Não é raro que moradores dos bairros mais policiados dos EUA descrevam os agentes locais como uma “força de ocupação”. A julgar pela origem do treinamento de muitas forças policiais estadunidenses, a descrição não está longe da realidade.
Milhares de agentes de polícia norte-americanos fazem frequentes viagens de treinamento para um dos poucos países em que as forças policiais e o militarismo estão ainda mais intimamente ligados do que nos Estados Unidos: Israel.
Na esteira do 11 de setembro, Israel se valeu das suas décadas de experiência como força de ocupação para criar uma marca de liderança mundial em contraterrorismo. As polícias dos EUA, confiando na expertise do Estado judeu, começaram a participar de programas de intercâmbio patrocinados por uma série de grupos pró-Israel como o AIPAC (Comitê de Assuntos Públicos EUA-Israel), o Instituto Judeu para Questões de Segurança Nacional e a Liga Antidifamação (Anti-Defamation League, ADL). Ao longo dos últimos quinze anos, muitos policiais de alto escalão em âmbito federal, estadual e municipal, oriundos de dezenas de departamentos em todo o país, foram a Israel aprender sobre policiamento com foco em terrorismo.
A grande capacidade de policiamento de Israel, no entanto, é maculada por seu propósito principal: a ocupação. Israel mantém há meio século o domínio militar sobre os territórios palestinos da Margem Ocidental e de Gaza, uma ocupação repleta de abusos. As forças de polícia e de segurança do país praticam frequentes violações aos direitos dos palestinos e dos imigrantes dentro das fronteiras de Israel de 1967.
“Boa parte do policiamento observado e discutido durante essas excursões acontece em um contexto não democrático”, diz Alex Vitale, professor de Sociologia no Brooklyn College e autor de um livro ainda em publicação sobre policiamento global. “Isso envolve policiamento militar, policiamento de controle de fronteira ou policiamento de pessoas em territórios ocupados que não são plenamente sujeitos de direito no sistema jurídico israelense.”
Embora nos anos recentes tenha crescido a atenção sobre a militarização das forças policiais norte-americanas, o que levou a algumas reformas que a administração Trump já reverteu, os programas de intercâmbio policial EUA-Israel prosseguiram sem muito escrutínio público.
Essa semana, uma delegação de agentes de polícia estadunidenses de alto escalão está em Israel para o Seminário Nacional de Contraterrorismo da ADL, que inclui treinamento em tópicos como “liderança em tempos de terror” e “equilibrando a luta contra o crime e o terrorismo”, de acordo com o material fornecido pelo grupo que divulgou a viagem. Mais de 200 executivos de forças policiais de cerca de cem departamentos nos EUA e no exterior, agências de imigração, e até mesmo polícias universitárias já participaram do programa da ADL desde seu lançamento, em 2004.
Dentre os participantes do seminário este ano está o Comandante da Polícia Metropolitana de D.C., Morgan Kane, cuja participação no treinamento rendeu ao departamento uma reprimenda pública pelo membro da Câmara Municipal David Grosso. “O que me preocupa é não estarmos fazendo o suficiente para evitar a militarização da polícia no Distrito de Columbia”, ele escreveu numa carta ao chefe do Departamento de Polícia Metropolitana, Peter Newsham. “Treinamento militar não é do que a polícia local precisa.”
“Apenas me parece que não é uma boa ideia, seja em Israel ou qualquer outro lugar, buscar treinamento com forças armadas ou polícias nacionais, para aprender com pessoas que são melhores na solução violenta de conflitos”, Grosso disse ao The Intercept. “Isso não está de acordo com o que buscamos fazer aqui em D.C.”
“Já temos o FBI, a CIA, o serviço secreto, bastante polícia federal fortemente armada”, acrescentou. “Não precisamos de mais iniciativas assim, precisamos é de uma abordagem comunitária.”
Um representante da polícia de D.C. informou ao The Intercept por e-mail que o departamento está participando do treinamento para “aprender as melhores estratégias de combate ao terrorismo”.
