Quando o agente da guarda costeira da Líbia levantou as mãos, como quem aponta um fuzil imaginário, Thomas Schaible não se deixou impressionar. Não era o seu primeiro encontro violento com a guarda, mas, desta vez, com um helicóptero da marinha italiana e navios de guerra franceses por perto, ele sabia que não corria perigo.
Schaible e quatro outros tripulantes da ONG alemã Sea-Watch estavam retirando pessoas da água depois que um bote cheio de migrantes começara a desinflar. A Sea-Watch chegou primeiro ao local do naufrágio, mas a guarda costeira da Líbia apareceu e começou a ameaçar a equipe de resgate, exigindo que se retirassem imediatamente. Foi aí que o agente ameaçou atirar – com dezenas de pessoas ainda na água, sem colete salva-vidas. Schaible conta que ele e outros tripulantes viram a guarda costeira espancar pessoas recém-resgatadas com cabos. O barco partiu com algumas dúzias de pessoas a bordo, deixando muitas na água, e uma pessoa agarrada a uma escada no casco da embarcação líbia. Schaible estima que mais de 40 pessoas morreram afogadas naquele dia, a pouca distância das autoridades europeias.
Não se trata de um caso isolado: nos últimos seis meses, com o apoio de governos europeus, a guarda costeira líbia aumentou consideravelmente o número de operações de interceptação de barcos com migrantes nas águas internacionais ao largo da costa do país africano, onde acontece a maioria dos naufrágios. Os confrontos com ONGs europeias que trabalham no local também aumentaram, e diversas organizações afirmam ter sido alvo de tiros e ameaças de violência vindas de embarcações líbias. O problema obrigou algumas entidades a interromper suas operações de salvamento no Mediterrâneo.
A guarda costeira da Líbia é uma tropa descentralizada, frequentemente acusada de colaborar com milícias locais e contrabandistas, e de violar os direitos humanos de migrantes. Apesar disso, ela continua sendo uma peça fundamental para a Europa em sua reação à crise de refugiados.
As fronteiras marítimas são um problema para os governos europeus, que desejam limitar a chegada de pessoas que fogem de guerra, perseguições, fome e pobreza na África, Oriente Médio e Ásia Central. No mar, não há barreiras físicas e, se a guarda costeira ou um barco de uma ONG encontrar ou resgatar pessoas em águas internacionais, são obrigados por lei a levá-las ao porto seguro mais próximo. Para os europeus, isso muitas vezes significa levá-las à Europa.
As autoridades líbias, porém, levam os resgatados na direção contrária. Por isso, governos europeus têm financiado, treinado e até coordenado uma guarda costeira descrita pelas Nações Unidas e pelo comissário europeu de Direitos Humanos como uma instituição “diretamente envolvida em violações de direitos humanos” e que expõe migrantes “a sérios riscos de tortura e outros tratamentos desumanos e humilhantes”. Na semana passada, o alto comissário de Direitos Humanos da ONU disse que “a União Europeia e seus países-membros não estão fazendo nada para diminuir os abusos sofridos por imigrantes”.
“A UE e seus países-membros não estão fazendo nada para diminuir os abusos sofridos por imigrantes.”
A parceria com a Líbia é a mais nova manifestação da velha estratégia europeia de fechar suas fronteiras marítimas. As guardas costeiras dos países limítrofes são usadas para fazer o que as europeias não podem fazer – impedir fisicamente que as pessoas cheguem à Europa. No passado, essa abordagem conseguiu reduzir drasticamente o fluxo migratório, mas seu custo humano é extremamente alto.
Perguntei a um funcionário de médio escalão do controle de fronteiras da UE o que ele faria para fechar completamente as divisas marítimas europeias, se tivesse financiamento e poder político para fazer o que quisesse. A resposta veio sem titubear: “Como resolver isso? Com a Hera. Por toda parte.”
A Hera é a mais antiga operação conjunta da Frontex, a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira. Ela teve início em 2006, quando dezenas de milhares de pessoas começaram a chegar em pequenos barcos de pesca às Ilhas Canárias, uma província espanhola no noroeste da África. Com a Hera, a Espanha e a UE financiaram, treinaram e forneceram equipamentos às guardas costeiras de países não europeus para evitar a partida de migrantes, em vez de interceptá-los já em águas europeias.
