Desde os primórdios do cinema, filmes de mocinhos e bandidos são garantia de sucesso de bilheteria. O mito da guerra entre o bem e o mal habita o inconsciente coletivo de tal forma que facilita o trabalho de muitos marqueteiros. O Prêmio Heróis Reais, idealizado pelo instrutor policial e webcelebridade Marcos do Val, não foge à regra. Vai escolher as melhores ocorrências protagonizadas por policiais, guardas municipais e agentes penitenciários em 2015 e 2016. E vejam só, com apoio da fabricante de armas Taurus, cujos produtos defeituosos já mataram e incapacitaram impunemente dezenas desses mesmos profissionais.
Serão premiados agentes de segurança que se destaquem por “bravura” e “inovação”. Os vencedores nacionais ganharão troféus, serão homenageados publicamente e ganharão uma viagem aos Estados Unidos com tudo pago. A viagem inclui uma visita ao departamento de polícia e instalações da SWAT, polícia de elite de Los Angeles, e ingressos para visitar a maior feira de armas do mundo, a SHOT Show 2018, que acontece em janeiro, em Las Vegas.
A premiação tem o objetivo de “sensibilizar a sociedade sobre a importância dos profissionais de segurança pública”. A iniciativa, no entanto, foi questionada pelo policial e deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSC-SP), que chamou o instrutor de técnicas de imobilizações táticas da SWAT de cara-de-pau por lançar o projeto com o nome “Heróis Reais”: “Eu pergunto pra você policial, o que você prefere: uma medalhinha do Marcos Do Val entregue lá no seu caixão ou uma arma de qualidade para você não precisar entrar nesse caixão?”.
A segurança das armas Taurus tem sido amplamente questionada há tempos. Em setembro de 2016, conforme reportagem publicada por The Intercept Brasil, o Exército admitiu pela primeira vez que “as falhas constatadas fazem parte de deficiências, por parte da empresa, no controle de qualidade da fabricação de produtos em escala industrial”.
Após tantas denúncias e pressão das vítimas, não era mais possível esconder a sujeira debaixo do tapete e então o regulamento militar sobre o controle de armamentos (R-105) entrou na pauta de discussões do governo. Foram nove meses até que o Ministério da Defesa concluísse as alterações no regulamento militar sobre o controle de armamentos e publicasse a Portaria 841, de 4 de setembro de 2017. O reinado da Taurus, que detinha o monopólio de fabricação de armas no país desde 1930 está abalado: a empresa suíça Ruag obteve permissão para abrir fábrica de munições no Brasil e o governo permitiu importação de armamentos.
No fim de outubro, mais um capítulo da derrocada da Taurus. A Superintendência do Ministério do Trabalho em Goiás decidiu proibir a Polícia Militar do estado de usar 2,5 mil armas da marca. Uma auditoria do órgão apontou 27 acidentes com vítimas ocasionados pela pistola modelo PT 24/7 PRO D, usada desde 2013 pelos policiais goianos.
“A Nova Taurus”
Essa crise de imagem e credibilidade exigiu da Taurus novas estratégias. Em fevereiro, a empresa lançou uma nova linha de armamentos – pistolas, submetralhadoras, carabinas e um modelo de fuzil. A identidade visual da empresa também mudou. Nascia ali a “nova Taurus”, que tentava se descolar daquilo que chama de campanha difamatória, “movida por interesses comerciais e financeiros”. A parceria com Do Val também faz parte do novo pacote de marketing.
“A minha proposta de valorização do policial com o título Heróis Reais casou com a nova Taurus”, explica Do Val em vídeo publicado em janeiro deste ano. Ele admite que a “Taurus antiga tinha diversos problemas de qualidade de equipamentos”, que não cabe a ele julgar. Na sequência, Do Val volta a fazer propaganda da empresa e da qualidade dos produtos lançados nos EUA. “É uma nova empresa, nova diretoria, novas armas, novos funcionários, novo endereço”, justifica, dizendo que, por conta de todas essas novidades, se sente confortável em ser parceiro da empresa. Nos EUA, a Taurus já realizou recall de cerca de um milhão de armas , dentre outras medidas que geraram um prejuízo de milhões de dólares para a companhia.
Em entrevista a The Intercept Brasil, Do Val disse que a Taurus teve três fases no Brasil – a fundação, a “fase difícil de gestão e produção” e a atual, após ser comprada pela Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), em 2014. Explicou que se fosse antes da “reconstrução”, não aceitaria a parceria.
Para ele, o cliente brasileiro teria inclusive sua parcela de culpa no problema da segurança das armas pois não tem a cultura de fazer uma manutenção adequada. “Como se comprasse um carro e não trocasse o óleo, não fizesse manutenção preventiva. Brasileiro tem muito isso – de não fazer manutenções, diferente do americano, que faz isso com frequência” diz ele, atribuindo a análise cultural a especialistas em armamento e em tiro.
Dezenas de laudos técnicos anexados em estudo do Ministério da Justiça feitos por polícias militares e civis indicam que os problemas dos armamentos Taurus não são decorrentes de manutenção, e sim da fabricação defeituosa das armas, o que o próprio Exército aceita como fato. Muitos agentes processam a empresa.
O Prêmio Heróis Reais é parte importante dessa reestruturação da marca. Para a empresa, o prêmio fortalece “seu relacionamento com agentes de segurança, os principais usuários de suas armas. Assim, o prêmio se mostrou a forma ideal de retribuir, na forma de reconhecimento, a confiança que esses profissionais depositam diariamente nos produtos Taurus”.
Mas essa confiança alardeada pela Taurus já não existe há muito tempo. E não está nem perto de ser recuperada, a julgar pelo depoimento do agente de Atividades Penitenciárias Patrício Júnior de Oliveira, durante uma Audiência Pública realizada no dia 3 de agosto de 2016, em Brasília, para debater os defeitos apresentados nas armas fornecidas aos órgãos de segurança pública da União, dos Estados e do Distrito Federal. “Fui vítima de uma arma que, teoricamente, foi produzida para não disparar quando cai”, afirmou. Há 10 anos, o agente estava em seu escritório quando a arma que usava, uma Taurus 24/7, caiu com a culatra no chão e disparou. Oliveira foi atingido no braço e no peito, um osso do braço explodiu, o outro quebrou. Pulmão e fígado também foram afetados. “Fiquei 30 dias no hospital. Dez na UTI, desenganado pelo médico”, explicou.
Há pelo menos 50 casos como os de Oliveira catalogados pela AVIDA, Associação de Vítimas da Taurus no Brasil. Entre o fim de 2016 e início de 2017, a empresa entrou em contato com muitos deles para propôr um acordo, sob uma condição: Todos os que aderiram deveriam assinar um termo de confidencialidade sobre os pontos a serem negociados e não falar publicamente sobre o assunto. Desde então, os perfis das “Vítimas da Taurus” no Twitter e Facebook, bem como o site, foram desativados.
Parece que para a empresa, herói bom é herói calado.
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