Em seu discurso na Assembleia Geral das NaçÔes Unidas, na semana passada, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, declarou sua intenção de desmantelar a ordem mundial construĂda a duras penas pelo paĂs no Ășltimo sĂ©culo. Trump enalteceu o nacionalismo perante os membros do organismo multinacional que os EUA ajudaram a criar. âOs EUA sempre serĂŁo a minha prioridade; assim como vocĂȘs, lĂderes de seus paĂses, tambĂ©m devem colocar o seu prĂłprio paĂs em primeiro lugarâ, disparou. E acrescentou: âNada pode substituir naçÔes independentes, fortes e soberanas.â
O discurso de Trump vai de encontro a dĂ©cadas de uma polĂtica voltada para a criação de um mundo pĂłs-nacionalista sob a liderança americana. ApĂłs a Segunda Guerra Mundial, os EUA se tornaram, pela primeira vez na HistĂłria, uma verdadeira superpotĂȘncia, um paĂs capaz de agir alĂ©m das prĂłprias fronteiras e remodelar a polĂtica global. A maioria da população atual da Terra nasceu em um mundo cujas instituiçÔes, sistemas econĂŽmicos, leis e fronteiras foram de alguma forma influenciadas pelo gigante norte-americano. Embora o paĂs nunca tenha de fato assumido sua prĂłpria identidade â preferindo se referir a si mesmo com eufemismos como âa nação indispensĂĄvelâ â, qualquer descrição sĂ©ria da influĂȘncia americana no mundo deve obrigatoriamente fazer uso da palavra âimpĂ©rioâ.
Com uma rede de quase 800 bases militares em 70 paĂses ao redor do mundo â alĂ©m de um vasto leque de acordos comerciais e alianças â, os Estados Unidos consolidaram sua influĂȘncia durante dĂ©cadas, tanto na Europa quanto na Ăsia. Os lĂderes americanos ajudaram a impor um conjunto de regras e normas para promover o livre comĂ©rcio, a democracia â pelo menos em teoria â e proibir a alteração de fronteiras pela força militar, fazendo uso de uma mistura de força e persuasĂŁo para preservar a sua hegemonia no sistema. Ao mesmo tempo, embora o paĂs sempre tenha evitado exercer um colonialismo direto, a promoção do livre comĂ©rcio global ajudou âa abrir as portas das ĂĄreas subdesenvolvidas do mundo para o poderio econĂŽmico dos EUAâ, como escreveu o historiador revisionista William Appleman Williams no clĂĄssico “The Tragedy of American Diplomacy” (“A TragĂ©dia da Diplomacia Americana”, em tradução livre), hĂĄ mais de meio sĂ©culo.
A estratĂ©gia de âexpansĂŁo imperial nĂŁo colonialâ, nas palavras de Williams, se tornou a base da polĂtica externa dos EUA no sĂ©culo passado. As elites norte-americanas tiraram grande proveito de tal polĂtica, embora muitas vezes os benefĂcios do imperialismo nĂŁo tenham chegado ao resto da sociedade. Graças ao status de Ășnica superpotĂȘncia mundial, o paĂs hoje desfruta do âprivilĂ©gio exorbitanteâ de ter a Ășnica moeda sem lastro do mundo, e os lĂderes americanos dominam a agenda polĂtica e comercial das instituiçÔes internacionais. Com o colapso da UniĂŁo SoviĂ©tica, em 1990, e a criação de uma bem-sucedida aliança militar contra a invasĂŁo do Kuwait por Saddam Hussein, no mesmo ano, a confiança imperial dos EUA chegou ao seu auge â o presidente George H. W. Bush chegou a declarar o inĂcio de uma ânova ordem mundialâ sob a liderança norte-americana.
Algumas dĂ©cadas depois dessa declaração, a previsĂŁo de uma ordem mundial estĂĄvel e liderada pelos EUA parece nada mais do que uma utopia. O mundo atual passa por uma sĂ©rie de crises relacionadas Ă migração, desigualdade, guerras e mudanças climĂĄticas â todas elas interconectadas. PorĂ©m as estruturas e lĂderes necessĂĄrios para enfrentĂĄ-las parecem terrivelmente inadequados. Em vez de assumir o papel de lĂder mundial e preencher o vĂĄcuo deixado pela queda da UniĂŁo SoviĂ©tica, os EUA se deixam consumir por crises domĂ©sticas e reagem com uma mistura de inĂ©pcia e paranoia Ă s crises internacionais.