“Se ensinarmos as guardas costeiras locais a controlarem suas próprias fronteiras, a nossa ficará mais segura”, diz Agustín Barroso, funcionário espanhol do controle de fronteiras lotado no Centro de Coordenação da Hera, nas Canárias. Ele explica que, como participantes da Hera, a Frontex e o governo espanhol passaram a dar apoio às guardas costeiras do Senegal e da Mauritânia, e agora a polícia espanhola ajuda as forças locais a patrulhar as águas. Barroso afirma que, do ponto de vista legal, essas operações não podem ser consideradas europeias, porque, embora sejam financiadas, preparadas, equipadas e até tripuladas pelos espanhóis, há sempre um policial do país local a bordo. De qualquer forma, se uma patrulha encontra um barco cheio de pessoas tentando chegar à Europa, ainda que em águas internacionais, elas são conduzidas de volta à África.
Para os governos europeus, a Hera é um caso de sucesso. Mais de 30 mil pessoas chegaram às Ilhas Canárias em 2006. Em 2010, esse número havia caído para menos de 200. Para todos os efeitos, a fronteira estava lacrada.
Mas o plano foi criticado por violar os direitos humanos dos migrantes. As pessoas interceptadas por embarcações europeias – ou por operações financiadas pela Europa – não tinham a chance de pedir asilo no Velho Continente, um direito garantido pela Convenção de Genebra. Grupos de defesa dos direitos humanos também condenavam a prática do pullback (retirada), que consistia em levar as pessoas, contra a sua vontade, de volta para as águas nacionais do Senegal e da Mauritânia, o que contraria o princípio de não devolução, segundo o qual um refugiado não pode ser mandado para um país onde poderia sofrer perseguição ou maus-tratos, ou ser deportado para o país de que acaba de fugir.
O funcionário do controle de fronteiras europeu (que pediu anonimato por não ter autorização para falar com a imprensa) afirma que o acordo de 2015 com a Turquia tinha um princípio parecido com a Operação Hera. A União Europeia pagou bilhões de euros ao governo turco em troca de um estancamento do fluxo migratório em seu território. A atividade da guarda costeira turca se intensificou para evitar que as pessoas saíssem do país e trazer de volta embarcações com migrantes. E a Europa pensou que poderia fazer o mesmo com a Líbia.
“Podemos dar apoio [à guarda costeira líbia] por via áerea, fornecendo informações sobre a localização dos migrantes”, diz o funcionário. “Se [os migrantes] forem interceptados por terceiros, caberá às autoridades líbias lidar com a situação”, completa.
Mas e se isso violar os direitos humanos dessas pessoas ou infringir as leis europeias e internacionais? “Se for uma operação líbia, [a não devolução] é problema deles”, afirma. “É uma forma de fugir do problema, do ponto de vista jurídico”.
“Se for uma operação líbia, o problema é deles.”
Desde a implantação da Hera, a estratégia europeia para fechar suas fronteiras marítimas inclui esse tipo de malabarismo legal: as autoridades dos países límitrofes recebem apoio suficiente para parar o fluxo de pessoas, mas não tanto a ponto de parecer que as operações são dirigidas pelos europeus, o que os tornaria responsáveis por qualquer violação de direitos. Porém muitos juristas especializados em direitos humanos e imigração criticam o que para eles não passa de uma tênue camuflagem.
“[Os governos europeus] estão tentando usar uma brecha para fugir da responsabilidade”, diz Cesare Pitea, professor de Direito Internacional na Universidade de Parma, na Itália. “É como se dissessem: ‘Não estamos fazendo nada; não interagimos com eles. Simplesmente pagamos a alguém para fazer o nosso trabalho sujo’”, afirma.
Riccardo Gatti, da organização de resgate Proactiva Open Arms, diz que começou a notar o aumento da hostilidade da guarda costeira líbia no último verão. Em junho, uma patrulha líbia atirou para o alto enquanto um bote da Proactiva se aproximava de um barco de madeira lotado de migrantes. Dois meses depois, a guarda costeira ameaçou atirar em uma equipe de resgate da ONG e acusou-a de colaborar com contrabandistas.
