O governador do Estado do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, admitiu na última sexta (22), que não tem mais condições de lidar com a situação na Rocinha, uma das maiores favelas da cidade do Rio, e pediu auxílio ao Exército. Algumas horas mais tarde, cerca de 950 soldados fortemente armados chegaram à favela a pé, em blindados e helicópteros.
O Rio de Janeiro está mais uma vez nas manchetes pelos piores motivos: a violência assassina está de volta à cidade com força total. Os tiros começaram na Rocinha em 15 de setembro, menos de uma semana depois de um tiroteio entre rivais da mesma facção do tráfico de drogas, ADA (Amigos dos Amigos), perturbar uma calma manhã de domingo na comunidade à beira-mar.
O drama na Rocinha vem a reboque da batalha pelo controle do Morro do Juramento, na Zona Norte da cidade, entre integrantes da ADA e da maior facção do Rio, o Comando Vermelho (CV). Sete pessoas foram mortas no confronto.
Na sexta (15), havia relatos de tiroteio em várias favelas. Mas o início dos confrontos na Rocinha e no Santa Marta, em Botafogo, um bairro de classe média alta na Zona Sul, simboliza o aprofundamento da crise no Rio de Janeiro, já que essas eram consideradas há algum tempo as favelas mais seguras e menos violentas da cidade.
Com cerca de 100 mil moradores, a Rocinha é provavelmente a favela mais famosa do Brasil. Como está encravada entre três dos bairros mais ricos da cidade, quando o tiroteio começa lá, as imprensas nacional e internacional se mobilizam e acompanham, com o auxílio de dramáticas imagens do confronto filmadas em celulares e de fotos chocantes dos resultados, incluindo o corpo parcialmente incinerado de um dos integrantes da facção derrotada.
A causa imediata da violência é a disputa contínua entre as facções, e agora também internamente entre elas. Suas origens, porém, são muito mais profundas e complexas. Essas ocorrências são um sinal alarmante de que o Rio pode estar afundando novamente no atoleiro de instabilidade e violência que caracterizou a cidade durante a década de 1990 e o início dos anos 2000. A guerra às drogas continua a ser uma poderosa causa subjacente, assim como a disputa entre a maior facção do tráfico do Rio, o CV, e a maior organização criminosa do Brasil, o PCC (Primeiro Comando da Capital), sediado em São Paulo, mas cuja influência se estende por todo o país e até o Paraguai, a Bolívia e a Colômbia. A maior das forças por trás dos problemas do Rio, no entanto, é provavelmente a monumental crise política e econômica que se alastra pelo Brasil, mas atinge o Rio de forma especialmente dura.
Se o problema chegou à Rocinha, certamente está ainda pior nos outros lugares.
A Rocinha é também um termômetro importante, porque, ao longo dos últimos 13 anos, além de apresentar níveis de violência e de criminalidade abaixo da média do Rio, a comunidade tem mantido uma das economias mais robustas e bem-sucedidas entre as favelas – gringos às vezes se referem a ela como o Upper East Side ou Kensington [bairros de luxo, respectivamente, de Nova York e Londres] das favelas. Por isso, se o problema chegou à Rocinha, certamente está ainda pior nos outros lugares.
Os primeiros relatos do que se passava ali foram baseados quase exclusivamente em fontes da polícia e do sistema prisional, que alegavam haver uma disputa de poder no topo da hierarquia da ADA na comunidade. É um assunto bastante complexo, porque o “dono”, Antonio Bomfim Lopes, o Nem da Rocinha, está na cadeia desde novembro de 2011. De acordo com a polícia, ele continua a controlar indiretamente a favela e a lucrativa venda de cocaína. Desde a prisão de Nem, outra figura de destaque na Rocinha tem sido seu antigo chefe de segurança, Rogério Avelino da Silva, conhecido como Rogério 157.