Enquanto isso, o sistema global de livre comĂ©rcio e mobilização militar construĂdo nos Ășltimos 75 anos â o alicerce da hegemonia dos EUA â passou a ser visto por muitos americanos como um fardo em vez de uma vantagem. Mesmo antes da vitĂłria eleitoral de Trump â baseada na promessa de derrubar os pilares da ordem mundial pĂłs-Segunda Guerra â, a incontestĂĄvel primazia americana jĂĄ parecia fadada Ă decadĂȘncia, independentemente da competĂȘncia de seus governantes. E, agora que Trump estĂĄ no poder, fazendo de tudo para afundar a imagem internacional dos Estados Unidos, que nova ordem mundial estarĂĄ se desenhando no horizonte?
Embora profecias alardeando o declĂnio do poderio americano nĂŁo sejam nenhuma novidade, a eleição de um presidente hostil Ă ordem mundial criada pelo seu prĂłprio paĂs marca o inĂcio de uma era de fato sem precedentes. O mundo jĂĄ se prepara para um futuro sem a liderança dos EUA. Dois livros publicados recentemente descrevem uma possĂvel nova ordem mundial: “All Measures Short of War: The Contest for the 21st Century and the Future of American Power” (“Vale Tudo Menos a Guerra: a Disputa Pelo SĂ©culo XXI e o Futuro do Poderio Americano”, em tradução livre), de Thomas J. Wright, membro do Projeto sobre Ordem Internacional e EstratĂ©gia, do centro de estudos Brookings, e “In the Shadows of the American Century: The Rise and Decline of U.S. Global Power” (“Nas sombras do SĂ©culo Americano: AscensĂŁo e Queda do Poder Global dos EUA”, em tradução livre), de Alfred McCoy, lendĂĄrio jornalista investigativo e professor de HistĂłria da Universidade de Wisconsin-Madison.
Ambos os livros tratam do declĂnio do impĂ©rio americano, mas com abordagens e abrangĂȘncias diferentes. Enquanto McCoy discute explicitamente a ascensĂŁo e queda dos Estados Unidos como âimpĂ©rioâ â uma palavra usada nĂŁo como mero epĂteto, e sim para descrever ao pĂ© da letra o legado americano â, Wright fala de um possĂvel colapso da âordem mundial liberalâ liderada pelos EUA â um sistema de regras, normas e instituiçÔes que regem as questĂ”es globais favoravelmente aos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Para Wright, o sistema estĂĄ ameaçado tanto pelo surgimento de novas potĂȘncias quanto pelos erros dos EUA. JĂĄ McCoy vĂȘ na decadĂȘncia do impĂ©rio americano um paralelo com o declĂnio dos impĂ©rios britĂąnico e francĂȘs. O primeiro estĂĄgio Ă© a perda do apoio das elites locais nos territĂłrios sob influĂȘncia imperial, um processo que, segundo McCoy, jĂĄ estĂĄ acontecendo com os EUA em regiĂ”es estratĂ©gicas mundo afora. Nos Ășltimos anos, a relação dos EUA com parceiros militares como Turquia, Filipinas, PaquistĂŁo e ArĂĄbia Saudita tem se desgastado, e aliados como Alemanha e Coreia do Sul passaram a questionar a capacidade dos americanos de continuar liderando o sistema imperial que eles prĂłprios criaram.
Mas foram os protestos da Primavera Ărabe â em sua maioria contrĂĄrios a ditadores aliados dos EUA â que marcaram o inĂcio do lento processo de esfacelamento da hegemonia americana. Embora considere-se que as revoltas tenham falhado na tentativa de implantar democracias liberais, elas conseguiram derrubar velhos aliados americanos na TunĂsia e no Egito e desgastar os laços dos EUA com os paĂses do Golfo e atĂ© mesmo com o Iraque. McCoy escreve que âos impĂ©rios modernos sempre dependeram de representantes confiĂĄveis para traduzir o poder global em controle localâ, e acrescenta: âNa maioria dos casos, foi quando as elites locais passaram a questionar a autoridade imperial e lutar por seus prĂłprios objetivos que o colapso desses impĂ©rios começou a se desenhar.â Como se sabe, o ImpĂ©rio BritĂąnico se tornou um âproblema que se resolveu sozinhoâ quando as elites das colĂŽnias começaram a querer governar a si mesmas. Da mesma forma, o vasto impĂ©rio colonial francĂȘs começou a se desfazer quando se viu obrigado a entrar em uma sangrenta guerra para manter o controle da ArgĂ©lia. A Primavera Ărabe â e as forças por ela desencadeadas â reduziu a influĂȘncia dos EUA e limitou seus meios de lidar com o terrorismo e a imigração, e, com o tempo, pode âcontribuir para o ocaso do poderio global norte-americanoâ, escreve McCoy.
