Quase cinco anos separam o primeiro “Ocupa Cabral” da decisão que condenou “o grande fiador da corrupção” a 45 anos de prisão nesta quinta (21). O Ocupa Cabral foi uma das maiores ocupações realizadas na cidade, antecipando os movimentos de junho de 2013.
A segunda condenação do ex-governador teve tom de redenção para o grupo de jovens que, entre o final de 2012 e o meio de 2013, acampou em frente ao prédio do ex-governador no Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro. Cabral foi condenado por organizar um esquema de cartel, fraude de licitações e desvio de recursos federais usados na construção e reforma de infraestrutura para a Copa do Mundo de 2014. Na primeira condenação, expedida pelo juiz Sérgio Moro, em junho, a pena foi de 14 anos e dois meses, por corrupção passiva e por receber propina na construção do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj).
O objetivo da ocupação era expor as negociatas de Cabral no período pré-Copa do Mundo e forçá-lo a ouvir as demandas da população das favelas da cidade, dando destaque à família de Amarildo Dias de Souza, morto pela polícia do estado em 2013.
Conversamos com dois dos ativistas que participaram do movimento sobre a sensação que cada um teve ao saber da condenação e como eles encaram o valor (já) histórico da manifestação.
Os estudantes Luiza Dreyer, 26, e Bruno Cintra, 34, fizeram parte do grupo que sofreu infiltrações e tentativas de tomada de voz por movimentos de direita, a polícia os ameaçou e prendeu, a mídia os perseguiu. Agora, a Justiça dá a razão a eles.
Refletindo o caráter horizontal do movimento — à época, foram questionados inúmeras vezes sobre quem seria a liderança, que não havia —, cada um tem um relato e uma interpretação diferente sobre o que o Ocupa representou no contexto desta condenação.
Luiza: “Estávamos ali trabalhando e tínhamos um objetivo.”
A carioca Luiza Dreyer foi privada do acesso a sua família, virou foragida, teve amigos presos. Ela conta que a polícia entrou em sua casa mais de uma vez e que seus pertences foram confiscados. Até hoje luta para recuperar HDs e memórias de computador com trabalhos, fotos e dados acumulados por 15 anos. E, se hoje seu pai a olha com orgulho e reconhece sua luta, não foi sempre assim:
“Fico muito feliz com a condenação dele, e não é por uma questão pessoal, mas por um dado de luta: as mobilizações populares têm poder. Estávamos ali trabalhando e tínhamos um objetivo. Nossa pauta era: FORA CABRAL.
Só que, ao longo da ocupação, fomos recebendo muitas denúncias, foram surgindo novas pautas, como a da Aldeia Maracanã, do Amarildo, dos Bombeiros, da Escola Municipal Friedenreich que estava para ser demolida para dar espaço à um estacionamento — a mesma escola que mais tarde veio a conquistar o melhor índice de desenvolvimento da educação básica (IDEB) das escolas públicas do Rio.
Conseguir unir tantas pautas, colocar diferentes classes sociais frente a frente numa assembleia popular debatendo em um dos metros quadrados mais caros do Brasil foi uma das nossas grandes conquistas e uma das maiores dificuldades dos movimentos sociais no mundo todo. Mesmo que o Cabral não fosse preso, já éramos vitoriosos.No fim das contas, sabemos que Ocupa Cabral foi importante para a prisão. Não à toa houve o processo de criminalização dos manifestantes em 2013. Nossos amigos foram perseguidos, presos. Rafael Braga, por ser preto e favelado, ficou anos na cadeia quando seu único crime era “portar pinho sol”.
É surreal. É cruel. Tem mais de 30 páginas e mídias de internet que expuseram meu nome completo como foragida. Estava sendo acusada de crimes que nunca havia cometido e que não tinham provas para tal. Policiais armados entraram na minha casa , confiscaram meu computador com todas as minhas fotos, vídeos, trabalhos, meus livros, até meus diários de infância eles levaram e nunca mais me devolveram. Isso é crime. Foi uma ação ilegal, uma tentativa de silenciamento, terrorismo de Estado. As memórias que eles me roubaram, eu nunca terei de volta. Mesmo com todas essas perdas, eu não tenho dúvidas que valeu a pena. Os amigos que ocuparam juntos sabem da importância que aquilo teve. Foi um momento histórico. Eu tenho plena consciência da importância dessa ocupação e torço para que as pessoas se lembrem disso e deem prosseguimento, porque a luta tem que continuar.Bruno: “Que bom que chegou a tempo de eu assistir.”
