Apoiada por mais de 125 mil pessoas que votaram no site participativo do Senado Federal, a sugestão legislativa apresentada por um cidadão de São Paulo para descriminalizar o cultivo da cannabis para uso próprio sofreu um revés importante em sua tramitação no Congresso. O senador Sérgio Petecão (PSD/AC), relator da sugestão na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), deu parecer definitivo contrário à proposta no último dia 7.
Em agosto, após ter sido designado para a relatoria, o senador do Acre já havia emitido um primeiro relatório para barrar o prosseguimento da proposta no Congresso. Mesmo após a realização de duas audiências públicas sobre o tema na CDH, o documento mais recente não avançou nem um milímetro: manteve, palavra por palavra, o que foi apresentado há três meses.
O relatório mantido na íntegra não dedica nem sequer uma linha à questão central do cultivo da cannabis para uso medicinal. Na última audiência pública, realizada no fim de outubro, esse aspecto havia sido um dos focos da discussão. Conforme reportagem de The Intercept Brasil, Petecão chegara a reconhecer a existência de um consenso favorável ao cultivo para fins medicinais, mesmo entre os participantes contrários ao plantio para uso recreativo.
Cidinha Carvalho, presidente da Associação de Cannabis Medicinal (Cultive), não esconde a decepção com o trabalho do senador:
“Fiquei frustrada com o relatório porque ignorou completamente a questão medicinal da cannabis. Quando a audiência [de outubro] acabou, conversei com ele como mãe e ele se mostrou completamente receptivo. O senador Petecão simplesmente generalizou o debate e deu as costas ao nosso sofrimento.”
A filha de Cidinha é portadora da Síndrome de Dravet, que causa crises epiléticas e atraso no desenvolvimento psicomotor. Cidinha conseguiu na justiça o direito ao plantio da erva em casa. “Nós mães já passamos por tanto sofrimento. Sem recurso nenhum, fomos até Brasília buscar ao menos uma atenção à nossa dor e necessidade. E o Legislativo nos virou o rosto”, lamenta.
Cidinha relata que o uso do óleo de cannabis vem mudando a vida da filha. As crises diminuíram, as apneias durante o sono pararam, até o tônus muscular e as funções cognitivas da menina melhoraram. “Depois de 8 meses do uso do óleo, ela começou a ter impulso para pular na cama elástica. Após os 2 anos e 8 meses, ela começou a pular do chão. Antes, ela falava frases sem contexto, com palavras aleatórias; hoje, ela fala tudo dentro do contexto e melhorou a coordenação motora”, conta Cidinha.
Representante da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, Gabriel Santos Elias também criticou o relatório de Petecão. “Essa é a segunda vez que o Senado faz isso. A primeira foi uma sugestão relatada pelo senador Cristovam Buarque [em 2014]”, lembrou. “Quando o senador Petecão rejeita a sugestão, ele está indo contra a vontade da sociedade civil, que amplamente apoiou essa sugestão legislativa”.
Sem comentar o fato de o relatório não ter levado em consideração o conteúdo apresentado durante as audiências públicas, a assessoria do senador afirmou que elas foram de fundamental importância para levar o debate à sociedade.
Os perigos da “larica”
Em vez de contemplar os vários lados da questão, Petecão preferiu se ater ao rol de lugares comuns de seu primeiro parecer. No documento, o senador ataca, por exemplo sensação de fome despertada em alguns usuários após o uso da maconha.
” (…) Cito a experiência de legalização da maconha no estado de Denver, nos Estados Unidos, onde o uso crescente da maconha incentivou o consumo de produtos alimentícios considerados prejudiciais à saúde (chocolates, biscoitos, bebidas energéticas, etc) e também de cigarros eletrônicos”.
Petecão argumenta ainda que a regulamentação do cultivo de cannabis não reduziria ou eliminaria o tráfico de drogas. Para se justificar, resgata a velha ideia, amplamente questionada, de que a maconha seria porta de entrada para outras drogas:
“(…) Os narcotraficantes comercializam outras drogas, como, por exemplo, LSD, cocaína e crack, as quais poderiam ser objeto de consumo por usuários que não estejam mais satisfeitos com o efeito alucinógeno produzido pelo consumo da cannabis.”
Quando o relatório foi apresentado pela primeira vez, militantes pró-cultivo classificaram de “leviana” a afirmação do senado.
Ignorando, mais uma vez, a aplicação medicinal da planta, Petecão conclui o documento afirmando que “a sociedade brasileira não está preparada para a descriminalização do uso da cannabis para uso recreativo”. Repete que a iniciativa levaria usuários “para o uso de drogas mais fortes” e a entrar no “mundo do crime”. Até o tamanho do nosso território é visto como empecilho para o avanço do tema:
“(…) O Brasil é um país com dimensões continentais, o que prejudicaria a instalação de uma política antidrogas eficiente por meio da regulamentação e fiscalização.”
Um fio de esperança
O relatório do senador ainda tem que ser votado pelos membros da Comissão de Direitos Humanos. A votação ainda não tem data para acontecer. Caso a maioria dos senadores siga o parecer de Petecão, a matéria é arquivada de imediato e voltaria à pauta apenas com uma nova sugestão legislativa. Na eventualidade dos senadores votarem contra o parecer, a favor da proposta de descriminalização do plantio da cannabis, a sugestão vira projeto de lei e começa a tramitar oficialmente no Congresso. O senador Petecão ou outro integrante da Comissão indicado por ele ficaria encarregado de escrever o projeto.
Nos bastidores, no entanto, a tendência é que a maioria dos senadores siga mesmo a orientação do relator e vote pela rejeição da proposta. Mesmo se esse cenário se confirmar, movimentos sociais ligados à descriminalização da maconha não pensam em desistir de imediato: planejam recomeçar o processo do zero, apresentando uma nova proposta legislativa e tentando conseguir os 20 mil apoios necessário para que uma nova sugestão volte a ser apreciada pela CDH.
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