É difícil chocar os porto-riquenhos. Eles não se chocaram quando o presidente dos Estados Unidos atirou rolos de papel toalha para a multidão. Nem quando Donald Trump várias vezes agrediu verbalmente a prefeita de San Juan por ousar brigar pelas vidas de seu povo, ou ameaçou, com as piores desculpas, deixar de ajudar a ilha nesse momento de necessidade.
Ainda assim, é especialmente cruel que o pacote de ajuda aprovado pelo Congresso contenha 5 bilhões de dólares em empréstimos , não em subvenções. Vivendo numa ilha já esmagada pelo peso de uma dívida impagável de 74 bilhões de dólares (e mais 49 bilhões de déficit previdenciário), os porto-riquenhos sabem muito bem que dívidas não são ajuda, mas sim ferramentas poderosas de empobrecimento e controle, e a ajuda é necessária para sair delas.
A simples inclusão desse empréstimo pela Câmara dos Representantes dos EUA no amplo projeto de lei de resposta a desastres (que entrará em votação no Senado na próxima semana) é simbólica do profundo receio que vem assombrando muitos porto-riquenhos desde que o furacão Maria os atingiu: de que, a despeito de todo o sofrimento em meio a essa emergência humanitária, o período pós-emergência seja ainda mais danoso. É nesse momento que políticas alardeadas como parte da reconstrução podem se transformar em uma forma de punição, tornando a ilha ainda mais desigual, endividada, dependente e poluída do que já era antes da chegada do furacão Maria.
Esse é um fenômeno que denominamos “doutrina do choque”, e que já foi presenciado muitas vezes. Um desastre acontece, mobiliza a simpatia do público, e grandes promessas são feitas de “reconstruir ainda melhor”, trazendo justiça aos que perderam tudo. No entanto, quase imediatamente a atmosfera de emergência se torna um pretexto para forçar medidas que beneficiam os grandes poluidores, as incorporadoras imobiliárias e os financiadores, às custas daqueles que já perderam tanto. Basta lembrar das escolas e moradias públicas fechadas em Nova Orleans depois do furacão Katrina, ou de como o terremoto de 2010 no Haiti acabou fomentando indústrias de mão-de-obra barata e resorts de luxo, enquanto necessidades básicas de moradia eram negligenciadas.
Mas há uma boa notícia nisso tudo: os porto-riquenhos já são experientes nas táticas da doutrina do choque. Eles sabem muito bem que sua crise de endividamento, fomentada pela ganância de Wall Street por títulos isentos de tributação, foi sistematicamente explorada para pressionar “reformas” brutais em prejuízo de trabalhadores e estudantes que não tiveram qualquer participação no crescimento dessa dívida. Sabem também que a crise foi usada para suprimir direitos fundamentais básicos, ao colocar as finanças da ilha nas mãos de uma Junta de Controle Fiscal – conhecida como “La Junta”.
E é por isso que, tão logo os furacões Irma e Maria atingiram Porto Rico, muitos de seus habitantes já estavam atentos para a possibilidade de que os choques fossem explorados para benefício privado. A rede elétrica destruída seria usada como argumento de que o sistema inteiro precisa ser privatizado, e as casas arrasadas seriam a abertura necessária para leiloar terras para campos de golfe e casas de praia.
Há uma diferença, porém: os capitalistas do desastre podem estar sobrevoando Porto Rico, mas talvez não consigam capturar sua presa. Por quê? Porque os porto-riquenhos – na ilha e no continente – estão respondendo à ofensiva em tempo real.
Sob a bandeira de uma “recuperação justa” para Porto Rico, milhares de pessoas se reuniram para elaborar um plano ousado e holístico para que a ilha seja reconstruída e se torne referência de uma sociedade segura, resiliente e pujante, numa era de aceleração do caos climático e de aumento exponencial da desigualdade econômica.
Desde os primeiros dias da atual situação de emergência, e apesar das imensas dificuldades logísticas e de comunicação, os porto-riquenhos na diáspora trabalharam com parceiros na ilha para desenhar os princípios fundamentais e as políticas desse plano. O trabalho que desenvolvem parte da ideia de que a razão subjacente às crises concorrentes em Porto Rico é o fato de que as pessoas e o solo da ilha vêm, há mais de um século, sendo tratados como uma inesgotável fonte de recursos primários que o continente extrai sem se preocupar com as consequências econômicas devastadoras. Coincidentemente, a crise climática global – que agora atinge Porto Rico com uma fúria desproporcional – decorre de uma lógica semelhante. Por muitos séculos, as sociedades industriais extraíram e queimaram combustíveis fósseis como se nunca fosse haver qualquer consequência ecológica. Isso foi um erro.