Ao longo dos últimos dezoito meses, no entanto, moradores da Rocinha me informaram em conversas informais que grandes divergências surgiram entre Rogério e outros membros da ADA que apoiam Nem. Talvez o personagem mais controverso dessa história seja a esposa de Nem, Danúbia Rangel de Souza, que nos últimos meses tem mostrado sua própria força na distribuição de cocaína. Ela e o marido foram presos sob a acusação de que ela estaria atuando como sua intermediária na ADA em 2013, mas a polícia desistiu da acusação contra ela por falta de provas.
Também é importante destacar que Nem nega qualquer envolvimento com a violência. Falando por intermédio de Luiz Battaglin, um de seus advogados, que o visitou essa semana, Nem disse que não teve qualquer relação com o tiroteio. Disse ainda que não se encontrou com a família nas últimas semanas e, por isso, não poderia ter comandado a violência. Ainda assim, dentro da Rocinha, poucos acreditam que Nem tenha deixado de ter influência. Ele ainda é visto por muitos como o dono em espírito da favela, e há bastante saudosismo pelo seu domínio.
De acordo com uma fonte da Rocinha que conhece a ADA por dentro, Danúbia fez uma aliança com Perninha, antigo braço direito de Nem, e juntos exigiram o controle de duas das bocas de fumo da favela. As mesmas fontes dizem que Rogério e Nem se recusaram a esse acordo, pois, aparentemente, Nem não queria que sua esposa estivesse diretamente envolvida com o tráfico. A despeito disso, Perninha e Danúbia seguiram em frente.
Em meados de agosto, os corpos de Perninha e dois outros homens leais a Nem foram encontrados em um carro na principal via que atravessa a favela. A polícia e os moradores defendem que Perninha e seus dois companheiros foram mortos por Rogério. Um morador bem-informado me contou essa semana que “os eventos de 13 de agosto levaram a uma declaração de guerra contra a autoridade do Nem”. (A maior parte dos moradores da Rocinha é muito relutante em falar sobre esse tipo de ocorrência, uma vez que os informantes costumam sofrer execução sumária. Por conta da atual disputa de poder, as pessoas estão especialmente receosas.)
Nesse meio tempo, Danúbia criou sua própria força de segurança e começou a se locomover pela favela acompanhada de quatro homens armados. Cerca de dez dias atrás, Nem enviou uma mensagem para Rogério ordenando que ele entregasse o controle de um pequeno morro satélite a dois homens de sua confiança. Rogério não o atendeu, e os dois homens fugiram. Nem teria então alertado Danúbia para que também fugisse da Rocinha.
É difícil saber se Nem estaria emitindo ordens diretas, e é certamente um mistério a forma como o teria feito, uma vez que ele não recebeu visitas na prisão durante o período em que os eventos se desenrolaram. Como poderia estar enviando mensagens?
A despeito dessa dúvida, Danúbia foi embora da Rocinha. Três dias depois, um impressionante grupo de cerca de 60 traficantes entrou na favela e atacou a entrada ao pé do Morro Dois Irmãos, antes do começo da subida. Depois de três horas de tiroteio intenso, restaram três homens mortos e três moradores feridos, incluindo dois adolescentes, um deles com deficiência. O confronto terminou quando companheiros de Rogério roubaram um carro e fugiram da favela sob as vistas da polícia – a fuga foi registrada em vídeos de celular. O próprio Rogério se escondeu na floresta que cerca a Rocinha a norte e a oeste. Alguns de seus homens tentaram chegar a outra favela no domingo, mas foram impedidos pela polícia. Três morreram em tiroteios subsequentes e um foi preso.
Ainda é difícil dizer, porém, se esse foi o fim do “golpe”, como está sendo chamado pela imprensa brasileira. Danúbia, esposa de Nem, permanece em sua casa, no Complexo da Maré, um vasto conjunto de favelas sob a proteção de aliados da ADA. Parece improvável, no entanto, que ela possa ser a sucessora de Rogério na Rocinha. Ela é uma forasteira, nascida e criada do outro lado do Rio; muitos na Rocinha não aceitam suas aspirações de realeza e seu visual de Barbie; e, acima de tudo, ela é uma mulher – tradicionalmente, mulheres têm um papel completamente subordinado nas facções do tráfico do Rio. Se Danúbia for a encarregada pelo domínio de Nem, ela tem pontos importantes de vulnerabilidade.
