Enquanto as denúncias de repasses não contabilizados são investigadas, as doações oficiais da Odebrecht mostram que o grupo injetou mais de R$ 265 milhões nas eleições desde 2002, segundo levantamento inédito feito para The Intercept Brasil. Ao todo, 1.087 candidatos foram favorecidos. Em depoimento à força-tarefa da Operação Lava Jato, Marcelo Odebrecht confirmou que repasses legais também serviam para ocultar propina.
Os números foram obtidos a partir de um cruzamento de dados, feito ao longo de quatro meses. O levantamento permitiu identificar a evolução do financiamento de campanha legal por parte de empresas e executivos da Odebrecht. Em busca de recursos do grupo, vasculhamos todas as 10 milhões de doações registradas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para todos os cargos do Brasil desde 2002.
A partir do projeto Tribuna, que transformou 21 gigabytes de tabelas disponibilizadas pelo TSE em um banco de dados unificado, foi desenvolvido um programa para cruzar essas informações com uma lista com centenas de empresas e pessoas do grupo Odebrecht, elaborada a partir de informações da Receita Federal e relatórios financeiros do grupo. Assim, identificamos cada centavo dos repasses feitos por 16 sócios de firmas da Odebrecht e 44 empresas doadoras, além de quatro firmas utilizadas como “laranjas”. Todos os valores mencionados estão corrigidos pela inflação.
Navegue pelos dados das doações
Os recursos declarados legalmente pela Odebrecht irrigaram o caixa de 28 dos 35 partidos registrados hoje no Brasil. Ficaram de fora apenas algumas siglas associadas à esquerda (PCB, PCO, PSOL, PSTU) e fundadas mais recentemente (NOVO, REDE, PMB).
Os recursos declarados legalmente pela Odebrecht irrigaram o caixa de 28 dos 35 partidos registrados hoje no Brasil.
Apesar de a REDE não ter recebido doações diretamente, em 2014, Marina Silva, sua principal liderança e candidata a presidente na época, arrecadou em seu nome ao todo R$ 973 mil em prestação de serviços de empresas do grupo Odebrecht, através de repasses do PSB, que acolheu sua candidatura após a morte de Eduardo Campos. As atividades incluíram “serviços especializados em apoio na sistematização do programa de governo” e “organização de eventos”.
A demanda por financiamento de campanha era tanta que a Odebrecht “terceirizou” algumas doações legais. Em depoimento, funcionários da empresa detalharam a utilização de firmas ligadas à cervejaria Itaipava e à DAG Construtora para ocultar doações do grupo. Desde 2008, quando o esquema teve início, segundo as delações, o TSE registra R$ 171 milhões em doações dessas empresas utilizadas como “laranjas” (confira os dados deste cruzamento). No entanto, os valores não foram levados em conta neste levantamento por não ser possível precisar exatamente quais repasses foram feitos a mando da Odebrecht.
Em seu depoimento, Marcelo Odebrecht estimou que até 300 pessoas do grupo Odebrecht chegaram a atuar simultaneamente em todo o Brasil se relacionando com candidatos para tratar de financiamento de campanha. Ainda que declarados à Justiça, os recursos movimentados por esse pelotão nem sempre tinham finalidades lícitas.
Em entrevista, Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato, diz que o pagamento de propina por meio de doação eleitoral é uma conhecida técnica de lavagem de dinheiro, que busca dar uma aparência legítima para um dinheiro sujo. “Até agora, isso [propina via doação de campanha] foi alvo de acusações pontuais. Foram poucas desse tipo. Em relação à Odebrecht, a maior parte está sob investigação. A Lava Jato está colhendo provas em relação a várias situações de doações eleitorais legais que podem caracterizar pagamento de propinas”, explica.
Em sua delação premiada, Marcelo Odebrecht confirmou que doações legais foram usadas para disfarçar suborno: “Podia ter caixa 1 decorrente de propina e caixa 2 que não era decorrente de propina”.
2014 concentra quase metade das doações
O maior volume de financiamento concentrou-se na última eleição presidencial. Apenas em 2014, o grupo tirou R$ 125 milhões de seus cofres para investir em doações legais. O valor equivale a 2,6% dos recursos financeiros recebidos por campanhas naquele ano.