“No passado, [a guarda costeira] nos saudava e fazia uma averiguação para ver se estava tudo bem, mas nunca havíamos tido problemas”, conta Gatti, que trabalha na busca e salvamento de migrantes ao largo da costa líbia desde 2016. Ele notou um aumento na agressividade dos agentes líbios logo após a assinatura de um acordo entre a Itália e a Líbia para financiar, treinar e abastecer a guarda costeira do país africano.
“Assim que a Itália começou a firmar acordos, as coisas mudaram drasticamente”, diz Gatti.
Em fevereiro deste ano, o governo italiano criou um fundo, no valor de 190 milhões de euros, destinado a conter a imigração. O programa – batizado de “Fundo África” – financia projetos de desenvolvimento e operações de segurança de fronteira em diversas regiões da África.
O Fundo África também está sendo usado para fornecer apoio direto à guarda costeira líbia, segundo documentos obtidos por Giulia Crescini, uma advogada de Direitos Humanos italiana. Crescini obteve cópias de vários acordos do Fundo África por meio da lei de liberdade de informação da Itália; ela compartilhou os documentos com The Intercept, que agora está publicando a íntegra dos acordos. Dentre eles, destaca-se um projeto de 2,5 milhões de euros para fornecer equipamentos e treinamento à guarda costeira da Líbia e outros 10 milhões para vários projetos de controle de fronteiras no país.
Crescini está processando o governo com base no argumento de que o parlamento italiano teria criado um fundo cuja ordenação foi deliberadamente mal definida, e que as autoridades erram ao canalizar o dinheiro para a guarda costeira de outro país. A Itália estaria, segundo a advogada, delegando o controle migratório a uma instituição que colabora com milícias e contrabandistas e pratica a retirada forçada de pessoas de águas internacionais de volta para o território líbio, entre outros crimes contra migrantes.
Crescini e Pitea afirmam que quase não há diferença entre fornecer apoio à deportação ou praticá-la diretamente. Segundo Pitae, o que importa é quem está no comando dessas operações, e, nesse caso, o leme está claramente em mãos europeias.
Além do Fundo África, a Frontex e as forças navais europeias também têm programas de treinamento e troca de informações com a Líbia. Relatórios das operações europeias ao largo da Líbia de 2015 a 2016 – vazados no início do ano pelo WikiLeaks e pela Statewatch, uma organização de defesa dos direitos humanos do Reino Unido – mostram que a UE tem operado na região de maneira constante, realizando uma vigilância em tempo real do litoral líbio e das embarcações com migrantes. Outro documento obtido por The Intercept, um relatório de maio de 2017 do Serviço Europeu para a Ação Externa – o pseudoministério das Relações Exteriores europeu – descreve um acordo de troca de informações entre as guardas costeiras da Europa e da Líbia. Vários funcionários de ONGs de salvamento afirmam ter visto navios italianos durante as operações líbias.
“Existem embarcações italianas ao largo da costa da Líbia identificando os barcos que saem do país e passando informação à guarda costeira, para que esta possa interceptá-los e trazer as pessoas de volta à Líbia”, diz Jeff Crisp, pesquisador do Centro de Estudos de Refugiados da Universidade de Oxford. “É muito conveniente dizer que se trata de uma estratégia líbia, e não italiana ou europeia”, afirma.
“ É muito conveniente dizer que se trata de uma estratégia líbia, e não italiana ou europeia.”
Um porta-voz da Frontex disse que a agência não fornece apoio nem se comunica diretamente com a guarda costeira líbia fora do contexto do seu programa de treinamento, mas não negou que os dados de vigilância da Frontex cheguem às autoridades líbias por outros meios. Informações sobre partidas de migrantes, segundo o porta-voz, são passadas diretamente à coordenação italiana de salvamento, em Roma. Ayoub Qassem, porta-voz da guarda costeira líbia em Trípoli, confirmou que a instituição recebe regularmente essas e outras informações de vigilância das guardas costeiras da Itália e de outros países europeus. Qassem também confirmou que a Líbia usa esses dados para interceptar migrantes e conduzi-los de volta à Líbia.
A Frontex afirma que nunca recebeu nenhuma denúncia relativa a violações de direitos humanos ou outros abusos por parte das guardas costeiras e unidades policiais dos países não europeus que participam de operações da agência. Qassem nega categoricamente qualquer tipo de abuso da guarda costeira da Líbia, bem como qualquer envolvimento com contrabando ou milícias locais.