Rogério, embora fragilizado, tem escolhas. Durante o fim de semana, membros do maior rival da ADA, o Comando Vermelho, transmitiram mensagens dizendo que apoiadores dele seriam bem-vindos nas favelas controladas pelo CV, um bom indicativo de que Rogério teria feito a relevante escolha de trocar de facção. O maior problema de Rogério, no entanto, é que a resistência ao seu domínio na Rocinha vem aumentando desde que ele impôs um duro sistema de taxas sobre a distribuição de gás e sobre os mototáxis, um meio de transporte essencial para subir e descer as ladeiras da Rocinha.
A Batalha de Facções
O tráfico de drogas no Rio há muito tempo se divide entre três facções: CV (Comando Vermelho), TCP (Terceiro Comando Puro) e ADA (Amigos dos Amigos). Cada facção controla favelas específicas onde organizam a venda da cocaína que é distribuída entre os muitos usuários dentro das favelas e nas regiões de classe média. As pichações em cada favela (são cerca de 1200 no Rio) permitem identificar com facilidade qual facção está no controle. O TCP no passado alternou o apoio ao CV e à ADA, mas a desavença entre essas duas se mantém constante e implacável desde meados da década de 1990.
Historicamente, o CV tinha ligações com traficantes de drogas na Colômbia e atuava na importação por atacado, enquanto ADA e TCP agiam exclusivamente nas operações de varejo no Rio. O outro grande importador dos países andinos para o Brasil é o PCC (Primeiro Comando da Capital), a gigantesca organização criminosa de São Paulo. Embora o PCC controle o tráfico de cocaína na maior parte dos estados, nunca se envolveu nas operações do Rio, em parte porque o nível de hostilidade entre as três facções é arriscado demais. “O PCC olhou para esse lugar”, um agente de inteligência da polícia me narrou, “e disse ‘não, obrigada, não queremos nos meter nessa confusão!’”
Mas no meio de 2015, quando as FARC estavam saindo do negócio da cocaína na Colômbia em decorrência do acordo de paz negociado com o governo colombiano, teve início uma guerra feroz entre o PCC e o CV. Nas prisões que abrigavam filiados das duas facções, isso levou a uma onda de violência e à morte de dezenas de presos. Parte da resposta do PCC foi colocar fim na sua neutralidade no Rio, fornecendo armas ao TCP e à ADA para fortalecê-los contra a superioridade numérica do CV. Além disso, pela primeira vez, o PCC desafiou o CV em luta aberta pelo controle de Paraty, no meio do caminho entre Rio e São Paulo margeando a costa, e mais conhecida pelo festival literário internacional que sedia anualmente. O PCC pretende tomar o controle das principais rotas de fornecimento de cocaína para o Rio para estrangular o CV: o que está acontecendo no Brasil é uma verdadeira guerra de baixa intensidade, com diversos objetivos táticos e estratégicos.
É essa divisão que Rogério pode decidir explorar, requisitando apoio “militar” do CV para tentar retomar a Rocinha. Para manter a paz na Zona Sul, a única esperança é que o CV decida que não vale o esforço, uma vez que o território da Rocinha é difícil de atacar com sucesso.
Política de Segurança do Rio
No começo de 2008, o recém-empossado Secretário Estadual de Segurança, José Mariano Beltrame, agente da Polícia Federal do Rio Grande do Sul, anunciou uma política inovadora: as UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora. Sinceramente contrito, Beltrame acreditava que as autoridades haviam traído as favelas da cidade, que abrigam cerca de 20% de sua população, por terem deixado de oferecer segurança e outros serviços públicos por mais de meio século. Com a pacificação, Beltrame alegava que queria reparar o dano.
