEC.
Parlamentares contrários à adoção dessa possibilidade no Brasil argumentam que isso enfraqueceria os partidos políticos e, consequentemente, a democracia. No entanto, a possibilidade de apresentação de candidaturas independentes em países democráticos, com histórico de forte presença de partidos políticos, é inclusive bem mais comum do que o instrumento de recall. Independentes concorrem em países como Estados Unidos, Espanha, Itália e França – lá inclusive são apelidados de sans étiquette. Emmanuel Macron, recém-eleito presidente francês, era independente até pouco tempo antes da eleição, e acabou criando seu próprio partido.
Brancos e nulos com poder
Outras duas propostas que ampliariam o poder do eleitor nos rumos políticos do país são ainda mais polêmicas. Tratam-se de dois projetos de lei – portanto, com mais facilidade para tramitarem e serem aprovados – que dão força aos votos brancos e nulos. O voto nulo tem crescido a cada eleição no país, mas, legalmente, não tem peso algum, já que não é considerado um voto válido.
Pelas propostas dos deputados João Henrique Caldas (SD-AL) e Cabo Daciolo (PT do B-RJ), caso os votos brancos e nulos somem mais de 50% dos votos numa eleição, um novo pleito deverá ser convocado e os candidatos da disputa anulada não poderiam participar da nova eleição. Essas propostas também caminham juntas e nunca receberam parecer da CCJ da Câmara.
Uma forma de mitigar o peso dos brancos e nulos nas eleições seria a adoção do voto facultativo no país. Essa é outra norma eleitoral difundida em todo o mundo e em diversos países de democracia forte – de novo, o exemplo principal são os Estados Unidos.
Dos países mais desenvolvidos, os únicos que adotam a obrigatoriedade do voto são a Austrália e a Bélgica. No Congresso brasileiro, há duas PECs propondo o fim do voto obrigatório, uma no Senado e outra na Câmara. Ambas estão paradas desde o ano passado, aguardando deliberação de comissão.
Iniciativa popular
Além dos textos propostos que estão parados, há também um projeto de iniciativa popular que vem, desde 2013, tentando arrecadar assinaturas para poder ir ao Congresso. Redigido pela Coalizão Democrática, formada por 114 membros de entidades e movimentos sociais do país — como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) — o texto propõe quatro mudanças que visam aumentar a representação política dos eleitores.
Pela proposta, as eleições para deputados seguiriam proporcionais, mas em dois turnos (no primeiro, o eleitor votaria em uma lista pré-ordenada de candidatos; no segundo, cada eleitor escolheria apenas um candidato). No segundo turno, todos os candidatos deveriam receber a mesma quantia de um fundo de financiamento de campanha.
O projeto de iniciativa popular ainda propõe paridade de gênero na lista pré-ordenada do primeiro turno, destinando 50% das vagas de candidatos para as mulheres, e também um fortalecimento da participação da sociedade na política, permitindo assinaturas eletrônicas para projetos de iniciativa popular e aumentando o poder de plebiscitos e referendos.
Na última atualização da própria Coalizão, já foram arrecadadas 930 mil assinaturas. O projeto precisa de 1,5 milhão para poder virar uma PEC.
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