Formado em Direito e estudante de história, Bruno Cintra participou do Ocupa Cabral principalmente como interlocutor com a imprensa. Por sua formação acadêmica, por ser um pouco mais velho que os demais e por ser fluente em inglês, ele lembra de ter sido o escolhido para falar com os jornalistas internacionais que visitavam o acampamento. Depois que o acampamento foi desmontado pela polícia, ele seguiu ativo em manifestações e ocupações. Mantém o envolvimento político até hoje, principalmente na faculdade. Diz que atualmente seu ativismo é na linha da educação, mas não acredita em um “Fora, Temer” que não envolva mudanças profundas no sistema político brasileiro.
“A gente tem recebido muitos elogios. Gente dizendo ‘meu filho, você estava lá, você estava certo, o Brasil agora está dando valor’. Eu continuo fazendo minha militância, eu nunca parei. Continuo dizendo as mesmíssimas coisas, mas sobre pessoas diferentes. Eu não gostaria de ter que esperar mais quatro anos para as pessoas virem me elogiar. Imagina: ‘poxa, lá em 2017 você estava certo, sobre o Pezão, sobre o Temer, sobre o Dória, sobre o Lula’. Não quero precisar esperar que o sistema faça essa depuração interna para que eu possa ter razão. Não quero elogio, quero ajuda.
A Elisa [militante que ficou conhecida como Sininho] ficou famosa, e essa fama destruiu, arruinou ela. Quisera eu ser só mais um. Isso não é bom pro meu ego. Não é uma questão de ‘a ocupação levou à queda do Cabral’. Não. A ocupação, por ter atingido o Cabral, fez dele uma figura com menos margem de manobra do que outras, que se blindaram.
O acerto do Ocupa Cabral não foi algo de grande genialidade da minha parte. Não fui uma pessoa absolutamente torturada pela rotina ou pela polícia, como outros. Eu tinha uma margem de conforto, vi que era certo e aceitei as consequências. É uma coisa extremamente prosaica, não é uma coisa poética. E, quando o Cabral foi preso, eu não me senti no meio de uma revolução. Não estou dizendo que não senti prazer. Ele merece isso. Mas sei que não é o sistema que está sendo preso.
O fato é que o Cabral está sendo preso, e o Pezão não apenas está solto, mas também está conseguindo destruir o Rio de Janeiro. A diferença entre eles dois é sutilíssima. Não é como se o Pezão estivesse fazendo um governo diferente do que o Cabral faria. E isso é só um sinal de que o Cabral expirou o prazo de validade. Ele é um peso morto hoje. Ele era ministeriável, cogitado para vice-presidente da Dilma, estava alimentando ambições presidenciais. Mas hoje é peso morto.
Seria muito custoso, um abuso do cinismo, tentar blindar ele. Ele se lambuzou demais. Porque o “erro” dele não foi cometer o crime, mas sim ter sido descoberto e não apresentar uma versão que se sustentasse, não ter alianças políticas que o garantissem.
Olha o Temer: ele amplia a margem de manobra da corrupção e dos sequestradores do poder porque ele tem um capital político que o protege e protege o PMDB e até o PSDB. O Temer que, em 2013, não estava na mira. Não tinha um “Ocupa Temer”.
Ele pode sobreviver à Lava Jato, ao processo de depuração interna da elite. É uma visão muito nítida que tenho da relação entre sujeito e conjunto que me deixa preparado para entender que, a qualquer momento, o Temer pode cair se ele se tornar um peso morto. Só não imagino que o Temer caia e o sistema cartorial de poder do Brasil caia junto com ele. A única surpresa em relação ao Cabral foi apenas na linha de ‘que bom que chegou a tempo de eu assistir’.”
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