A ideia não era ruim: expulsar os traficantes das favelas e ocupar esses territórios com uma significativa presença policial, na política que ficaria conhecida como UPP policial. Ela foi pensada, porém, para funcionar em conjunto com outra política, a UPP social, que levaria investimento em saúde, educação, infraestrutura e serviço social. A UPP policial teve algum sucesso, e os níveis de violência caíram. O tráfico de drogas não acabou, mas a circulação de armamento pesado pelas favelas realmente diminuiu.
Infelizmente, e apesar dos diversos pedidos de Beltrame, a administração do então governador do Rio, Sérgio Cabral, não investiu os recursos necessários para financiar a UPP social – não houve acompanhamento, o que se mostrou uma falha crítica no projeto das UPPs. Hoje se sabe que Cabral estava envolvido em esquemas de corrupção (o que já era do conhecimento da maior parte dos moradores do Rio à época, mas a cultura de impunidade e não responsabilização ainda prevalecia no período pré-Olimpíadas), e sua motivação para promover as UPPs era principalmente agradar à sua base eleitoral da classe média do Rio e apresentar uma imagem de calma para o mundo exterior enquanto a cidade se preparava para sediar os Jogos Olímpicos.
Na Rocinha, a reputação da UPP foi seriamente abalada em julho de 2013, quando veio à tona que agentes da UPP na favela haviam torturado e matado Amarildo, um ajudante de pedreiro desempregado que não tinha envolvimento em nenhum crime. Beltrame agiu rapidamente e entregou os principais envolvidos à Justiça, mas, olhando para trás, fica claro que a UPP nunca se recuperou desse incidente e de sua repercussão internacional.
Beltrame renunciou à função de Secretário de Segurança em 2016, desiludido pela falta de apoio do governo à sua estratégia e ciente de que, depois das Olimpíadas, a economia da cidade estava ruindo. Desde então, a UPP só existe nominalmente. As facções do tráfico estão em grande parte de volta ao controle, e os policiais ainda lotados nas comunidades evitam ao máximo qualquer confronto.
Em julho, o governo federal enviou 10 mil tropas para o Rio a pedido do governador, para ajudar a restaurar a periclitante situação da segurança.
A Crise
Em outubro de 2016, o Estado do Rio pediu ao governo federal um socorro de R$ 14 bilhões, depois de atrasar pagamentos aos policiais, professores e profissionais da área de saúde. A cidade e o estado vêm sendo sustentados por subsídios, depois de muitos anos de péssima administração e de corrupção sob a gestão do PMDB, partido do controverso presidente Michel Temer. Diversos figurões do Rio foram desde então presos preventivamente ou condenados por corrupção, no contexto da gigantesca Operação Lava Jato.
O novo governador, Luis Fernando Pezão, que era vice de Cabral, está se recuperando de um câncer e tem cada vez menos condições de administrar as desastrosas finanças públicas do estado. A administração do prefeito recém-eleito da cidade, Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus e parte de seu projeto político, tem se mostrado absolutamente incapaz de lidar com os desafios que enfrenta.
A decisão de Pezão de pedir auxílio ao Exército para lidar com as facções do tráfico é, em certa medida, um reconhecimento de falência política, mas há um outro aspecto envolvido. Até seis meses atrás, poucas pessoas realmente acreditavam que as Forças Armadas que comandaram o país por 21 anos depois do golpe de 1964 poderiam cogitar interferir na ordem democrática. Mais recentemente, no entanto, alguns militares de alto escalão vêm se manifestando sobre a possibilidade de que as Forças Armadas precisem intervir em algum momento e declarar estado de emergência. A polarização da opinião política no Brasil, já muito evidente, está se intensificando novamente. E parece pouco provável que um governo federal comandado por um presidente completamente desacreditado e que se encontra sob investigação possa apresentar boas soluções para esse problema.
Misha Glenny é autor de “O dono do morro: um homem e a batalha pelo Rio”.
Tradução: Deborah Leão
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