“Ampliar nosso conhecimento sobre contraterrorismo e obter experiência de grande valor para a próxima geração de lideranças do departamento de polícia é fundamental para a segurança e o bem-estar dos moradores e visitantes de D.C.”, escreveu o representante. “Essa oportunidade não permitirá que nos desviemos do nosso compromisso de oferecer policiamento justo, imparcial e constitucional.”
Além de se encontrar com seus colegas israelenses, os policiais norte-americanos nas delegações também visitam representantes das Forças de Defesa de Israel, bem como dos serviços de segurança de fronteira e de inteligência – recebendo ensinamentos de agências que fazem cumprir regras militares ao invés da legislação civil.
“Isso se encaixa na ideologia dos policiais como guerreiros”, diz Vitale.
“O foco desse treinamento é repressão de tumultos, contrainsurgência e contraterrorismo – temas que são ou deveriam ser essencialmente irrelevantes para a maioria dos departamentos de polícia”, acrescenta. “Eles não deveriam estar reprimindo manifestações, não deveriam estar se envolvendo em contrainsurgência, e praticamente nenhum deles enfrenta qualquer ameaça real de terrorismo.”
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Os treinamentos em Israel também se encaixam em uma tendência mais ampla nos EUA de militarização da polícia. Mês passado, o presidente Donald Trump emitiu um decreto que revogou limitações que haviam sido impostas pelo ex-presidente Barack Obama a um programa militar conhecido como 1033, que permitia aos departamentos de polícia adquirir com desconto sobras de equipamentos militares, como veículos blindados e lançadores de granadas.
Obama decretou as restrições em 2015, em resposta à indignação pública pelo uso desses equipamentos durante os protestos contra o abuso policial em Ferguson, no estado de Missouri, e em outros lugares. Ao anunciar as novas medidas num discurso dirigido à Ordem Fraterna da Polícia, a maior associação de classe dos policiais no país, o Procurador-Geral Jeff Sessions chamou os equipamentos militares de “salvadores”, minimizando as críticas à militarização da polícia como “preocupações superficiais”.
Marketing da Ocupação
Os intercâmbios com os policiais estadunidenses se fundamentam na experiência de Israel com o terrorismo e com o manejo de risco constante por suas forças de segurança. O histórico de Israel na aplicação de suas políticas de contraterrorismo, no entanto, é maculado por acusações de graves abusos. Um Estado fundado em meio a uma campanha de limpeza étnica em 1948, Israel tomou a Margem Ocidental e a Faixa de Gaza na Guerra dos Seis Dias em 1967, e desde então mantém sua ocupação – inclusive construindo assentamentos civis em território palestino, o que já constituiria uma violação à legislação internacional. Agora as mesmas forças de segurança acusadas de maus tratos a cidadãos e a subjugados palestinos apátridas estão treinando os policiais norte-americanos.
Ano passado, o treinamento da ADL incluiu reuniões com agentes do serviço interno de segurança de Israel, conhecido como Shin Bet. Alega-se que a agência de segurança estaria por trás da vigilância – bem como da tortura e dos assassinatos seletivos – aos palestinos em Israel e nos territórios ocupados.
Os policiais dos EUA que participavam do evento também se encontraram com as patrulhas especiais de polícia israelense, conhecidas como “Yasam” – polícia de choque paramilitar, cujo uso excessivo da força e abuso contra os palestinos é bem documentado – e viajaram a postos de fronteira, a prisões e a Hebron. Em Hebron, uma cidade da Margem Ocidental, cerca de 200 mil palestinos estão impedidos de entrar no centro velho da cidade, onde menos de mil colonos judeus são protegidos por número equivalente de soldados israelenses.
A ADL, um grupo cuja missão, em tese, é combater a intolerância, mas que, em vez disso, gasta seu tempo defendendo Israel, não dedicou muita atenção à polícia da Palestina. Em 2016, o itinerário do grupo incluiu um único encontro com um policial palestino – membro da Polícia de Turismo de Belém.
Um representante da ADL deu uma declaração ao The Intercept dizendo que a suspeita dos críticos de que seus programas contribuiriam para a brutalidade e o racismo das forças policiais é “falsa e difamatória”.
