Era de se esperar que a Arábia Saudita fosse um país muito poderoso. Privilegiado com um quinto das reservas mundiais provadas de petróleo, relações próximas com estados ocidentais poderosos, acesso a armamento ilimitado dos EUA, apoio de interesses corporativos globais, e prestígio religioso e cultural por abrigar os lugares sagrados muçulmanos, o reino deveria ser a potência regional incontestada.
Para saber que não é o caso, basta uma olhada rápida sobre o Oriente Médio.
A política externa saudita está naufragando de tal forma que seria cômico assistir, se não envolvesse tamanha devastação humana. Sob a liderança recém-criada de Mohammed bin Salman, o governo da Arábia Saudita está empenhado em perder todas as guerras indiretas em que se envolveu: fracassou em subjugar seu diminuto rival no Golfo Pérsico, o Catar, e mais recentemente humilhou seu próprio aliado, o Primeiro-Ministro do Líbano Saad Hariri, no que parece ter sido uma tentativa tragicômica de desestabilizar o governo libanês.
A Arábia Saudita sofre frequentes críticas por ser um celeiro do islamismo radical, mas esse pode ser apenas mais um sintoma de um problema maior: a radical incompetência de suas lideranças. Desde o assassinato do rei Faisal bin Abdulaziz em 1975 – o último soberano a promover uma imagem positiva do país – a política externa saudita tem estado catastroficamente à deriva. Mesmo gastando valores exorbitantes para ampliar sua esfera de influência, os líderes do país parecem cada vez mais encurralados – em guerra não apenas com o Irã e seus aliados, mas também com o Catar, a Irmandade Muçulmana e os rivais internos.
Vale a pena comparar a Arábia Saudita com outro país da região com quem ela tem muito em comum: a República Islâmica do Irã. A despeito das diferenças sectárias e étnicas, em muitos aspectos os rivais são mais semelhantes entre si do que em relação aos demais países vizinhos. Ambos são petro-Estados repressores que usam a religião oficial como ferramenta para manter o povo sob controle. Ambos tentam usar identidades sectárias como forma de cultivar sua influência externa. E ambos buscam se estabelecer como poderes hegemônicos regionais, a despeito da destruição causada por seus esforços.
Obviamente, existem algumas diferenças palpáveis: o Irã é um pária internacional, controla apenas uma fração dos recursos da Arábia Saudita, e está sempre ameaçado pela persistente hostilidade dos Estados Unidos, com a possibilidade de ser devastado por bombardeios.
A Arábia Saudita, no entanto, apesar de suas inúmeras vantagens, tem se mostrado infinitamente pior que o Irã na disputa sórdida pelo poder na região.
Embora a rivalidade entre os dois países seja muitas vezes tratada como continuação de um suposto conflito primordial entre muçulmanos sunitas e xiitas, suas raízes podem ser encontradas na história recente: as convulsões sociais de 1979.
Em 1979, o Irã viveu a Revolução Islâmica e começou a exportar com fervor sua ideologia revolucionária pelo mundo muçulmano; a nova República Islâmica impunha uma versão politizada do islamismo xiita desenvolvida pelo Aiatolá durante seus longos anos no exílio. A Arábia Saudita, nesse meio tempo, era assombrada pela derrubada do monarca do país vizinho, pelos sentimentos revolucionários dos novos líderes iranianos, e por uma malfadada revolta milenarista em Meca naquele mesmo ano. A resposta da Arábia Saudita à revolta foi intensificar um esforço paralelo ao dos iranianos em exportar a revolução, com o propósito de promover uma versão fundamentalista do islamismo xiita interna e externamente. Seu objetivo final era ampliar a influência na região e no restante do mundo.
Quase quarenta anos depois, é indiscutível qual dos dois países teve mais competência em sua empreitada.
Se o Irã é admirado pelos muitos grupos políticos xiitas ao redor do mundo como modelo e fonte de apoio, a Arábia Saudita é odiada pelos muçulmanos sunitas das mais diversas orientações ideológicas, à exceção dos poucos que recebem auxílio financeiro direto. O Irã pode contar com o apoio de milícias xiitas leais no Líbano e no Iraque, enquanto muitos dos grupos militantes sunitas originados do proselitismo extremista da Arábia Saudita frequentemente declaram guerra aos líderes sauditas por não serem extremistas o suficiente.
