Domingo à noite, os Estados Unidos vivenciaram o pior massacre da sua história recente. Pelo menos 58 pessoas morreram e mais de 500 ficaram feridas. Não é erro de digitação: um só tiroteiro fez mais de 500 vítimas.
Enquanto dezenas de milhares de amantes da música country curtiam um festival nas ruas de Las Vegas, Stephen Paddock, 64 anos, nascido em Mesquite, no estado de Nevada, se encarapitava no 32º andar do hotel Mandalay Bay. Paddock tinha 19 fuzis e centenas de balas à disposição – nenhum exagero em um país que tem mais armas de fogo do que habitantes. Poucos minutos depois das 22h, ele começou a disparar contra a multidão. Um alvo fácil.
Um dispendioso muro na fronteira com o México não teria evitado a tragédia; a proibição à entrada nos EUA de imigrantes e refugiados de um punhado de países muçulmanos também não.
Paddock, como a maioria dos autores de massacres em território americano, era cidadão dos EUA e branco. Esse pequeno detalhe transforma completamente o discurso midiático e oficial sobre a tragédia. Por alguma razão, ser branco protege as pessoas do rótulo de terrorista.
Porém, quando um ataque é perpetrado por pessoas de cor, a culpa costuma ser estendida à natureza destrutiva da comunidade a que pertencem. Quando um muçulmano comete um crime terrível, boa parte da direita afirma que o próprio Islã é o problema. Há séculos, quando um negro pratica algum ato violento, logo aparecem generalizações racistas, criminalizando e desumanizando um grupo étnico inteiro.
Um privilégio sempre fica em evidência quando comparado ao tratamento dispensado aos não privilegiados, e esse caso não é diferente. Homens brancos que cometem assassinatos em massa costumam ser caracterizados como “lobos solitários”, sem nenhuma conexão entre si. Fazemos vista grossa para os aspectos mais problemáticos da identidade branca nos EUA – uma indulgência exclusiva para brancos.
E, por ser branco, Stephen Paddock tem contado com inúmeras benesses da imprensa.
Enquanto o sangue ainda nem havia esfriado nas ruas de Las Vegas, uma manchete do USA Today declarou que Paddock era um “lobo solitário”, embora as investigações sobre seu passado e motivações estivessem apenas começando. A polícia ainda não havia sequer revistado a casa e os computadores do assassino; seu histórico de viagens não havia sido devassado; ninguém ainda havia investigado sua família e amigos e esmiuçado suas redes sociais.
Stephen Paddock foi chamado de “lobo solitário”, não como resultado de uma meticulosa investigação, e sim porque essa era a única conclusão possível para um assassino em massa de pele branca.
“Lobo solitário” é um rótulo comumente usado para caracterizar brancos suspeitos de cometer massacres. James Holmes foi chamado de “lobo solitário” quando abriu fogo em um cinema em Aurora, no estado do Colorado, deixando 12 mortos. Dylann Roof, o supremacista branco que entrou em uma igreja em Charleston, na Carolina do Sul, e matou a tiros o pastor e oito fiéis, logo recebeu a mesma alcunha.
Para pessoas de cor – principalmente muçulmanos – o tratamento costuma ser diferente. Um muçulmano é tachado de “terrorista” antes mesmo que os fatos sejam revelados.
Vejamos o exemplo do presidente dos EUA, Donald Trump. Ontem de manhã (segunda-feira), Trump tuitou: “Meus pêsames às vítimas do ataque em Las Vegas e às suas famílias. Que Deus os abençoe!”. Tudo bem, mas Trump não parece estar irritado. É estranho ele não ter chamado o atirador de “filho da puta”, como fez com os jogadores da NFL (a liga de futebol americano dos EUA) que se ajoelharam durante o hino nacional. Ele também não deu um apelido depreciativo a Paddock, e tampouco propôs novas medidas para combater o problema.
Comparemos isso com a reação de Trump a ataques que ele acredita terem sido cometidos por muçulmanos. Depois do atentado a bomba no metrô de Londres, Trump afirmou no Twitter que os criminosos eram “terroristas patéticos”, antes mesmo que as autoridades britânicas tivessem descoberto o nome do suspeito. Trump ainda usou esse ataque para defender a proibição de entrada imposta aos muçulmanos nos EUA.
É aí que devemos nos perguntar: por que certos atos violentos deixam Trump e seus partidários indignados, enquanto outros inspiram apenas pêsames e preces? Este foi o maior massacre da história dos Estados Unidos! Onde está a indignação? Onde estão as propostas de medidas políticas?
Estamos diante de uma manifestação gritante do privilégio branco, que protege até alguém como Stephen Paddock – suspeito de ter cometido um massacre – não apenas do rótulo de terrorista mas também da fúria que certamente se abateria sobre qualquer suspeito de cor. A sua pele o protege – e também impede que os EUA encarem de frente duas importantes questões: por que tantos homens brancos fazem o que ele fez? Por que esse país parece determinado a não fazer nada contra isso?
Conversei com duas pessoas ontem de manhã – uma negra e uma muçulmana. As duas, assim que souberam da tragédia em Las Vegas, rezaram para que o atirador não fosse negro ou muçulmano. Por quê? Porque, se fosse, elas sabiam que a reação contra a comunidade negra ou muçulmana seria terrível.
Há algo muito errado na sociedade quando alguém se sente aliviado por causa da cor da pele de um criminoso. Mas os brancos não têm esse problema, pois sabem que não precisam temer nenhuma reação aos atos de Stephen Paddock – foi o que aprenderam ao longo de 400 anos de história.
Além de todas as vantagens que têm de berço, os brancos ainda desfrutam, de fato, de um privilégio especial: imunidade às consequências dos atos de outros indivíduos da sua etnia.
Tradução: Bernardo Tonasse
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