“Ao contrário, as missões policiais da ADL têm o propósito de fazer o exato oposto, fortalecer os laços entre os policiais e as comunidades a que servem”, acrescentou o representante.
No passado, o grupo manifestou reprovação àqueles que traçaram paralelos entre o abuso policial nos EUA e a ocupação da Palestina por Israel. “Há uma longa tradição de usar questões legítimas de justiça social nos Estados Unidos para enfraquecer o Estado judeu”, escreveu um oficial de alto escalão do grupo, na esteira dos protestos de Ferguson. Não existe “conexão racional entre o desafio do racismo nos EUA e a situação que os palestinos enfrentam”, acrescentou o oficial da ADL.
Ainda assim, a crítica persiste. O grupo Voz Judaica pela Paz (Jewish Voice for Peace, JVP) recentemente lançou uma campanha para chamar a atenção do público para os programas de intercâmbio policial entre os Estados Unidos e Israel.
“Esses programas transformam os 70 anos da desapropriação de Israel e os 50 anos de ocupação em estratégia de marketing para o ‘policiamento de sucesso’”
“Esses programas transformam os 70 anos da desapropriação de Israel e os 50 anos de ocupação em estratégia de marketing para o ‘policiamento de sucesso’”, escreveu em um e-mail para o The Intercept Stefanie Fox, vice-diretora da JVP. “Sob o manto de treinamento de “contraterrorismo”, policiais e agentes de imigração de alto escalão visitam postos de fronteira, prisões, assentamentos, delegacias de polícia e outros locais-chave para as políticas de Israel de ocupação e apartheid.”
Programas de intercâmbio entre forças policiais são divulgados como uma oportunidade para que a polícia americana aprenda mais sobre contraterrorismo com o auto-proclamado líder do setor, mas, para os defensores de Israel, também são uma forma de converter uma audiência específica para a ideologia pró-Israel.
“[Eles] voltam transformados em sionistas”, comentou o então diretor regional da ADL, David Friedman, sobre o impacto da delegação em 2015. “Eles compreendem Israel e suas necessidades de segurança, o que não acontece com muitos públicos.”
Esse talvez seja justamente o resultado esperado.
“Eles querem que os EUA vejam o mundo dividido em campos do bem e do mal, e querem aprofundar o compromisso dos EUA com Israel sob o fundamento de estar na linha de frente de combate ao terror”, entende Vitale, o professor do Brooklyn College, em referência aos grupos por trás dessas excursões. “Todo o projeto é um projeto político, que usa a polícia como solução para uma análise específica das questões internacionais.”
Até o momento, Israel já inspirou algumas iniciativas policiais bastante controversas, tais como o famoso programa de vigilância de muçulmanos do Departamento de Polícia de Nova York (NYPD), que foi planejado à semelhança da vigilância aos palestinos na Margem Ocidental. Thomas Galati, chefe do Setor de Inteligência do NYPD à época, havia participado de um dos treinamentos da ADL em Israel.
A polícia e as forças de segurança israelenses também podem estar aprendendo algumas coisas de seus colegas norte-americanos. Em 2016, por exemplo, Israel aprovou uma “lei que autoriza parar e revistar [stop and frisk]” elaborada nos moldes de sua equivalente estadunidense, que permite às autoridades policiais “revistar qualquer pessoa, independentemente de seu comportamento, em locais que se entenda serem alvos de ações destrutivas hostis”.
Palestinos residentes em Jerusalém afirmam que a legislação é aplicada com “flagrante racismo”.
“Vemos a polícia israelense adotando as políticas norte-americanas de parar e revistar, aumentando ainda mais o estado de violência que os palestinos já enfrentam”, disse Fox, da JVP. “Esse intercâmbio mortal funciona nos dois sentidos, e encoraja as piores práticas, tais como o uso de perfis raciais, a vigilância em massa, a brutalidade policial, e a repressão à divergência política que existe em ambos os países.”
Foto do título: Forças policiais israelenses carregam um lançador de granadas de atordoamento, logo em seguida à oração do meio-dia de sexta-feira, do lado de fora da cidade velha de Jerusalém, em 28 de julho de 2017.
Tradução: Deborah Leão
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