O ministro das Relações Exteriores da Itália não respondeu às tentativas de contato da reportagem.
Outro problema para os governos europeus dispostos a cooperar com a Líbia é que não existe apenas uma guarda costeira no país. O caos reinante no território líbio se reflete nessa instituição, o que também representa um perigo para os imigrantes deportados para lá.
“O problema da Líbia é que existe um conflito interno”, explica Barroso, o agente da guarda costeira espanhola que trabalha na Hera. Ele afirma que, sem estabilidade e recursos, a Líbia terá dificuldades para controlar as próprias fronteiras. Ele e outro agente espanhol trabalham treinando membros da guarda costeira líbia, tanto na Espanha quanto no país norte-africano. O foco do curso de Barroso são os direitos humanos.
Hassan Morajea, um jornalista líbio que faz reportagens sobre as fronteiras do país desde a queda de Muammar Kadafi, em 2011, explica que cada cidade do litoral da Líbia tem a sua própria guarda costeira – e a coordenação entre elas é praticamente inexistente.
“Há muita falta de comunicação entre elas”, diz Morajea. “Você não pode trabalhar com um só grupo e achar que vai treinar a guarda costeira líbia inteira”, completa.
Segundo o jornalista, sempre que os europeus tentam barrar o caminho em uma cidade, a rota de migração se desvia para outro lugar. Enquanto enumera rapidamente uma série de nomes de cidades da costa Líbia, ele traça a evolução da rota, de Zuwara a Sabratha, depois a Zawiya, e de volta a Zuwara. “E isso vai continuar acontecendo enquanto a guarda costeira não for unificada sob uma autoridade central. As cidades são muito fragmentadas”, opina.
De acordo com jornalistas, membros de organizações humanitárias e estudiosos da questão – e também segundo um relatório da Frontex publicado por The Intercept este ano –, a guarda costeira e a polícia da Líbia também estão envolvidas no tráfico de pessoas.
O relatório do Serviço Europeu para a Ação Externa havia sido redigido em maio de 2017, mas ainda não tinha vindo a público. O documento avalia a situação com pessimismo, mencionando um conflito constante entre milícias regionais e um serviço de controle de fronteiras “em total desordem”. O relatório ainda descreve a inoperância da polícia e da Justiça, disputas políticas, corrupção generalizada e a prática de “execuções extrajudiciais por parte da maioria das instituições armadas da Líbia” – entre as vítimas estão ativistas, jornalistas, juízes e promotores. Ainda segundo o documento, mais de 9 mil pessoas estariam atualmente em centros de detenção de migrantes – classificados de “desumanos” pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) –, enquanto outras estariam em prisões administradas por milícias e contrabandistas. A OIM e outros organismos também registraram vários casos de migrantes da África Ocidental sendo vendidos como escravos em leilões na Líbia.
A estratégia europeia na Líbia considera o país como um mero ponto de passagem para pessoas que fogem da guerra, perseguição, fome e miséria em seus países e tentam chegar à Europa. Mas a UE parece ignorar que muitas delas também fogem da própria Líbia, e não só de sua terra natal.
“A Líbia está passando por um período de transição, e está tentando implantar leis e direitos que nunca existiram antes da revolução”, afirma Abdulrahman Alfituri, um agente humanitário líbio que trabalha com migrantes devolvidos à Líbia pela guarda costeira. “Não temos polícia, não temos exército, não temos nada”, diz.
Enquanto isso, segundo ele, “a situação atual de falta de segurança na Líbia está piorando”. Alfituri é testemunha ocular do problema, tanto em sua vida pessoal quanto em seu trabalho com os refugiados. “É claro que as pessoas estão fugindo da Líbia”, afirma ele. “Três dias atrás, quatro amigos meus emigraram para a Europa; todos líbios. Eles saíram em busca de uma vida melhor”, completa.
Barroso diz que ele e seus colegas da Operação Hera estão preocupados com um possível novo aumento do fluxo de migrantes vindos do Senegal e da Mauritânia, agora que está mais difícil atravessar as outras fronteiras marítimas da UE.
“Se a rota da Líbia se fechar, provavelmente vão abrir outra”, acredita Barroso, acrescentando que um barco de madeira oriundo do Senegal chegou na Espanha no mês passado. Foi o primeiro em nove anos a completar a travessia.
Tradução: Bernardo Tonasse
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