Outro fator que representa uma ameaça Ă hegemonia americana Ă© a ascensĂŁo da China, um paĂs que tem todos os motivos para querer criar uma nova ordem mundial mais compatĂvel com seu tamanho e influĂȘncia â e que acredita estar recuperando uma preponderĂąncia natural que lhe havia sido negada no sĂ©culo passado. A superioridade militar dos EUA dificilmente desaparecerĂĄ de um dia para o outro, mas a China jĂĄ estĂĄ começando a desafiar a supremacia americana em questĂ”es bĂ©licas. E a potĂȘncia oriental tem investido em avanços nas ĂĄreas de guerra cibernĂ©tica e espacial, que tĂȘm tudo para ser as mais importantes nos conflitos do sĂ©culo XXI. AlĂ©m disso, o desempenho educacional chinĂȘs em CiĂȘncia, Tecnologia, Engenharia e MatemĂĄtica tem superado o americano em diversas disciplinas estratĂ©gicas, o que pode deixar os EUA em uma posição desfavorĂĄvel. Ademais, enquanto os Estados Unidos tentam lidar com o caos causado pelas Ășltimas eleiçÔes, a China estĂĄ levando a cabo seu projeto de conectar todo o continente eurasiano por meio de uma rede chinesa de infraestrutura e transportes â uma ambiciosa empreitada chamada âUm CinturĂŁo, Uma Rotaâ, uma espĂ©cie de Rota da Seda moderna. Trata-se de uma estratĂ©gia polĂtica e econĂŽmica para reorientar uma grande parte do mundo em desenvolvimento para a esfera de influĂȘncia chinesa.
McCoy reconhece que Ă© difĂcil prever o que vai acontecer em matĂ©ria de geopolĂtica no mundo, mas tem argumentos convincentes para afirmar que o poderio dos EUA estĂĄ em declĂnio. Em 2030, se as tendĂȘncias atuais continuarem, o âSĂ©culo Americanoâ â proclamado com tanta convicção hĂĄ nĂŁo muito tempo â pode chegar ao fim. E âsĂł nos restarĂĄ apontar culpadosâ, escreve.
A tese do livro de Wright Ă© menos dramĂĄtica, embora, na prĂĄtica, suas conclusĂ”es nĂŁo sejam muito diferentes. Depois de 15 anos de guerras malsucedidas, crises financeiras e disfunçÔes polĂticas, os Estados Unidos parecem ter perdido a vontade e a capacidade de resistir Ă s ameaças ao sistema internacional que criaram. AlĂ©m disso, o povo americano nĂŁo acredita mais na competĂȘncia de seus polĂticos para comandar os assuntos internacionais e cumprir as promessas que serviram de justificativa para tantas guerras e intervençÔes.
Como consequĂȘncia de tantos fracassos autoinfligidos, China, RĂșssia e IrĂŁ começaram a desafiar a hegemonia americana nos Ășltimos anos, contestando o ordenamento defendido pelos EUA no Mar da China Meridional, Leste Europeu e Oriente MĂ©dio, respectivamente. A RĂșssia anexou novos territĂłrios e consolidou sua influĂȘncia em paĂses de sua zona perifĂ©rica, como a UcrĂąnia; a China tem avançado em seus planos de controlar o Mar da China Meridional, uma ĂĄrea economicamente estratĂ©gica. Em vez de um mundo onde os Estados Unidos exercem sua hegemonia, fazendo cumprir suas regras polĂticas e econĂŽmicas nessas regiĂ”es, Ă© possĂvel que, no futuro, o planeta se divida em âesferas de influĂȘnciaâ, onde cada potĂȘncia regional terĂĄ liberdade para perseguir seus prĂłprios objetivos.