Um processo de recuperação justo procuraria substituir as estratégias extrativistas por relações baseadas em princípios de reciprocidade e regeneração. No curto prazo, isso significa um substancial perdão da dívida, bem como a suspensão imediata, seguida de posterior reforma, do “Jones Act”, lei que exige que todos os bens que ingressam em Porto Rico, vindos do continente, cheguem em navios dos EUA, o que aumenta drasticamente o custo e restringe as opções. Significa também que, sempre que possível, a ajuda financeira deveria ser entregue diretamente a organizações e comunidades porto-riquenhas, porque não são só os banqueiros e as empresas de navegação que extraem riqueza de comunidades pobres. Organizações de ajuda humanitária, mesmo com boas intenções, já transformaram muitas zonas de desastre em playgrounds para a indústria das organizações sem fins lucrativos. É um processo que consome grande volume de recursos em custos indiretos, hotéis, e tradutores; inflaciona os preços locais; e coloca as populações afetadas na posição de pedintes passivas, que não participam de sua própria recuperação. Para que uma recuperação justa aconteça, essa história não pode se repetir.
E essas são apenas as condições prévias para o trabalho de verdade, que não é reconstruir Porto Rico como era, mas repensar e refazer um sistema econômico que estava em conflito direto com o povo e a ecologia da ilha. Antes que os furacões Irma e Maria arrasassem a maior parte de sua rede elétrica, 98% da energia de Porto Rico era proveniente de combustíveis fósseis. Uma transição justa substituiria esse modelo extrativista por um sistema descentralizado em minirredes de geração de energias renováveis, que seria mais resistente aos inevitáveis choques climáticos ao mesmo tempo que reduziria a poluição, grande causadora da confusão climática.
Essa transição energética já está em curso nos esforços de ajuda comunitária, graças a projetos inovadores como o Resilient Power Puerto Rico, que está distribuindo geradores movidos a luz solar para as partes mais remotas da ilha. Seus organizadores trabalham por uma completa e permanente revolução movida a energia solar, planejada e controlada pelos próprios porto-riquenhos. “Em vez de perpetuar a dependência da ilha em relação a equipamentos vulneráveis de distribuição e combustíveis ricos em carbono”, explica o site da Resilient Power, “priorizamos a produção limpa de energia que permita a cada casa ser autossuficiente.”
Vários agricultores de Porto Rico estão exigindo uma revolução semelhante na agricultura. Eles relatam que o furacão Maria destruiu quase toda a colheita da estação e contaminou boa parte do solo, criando mais uma oportunidade de repensar um sistema que já não funcionava antes da chegada das tempestades. Atualmente, uma parcela muito grande das férteis terras de Porto Rico permanece sem cultivo, o que faz com que cerca de 80% dos alimentos da ilha sejam importados. Antes dos furacões, já havia um movimento em expansão para romper esse ciclo e revitalizar a agricultura local por meio de métodos como a “agroecologia”, que se fundamenta tanto em conhecimento tradicional indígena quanto em tecnologias modernas.
Grupos de agricultores estão agora estimulando a proliferação de cooperativas agrícolas comunitárias, que cultivariam comida para consumo local. Da mesma forma que as minirredes de energia renovável, trata-se de um modelo muito menos vulnerável aos choques na cadeia de fornecimento, tais como os furacões, com a vantagem adicional de gerar riqueza local e aumentar a autossuficiência.
Também da mesma forma, os agricultores de Porto Rico não estão esperando que cesse o estado de emergência para iniciar a transição. Pelo contrário, grupos como a Organização Boricuá de Agricultura Ecológica criaram “brigadas agroecológicas” que viajam pelas comunidades para levar sementes e solo para que os moradores possam imediatamente começar a cultivar. Katia Avilés-Vásquez, uma das agricultoras da Boricuá, comentou sobre uma das brigadas: “Hoje vi nascer Porto Rico como nos meus sonhos. Essa semana trabalhei com aqueles que lhe estão dando à luz.”
Essa experiência é, na essência, uma recuperação justa para Porto Rico. É a ideia de uma ilha onde as pessoas não são resgatadas por estrangeiros benevolentes, mas recebem os instrumentos para se associarem e salvarem a si mesmas, e podem fazer uma rápida transição para uma matriz energética renovável, ao mesmo tempo em que exercem pleno poder político.
É difícil chocar os porto-riquenhos, mas a ilha pode estar prestes a chocar o mundo, ao usar uma crise cheia de dificuldades para forjar um inspirador modelo de desenvolvimento econômico.
Elizabeth Yeampierre é a diretora executiva da United Puerto Rican Organization of Sunset Park (UPROSE), uma organização comunitária sediada no Brooklin, em Nova York. Naomi Klein é autora de vários livros; o mais recente deles, “No Is Not Enough: Resisting Trump’s Shock Politics and Winning the World We Need”, será publicado em novembro de 2017 pela Bertrand Brasil.”
Tradução: Deborah Leão
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