O contraste entre a desunião sunita e a aglutinação xiita se deve em parte à forma como a Arábia Saudita e o Irã tratam suas respectivas comunidades sectárias. As alianças do Irã permitem a existência de estruturas políticas independentes que a República Islâmica não controla diretamente; ela apoia grupos xiitas como o Hezbollah no Líbano, as milícias xiitas no Iraque e os Houthis no Iêmen, e todos mantêm algum grau de autonomia na tomada de decisões. O Irã permite inclusive que alguns grupos e agentes que possuem crenças xiitas heterodoxas permaneçam sob sua proteção, e de boa vontade coopta grupos sunitas e minorias religiosas que desejem operar sob sua liderança.
A Arábia Saudita, por outro lado, se alia a seus religiosos ultraconservadores para empreender uma guerra ideológica contra as formas locais de islamismo sunita e sufismo, ampliando sua batalha para abarcar movimentos islâmicos populistas como a Irmandade Muçulmana. Essas investidas criaram um sem-número de inimigos, mas não parece claro quem seriam os aliados da Arábia Saudita, para além de um punhado de países dependentes e minúsculas regiões comandadas por xeques. O envolvimento da Arábia Saudita em hostilidades sectárias também impediu, com poucas exceções, que o país cooptasse os movimentos xiitas dissidentes, e ajudou a empurrá-los para a esfera de influência do Irã.
A despeito do seu tamanho e do prestígio cultural por abrigar as cidades sagradas de Meca e Medina, a Arábia Saudita não se mostrou capaz de usar essa influência para melhorar sua imagem no mundo islâmico, muito menos para criar representantes poderosos como os aliados do Irã no Hezbollah. Além das relações comerciais com outros países e agentes não estatais, a Arábia Saudita parece incapaz de aceitar aliados que não estejam em uníssono não apenas com as crenças religiosas específicas do regime, mas também com sua autoridade absoluta.
Os líderes iranianos já cometeram muitos crimes desde a revolução, a que a comunidade internacional – liderada por seu principal antagonista, os Estados Unidos – tem dado ampla divulgação. As políticas sauditas, no entanto, continuam a atrair sob si a condenação internacional numa medida que chega a rivalizar com as do Irã, a despeito da constante proteção do escudo norte-americano. Os sauditas estiveram prestes a deter a superioridade moral quando o Irã assumiu a incômoda posição de apoiar um ditador que cometeu assassinatos em massa na Síria, mas o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman abriu mão de qualquer autoridade moral relativa que o país ainda pudesse deter ao engendrar uma catástrofe humanitária talvez ainda maior no Iêmen, onde uma coalizão liderada pela Arábia Saudita e apoiada pelos EUA trava uma guerra brutal.
Sem apoio popular, nem de aliados confiáveis no mundo islâmico, os líderes sauditas começaram a adentrar o tabu da política no Oriente Médio ao se aproximar publicamente de Israel. Mesmo nos EUA, onde os sauditas despenderam um volume considerável de recursos em lobby e relações públicas, as tentativas de melhorar a imagem da Arábia Saudita são um fracasso retumbante. Embora o reino tenha conseguido se valer da cultura da corrupção institucionalizada na capital estadunidense para estabelecer relações com as elites, sua influência sobre o público norte-americano continua perto de zero. Até o Irã, continuamente hostilizado pelas estruturas políticas e midiáticas dos EUA, expõe ao público seu diplomático ministro de relações exteriores Javad Zaraif e seu simpático presidente Hassan Rouhani numa tentativa de revitalizar a imagem do país. A Arábia Saudita não tem nenhuma presença comparável – e, na verdade, nenhuma figura pública que pudesse fazer o mesmo.
Nem um país tão abençoado por recursos naturais e vantagens diversas pode durar para sempre sob uma liderança desastrosamente incompetente. Enquanto as elites norte-americanas bajulam o governo saudita a cada anúncio de reformas pontuais e planos bizarros de construir cidades-robô no deserto, um desdobramento lento, mas inexorável permanece em segundo plano. Um século depois de sua criação, a Arábia Saudita está temerariamente à deriva em um mundo que sofre as consequências disso.
Tradução: Deborah Leão
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