Doutor em Direito com mestrado em Economia, Bruno Carazza estudou o financiamento de campanha a fundo. Ele considera que, em 2014, “o funcionamento do sistema [de financiamento empresarial] chegou no seu limite supremo”.
“Ao longo dos anos, a cada eleição, os candidatos foram percebendo que quanto mais arrecadavam, maior a chance de vencerem a eleição. Por outro lado, as empresas notaram que o financiamento era uma boa forma de comprar acesso privilegiado junto aos governantes”, afirma Carazza.
Além disso, Carazza considera que o fato de a última eleição ter sido bastante polarizada “puxou” os valores do financiamento de campanha para cima.
Já em 2016, com a proibição do financiamento empresarial, as doações legais despencaram. Mas não sumiram. Membros da família Odebrecht e pelo menos um executivo do grupo doaram para campanhas naquele ano, como mostraremos na terceira reportagem desta série.
Seguindo o padrão dos outros grandes doadores, a maior parte das doações da Odebrecht desde 2002 foi feita aos comitês de campanha e aos partidos (R$ 194 milhões), que, por sua vez, podiam repassar parte dos valores para os candidatos.
Desde 2014, o TSE caracteriza esses repasses de empresas aos candidatos por meio de partidos como “doação indireta”, obrigando o registro do doador original dos recursos enviados aos políticos. Além disso, todo recurso assim caracterizado deve ser também declarado antes como uma doação direta da empresa para o partido.
Considerando todas doações, desde 2002, transferência eletrônica foi a forma de pagamento preferida para as “doações” da Odebrecht. Ao todo, R$ 218 milhões foram repassados assim. O segundo principal modo de pagamento foi o cheque (R$ 21 milhões). Já as doações estimadas – que envolvem prestação de serviço, não recursos financeiros – respondem por apenas R$ 21 mil.
Dois presos entre os cinco políticos que mais receberam
Quanto aos candidatos beneficiados por doações da Odebrecht, diretas ou indiretas, os cinco que mais receberam estão na mira da Lava Jato. Dois estão presos.
Candidatos às últimas eleições presidenciais, Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) lideram. Ela com R$ 18 milhões doados diretamente para sua candidatura, ele com R$ 12 milhões em 2014. Isso sem contar os repasses feitos diretamente aos partidos de ambos naquele ano: no total, foram R$ 37 milhões para o PSDB e R$ 27 milhões para o PT.
A ex-presidente Dilma é acusada de participar de uma organização criminosa para desviar recursos da Petrobras. Aécio chegou a perder o mandato e ter seu pedido de prisão solicitado pela Procuradoria Geral da República. Em junho, porém, o Supremo manteve sua liberdade e lhe devolveu o cargo.
Atrás dos presidenciáveis, está Henrique Alves (PMDB) que, em 2014, recebeu R$ 6 milhões para sua campanha ao governo do Rio Grande do Norte. Aliado do presidente Michel Temer e ex-ministro de Dilma, ele foi preso em junho deste ano pela Polícia Federal, acusado de receber propina por meio de doações eleitorais de outra empreiteira, a OAS.
Ex-governador da Bahia, Paulo Souto (DEM) aparece em quarto lugar, com R$ 3,8 milhões em valores atualizados. Nas investigações da Lava Jato, ele é citado como beneficiário de caixa 2 em 2002 e 2006. Hoje, Souto é secretário de Fazenda na gestão de ACM Neto (DEM) na prefeitura de Salvador.
Em quinto lugar, outro candidato a governador preso na Operação Lava Jato. Em sua campanha no Mato Grosso do Sul, Delcídio Amaral recebeu quase R$ 3,6 milhões da Odebrecht em 2014. Depois de preso, o ex-líder do governo Dilma no Senado, se tornou testemunha de acusação contra Lula em um caso no qual o Ministério Público Federal acusa o ex-presidente de receber propina da Odebrecht.
