Isolados, apátridas, indesejáveis, eles são os cidadãos de país nenhum. Myanmar e Bangladesh empurram um para o outro o destino dessa população, mesmo quando o exército de Myanmar deixa um recado bem claro para todos os rohingyas que o país já não esteja estuprando ou assassinando: “Vão embora e não voltem mais”. Eles então fogem de seus vilarejos até a fronteira com o estado de Rakhine, seu último refúgio em Myanmar.
Quando podem, embarcam em barcos frágeis que muitas vezes viram, e a maioria não consegue atravessar o rio a nado. Corpos de crianças e mulheres jovens chegam à costa de Bangladesh. Às vezes, uma família inteira se perde no mar. É possível ver a devastação noturna das famílias reunindo os mortos, lavando seus corpos e enrolando-os em mortalhas para o enterro, nas fotos de Paula Bronstein.
Esta reportagem contém imagens fortes que podem chocar alguns leitores.
A maior parte dos rohingya se amontoa em vilarejos próximos a Bangladesh, esperando pelas travessias misteriosas. Fotógrafos, despachantes, agências de ajuda humanitária escutam os sussurros: a travessia está próxima. De repente, sob a luz que precede o amanhecer, dezenas de milhares de rohingyas se movem, vadeando os arrozais verdes e encharcados, com pertences em trouxas sobre a cabeça, bebês no colo e feridas nos ombros. “A torneira é aberta e subitamente fechada”, conta Bronstein, que fotografou duas dessas migrações monumentais, em 9 e 16 de outubro. Há coordenação entre as autoridades de Myanmar e de Bangladesh? É uma solução temporária? Ou uma limpeza étnica permanente? Ou ainda uma limpeza coordenada?
Já em Bangladesh, os refugiados ainda caminham por quilômetros. Alguns param em vilarejos abandonados, outros chegam aos campos de refugiados que existem há décadas, e outros ainda apanham com varas de bambu dos guardas de fronteira, que ordenam que permaneçam nos campos mesmo sem saber o que está acontecendo, onde vão parar, quando isso vai acabar.
Por quê?
Talvez para conseguir mais dinheiro, diz Bronstein.
“Foi assustadoramente desumano. Eles chegaram ao lugar onde conseguiriam água e biscoitos do PMA [o Programa Mundial de Alimentos] e as autoridades disseram: ‘Sinto muito, vocês têm que voltar para o campo, para o arrozal’. Eles choravam, principalmente as crianças. ‘Esses terríveis guardas de fronteira de Bangladesh ameaçam nos bater, e não sabemos o que está acontecendo’. Eles foram mantidos por três dias nos campos enlameados e depois foram registrados. Foi atroz. Não consigo encontrar um motivo para terem feito isso.”
Começa a chover, e não há onde sentar ou dormir.
“Então o sol aparece e vem um arco-íris”, conta Bronstein. “É lindo e as pessoas estão agonizando. A natureza faz coisas curiosas. Sempre há beleza onde as pessoas sofrem.”
Seguindo a estrada, logo depois dos campos onde dezenas de milhares de rohingyas definham, há um resort de praia onde turistas tiram selfies, nadam e tomam drinks.
A crise dos rohingya não é novidade. Grupos humanitários vêm prestando ajuda em campos de Bangladesh há décadas. Os rohingyas continuam chegando a cada onda de violência praticada contra eles pelas autoridades de Myanmar. Relatos surgem, vindos das clínicas e dos que conseguiram escapar, sobre soldados e budistas radicais trucidando os homens e arrastando para a floresta meninas de até 9 anos para estupros coletivos. O estupro é uma das armas da limpeza étnica. Queime os vilarejos. Trucide os homens. Estupre as meninas. Dizime um povo.
Será que existe vontade política ou instituição com autoridade moral para indiciar alguém por crimes de guerra? Quem apresentaria a acusação? A Rússia? Os chineses não fariam isso, há muito em jogo para eles em Myanmar, econômica e geograficamente. Estão envolvidos na construção de uma nova Zona Econômica que conta com um parque industrial, um terminal de óleo e gás e uma linha férrea, no estado de Rakhine, onde vive o povo rohingya. Quanto aos Estados Unidos, sua influência sobre a Ásia diminuiu consideravelmente — como no restante do mundo –, e o país não tem mais credibilidade nos temas de direitos humanos, nem de internacionalismo.
Existem aproximadamente dois milhões de rohingyas no mundo. Até pouco tempo atrás, a maioria vivia em Myanmar há gerações, com sua identidade questionada e sua história negada. Até o nome Rohingya é fonte de controvérsia. Trata-se de um grupo étnico, político ou religioso? O melhor que se pode dizer é que se trata de uma identidade complexa, arraigada em reinos oscilantes, conquistas muçulmanas, colonialismo, movimentos nacionalistas e limpeza étnica.
Atualmente, cerca de 4,3% da população birmanesa é muçulmana. Mais da metade desse total é parte do grupo dos rohingya. A lei de cidadania de 1982 em Myanmar tornou praticamente impossível para os rohingya se qualificar como cidadãos. (É preciso provar a existência de vínculos na Birmânia antes de 1823, quando os britânicos colonizaram a região, ou pertencer a um dos grupos étnicos aprovados – a lista não inclui os rohingya). Sucessivos governos do país os chamam simplesmente de bengaleses. Por isso, eles não têm direito à liberdade de ir e vir, ao voto, nem ao acesso à educação superior ou a cargos públicos. Eles precisam obter permissão até mesmo para se casar. Desde os anos 1970, a cada nova onda de violência, os rohingyas fogem para Bangladesh, onde também não lhes são conferidos direitos, e de onde muitas vezes são mandados de volta.
A limpeza étnica dos últimos dois meses é a mais grave e a mais sistemática já praticada. Aproximadamente 600 mil pessoas foram expulsas do estado de Rakhine pelo exército de Myanmar e por budistas radicais. Assim, atualmente, cerca 1,3 milhão de rohingyas vivem no limbo, sem um lugar no planeta que possam chamar de “meu país”.
Texto de Elizabeth Rubin. Fotografia de Paula Bronstein.
Tradução: Deborah Leão
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