Por esse motivo, mesmo os crĂticos da velha polĂtica externa americana deveriam se preocupar. Ă verdade que o imperialismo americano das Ășltimas dĂ©cadas cometeu crimes e disparates, mas um mundo fatiado em pequenos domĂnios nĂŁo serĂĄ necessariamente mais pacĂfico ou estĂĄvel. Sem a presença hegemĂŽnica dos Estados Unidos, devem surgir diversas potĂȘncias subimperiais, cada uma tentando impor sua prĂłpria ordem polĂtica em sua regiĂŁo, sem precisar se preocupar com intervençÔes externas. Pior ainda, nenhuma das potĂȘncias que hoje desafiam a supremacia americana se identifica com princĂpios liberais â como os direitos humanos â ,o que significa que essas ideias progressistas devem murchar junto com a influĂȘncia dos EUA. Os abusos e a politização do discurso humanitĂĄrio ocorrida nos Ășltimos anos ajudaram a esvaziar esses valores tĂŁo caros aos prĂłprios americanos. Assim como aconteceu com os impĂ©rios britĂąnico e francĂȘs, o uso da tortura manchou a reputação dos EUA e prejudicou sua capacidade de conquistar o apoio popular por meio da cultura em vez da força. Sem os americanos, contudo, o imperialismo regional russo, chinĂȘs ou iraniano dificilmente defenderĂĄ os valores humanistas que os Estados Unidos agiram para promover, ainda que esporadicamente.
Segundo Wright, a força da autoridade global norte-americana sempre residiu na popularidade dos ideais que ela representava, mesmo que nem sempre fossem aplicados na prĂĄtica. PrincĂpios como livre comĂ©rcio e direitos humanos sempre tiveram a simpatia da população mundial, reforçada pelo compromisso dos EUA em proteger pequenas naçÔes do comportamento predatĂłrio de seus vizinhos maiores. PorĂ©m, mesmo reduzidos a um status de ex-potĂȘncia hegemĂŽnica, os Estados Unidos ainda poderĂŁo exercer uma liderança regional. Se a tendĂȘncia nativista atual nĂŁo se radicalizar ainda mais, o paĂs continuarĂĄ sendo a grande referĂȘncia polĂtica e econĂŽmica do HemisfĂ©rio Ocidental, em especial para a AmĂ©rica Latina e o Caribe.
O impĂ©rio global americano estĂĄ entrando em um longo e convulsivo declĂnio â um processo iniciado com a calamitosa invasĂŁo do Iraque em 2003 e que agora se manifesta na presidĂȘncia de Donald Trump â, e a consequĂȘncia disso para os prĂłprios EUA pode ser ainda mais preocupante. Em 2010, o falecido intelectual Tony Judt escreveu suas reflexĂ”es sobre a instabilidade e as incertezas acarretadas pelas guerras e crises financeiras do inĂcio do sĂ©culo XXI. Menos de uma dĂ©cada depois, suas palavras parecem profĂ©ticas ao prever o declĂnio dos Estados Unidos e a ascensĂŁo de novos demagogos.
O ser humano se sente mais Ă vontade descrevendo e combatendo ameaças que pensa compreender: terroristas, imigrantes, desemprego, criminalidade. Mas muitas pessoas tĂȘm dificuldades para discernir as verdadeiras fontes de insegurança das prĂłximas dĂ©cadas: mudanças climĂĄticas e suas consequĂȘncias sociais e ambientais; o declĂnio do impĂ©rio, acompanhado de âpequenas guerrasâ; impotĂȘncia polĂtica diante de instabilidades internacionais com impactos locais. Todas essas ameaças conduzem facilmente Ă raiva e Ă humilhação, uma mistura perfeita para demagogos nacionalistas.
A influĂȘncia global americana deixarĂĄ atrĂĄs de si um complexo legado. Apesar dos conhecidos crimes cometidos nas guerras do VietnĂŁ e do Iraque e em outras regiĂ”es perifĂ©ricas do impĂ©rio, o mundo tambĂ©m conheceu uma grande prosperidade econĂŽmica e grandes avanços no plano dos direitos humanos durante o perĂodo de hegemonia americana pĂłs-Segunda Guerra. O impĂ©rio britĂąnico tambĂ©m havia deixado uma herança matizada: ao mesmo tempo em que produziu massacres e partilhas geogrĂĄficas desastrosas, tambĂ©m resultou em democracias parlamentares em muitas de suas ex-colĂŽnias. Da mesma forma, o saldo final do impĂ©rio norte-americano pode ser mais complicado do que certos radicalismos ideolĂłgicos gostariam de admitir. Agora que os EUA começam a perder o status de superpotĂȘncia, nĂłs que nascemos em um mundo moldado por eles sĂł podemos desejar um colapso nĂŁo muito traumĂĄtico â e que os lĂderes americanos aceitem que seu paĂs seja apenas uma potĂȘncia entre muitas.
Tradução: Bernardo Tonasse
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