Já o presidente Michel Temer recebeu apenas R$ 20 mil em financiamento de campanha da Odebrecht por meio de doações declaradas diretamente para sua candidatura. Foi em 2006, quando se candidatou ao cargo de deputado federal por São Paulo. Na época, Temer não conseguiu votos suficientes para renovar seu mandato, mas entrou na Câmara graças ao quociente eleitoral.
Quem ganha mais financia
A Odebrecht compreende 12 grandes setores de negócios, que vão do agronegócio à indústria naval, mas quase toda doação eleitoral ocorreu por meio de apenas duas empresas. A Construtora Norberto Odebrecht e a Braskem, que atua no ramo petroquímico, foram origem de 75% das doações do grupo.
62% da receita bruta vêm da Braskem, enquanto Engenharia e Construção injetam 21%
Também são essas duas empresas que concentram a maior parte dos ganhos da Organização Odebrecht. Segundo os últimos dados do grupo, 62% da receita bruta vêm da Braskem, enquanto Engenharia e Construção injetam 21%.
Entre 2002 e 2016, a Construtora destinou R$ 126 milhões para partidos e candidatos, enquanto a Braskem repassou R$ 72 milhões por meio de doações oficiais. Depois, entre as principais empresas doadoras, temos a Companhia Brasileira de Projetos e Obras (CBPO, com R$ 16 milhões), a Odebrecht Óleo e Gás (R$ 13 milhões) e a Agro Energia Santa Luzia (R$ 5 milhões).
De acordo com o levantamento, a pessoa que mais doou em seu nome foi Luiz Schneider, sócio da Fundação Odebrecht. Ele transferiu R$ 96 mil para candidaturas de prefeitos em Goiás em 2004 e 2008. Ruy Lemos consta como o segundo executivo no ranking de maiores doadores do grupo Odebrecht, com um total de R$ 73 mil.
Financiamento é a ponta do iceberg
Os valores declarados ao TSE são pequenos perto das cifras movimentadas pela Odebrecht. Apenas no ano passado, quando os negócios não iam tão bem quanto nos anos anteriores, a empresa teve uma média diária de receita bruta que ultrapassou R$ 245 milhões, segundo seu relatório financeiro.
Entretanto, além dos repasses “terceirizados”, há que se levar em conta também o dinheiro não declarado: o famoso caixa 2.
O ex-diretor Benedicto Junior estimou que, em 2014, cerca de 40% das doações da Odebrecht foram feitas por empresas “parceiras” ou diretamente por repasses não contabilizados da própria Odebrecht.
Para Sérgio Lazzarini, que pesquisa as relações entre os setores público e privado no Brasil, o financiamento declarado “deixa pistas sobre as empresas que mais se conectam politicamente para obter benefícios”, mas é apenas “a ponta do iceberg”. Entre as razões para as empresas recorrerem ao caixa 2, ele cita o limite (2% do faturamento) que existia para doações por pessoa jurídica, além de casos onde se buscava “ocultar apoio aos políticos, especialmente em casos de suborno puro”.
Benedicto Junior entregou ao Ministério Público uma planilha em que constam repasses não declarados da Odebrecht a políticos. De acordo com o documento, entre 2008 e 2014, foram repassados R$ 246 milhões via caixa 2 para candidatos. No mesmo período, o Tribunal Superior Eleitoral registra R$ 25 milhões em doações para políticos, em valores originais, além de R$ 136 milhões repassados aos partidos.
Os repasses ilegais nem sempre eram feitos em períodos eleitorais ou eram aplicados nas campanhas. “A propina pode ter uma finalidade eleitoral ou não, como enriquecimento próprio e ilícito de um político. Muitas vezes, quem vai decidir a finalidade é quem recebe. Quem doa não tem qualquer controle sobre isso”, explica Deltan Dallagnol.
Segundo o procurador, boa parte do dinheiro da propina identificada na Operação foi para financiamento de caras campanhas eleitorais. “Mas para que uma doação eleitoral possa ter sua legitimidade descaracterizada e seja reconhecida como pagamento de propina, é preciso que existam provas consistentes neste sentido”, ressalva.
Esta reportagem foi realizada por Adriano Belisário, com a colaboração dos analistas de dados Rafael Polo e Álvaro Justen, como parte do programa de bolsas de produção da Plataforma de Jornalismo Connectas.
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